Pablo Stefanoni, elDiarioar, 6 de março de 2022
Há algum tempo, muitos se perguntam por que existe uma simpatia difusa por Vladimir Vladimírovich Putin entre figuras políticas e intelectuais da esquerda latino-americana (e em outras paragens, mas tratá-las requer nuances que estão além da necessidade de síntese deste tipo de coluna/post). Recentemente, um famoso intelectual de esquerda postou que as declarações de Putin explicando as razões do conflito (no qual ele acusou a OTAN de expansionismo e culpou Lenin pela existência de uma Ucrânia independente) eram "brilhantes", e que esse brilho contrastava com a mediocridade de Biden. Seguiram-se dezenas de comentários de aprovação. A mesma referência intelectual recomendou, para entender o que realmente está acontecendo na Rússia/Ucrânia, não olhar para a mídia ocidental mentirosa, mas para a Telesur (canal dirigido de Caracas), HispanTV (de Teerã) e RT (de Moscou). Ele nem mesmo disse que tínhamos que assistí-los para ouvir "a outra versão", mas diretamente para saber a verdade.
Vários governos e líderes do partidos de esquerda apoiaram a Rússia, de forma explicita ou culpando a OTAN pelo ataque (e até mesmo falando de genocídio potencial pela Aliança Atlântica, mas não sobre as mortes reais às mãos do exército russo, não "vermelho" só por precaução). E basta percorrer as redes sociais para ver o amplo apoio a Putin por parte das pessoas da esquerda. Mesmo as fotos de Putin usando óculos escuros que enfatizam sua estética de vilão parecem ser muito atraentes. Que presidente se propõe a envenenar seus oponentes?
Não é toda a esquerda, muitos condenaram a invasão, mas aqui não estamos falando deles, mas das outras variantes mais "populistas" e até mesmo "marxistas" (embora Marx fosse muito claro sobre a natureza do império russo, e até exagerava). Não menciono os nomes porque todos nós sabemos de quem estamos falando; não é uma discussão pessoal, mas uma discussão político-ideológica.
Alguns acreditam que não devemos fazer ondas em nossa "família" para não alimentar o "macartismo". Não creio que a confusão ajude a esquerda. O "macartismo" também é alimentado pelas posições ambivalentes da esquerda precisamente diante de problemas "sensíveis" como Cuba, Venezuela ou Nicarágua... e não creio que a solução seja continuar tirando os temas da agenda de discussão para não "brigar entre nós". A confusão está suficientemente espalhada pelo mundo para que a esquerda a alimente.
Um esclarecimento: em nenhum momento isso é uma tentativa de "esconder" o papel da OTAN. As críticas à expansão da OTAN para o Leste são abundantes, mesmo na grande imprensa e entre os analistas de defesa. De fato, antes da invasão, era um argumento a favor da "firmeza" da Rússia. Mas a invasão mudou as coisas: esta é uma guerra preventiva de agressão contra um país soberano e seu povo. Santiago Alba Rico resumiu bem: "A OTAN é prejudicial para a Europa e para o mundo. Cada dia do ano é um bom dia para se manifestar contra ela; todos os dias, sim, exceto este. A Ucrânia não pertence à OTAN; não há soldados da OTAN lutando na Ucrânia; e certamente não há aviões da OTAN bombardeando Moscou; nem há qualquer intenção da OTAN de impedir a agressão russa militarmente. A OTAN pode - e deve - ser incluída em um artigo analítico ou em um ensaio histórico sobre a cronologia do conflito, mas não em uma manifestação de protesto contra uma guerra pela qual a responsabilidade recai apenas sobre uma fonte: Putin".
É desnecessário dizer que nos países não pertencentes à OTAN, na periferia da Rússia (como na Finlândia), a opção de aderir à OTAN está se tornando majoritária. É óbvio que diante do valentão do pedaço, todos, se não puderem se defender sozinhos, buscarão o apoio de outro valentão para protegê-los. E também é bom lembrar que a Ucrânia desistiu de suas armas nucleares no Memorando de Budapeste de 1994, em troca do respeito por sua soberania. Hoje eles se arrependem.
O que se segue são algumas hipóteses provisórias sobre os problemas de nossas esquerdas continentais para enfrentar alguns dos desafios do presente.
(1) "Campismo": avaliação puramente geopolítica de qualquer tipo de conflito global (e até mesmo local). O mundo está dividido em campos e se você está na "zona de sacrifício" pela causa anti-imperialista, vai se foder. Isto substitui a solidariedade internacionalista por uma visão que deprecia populações inteiras em nome de uma suposta (e muitas vezes fantasiosa) mudança nas relações internacionais de poder, em detrimento do imperialismo norte-americano. Muitos nos Estados Unidos chamam isso de "tanquismo", pelo apoio à invasão da Hungria por tanques russos em 1956. Mas se na Guerra Fria o campismo respondeu à defesa de um suposto sistema alternativo ao capitalismo (vamos deixar de lado o debate sobre o socialismo real), agora ele serve apenas para defender autocratas como Assad ou Putin. Sem a URSS, o tal campismo acaba rimando com o "vermelho-pardo" [uma aliança da esquerda com os fascistas]. O próprio PC da Federação Russa evoluiu nesse sentido: hoje é uma força que mistura a nostalgia soviética com o nacional-bolchevismo. Não é coincidência que Diego Fusaro tenha sido oficialmente convidado à Bolívia e aplaudido em suas intervenções públicas maciças por militantes e aderentes do MAS, sem que ninguém perceba nada de estranho em um discurso que, desde o marxismo, assume explicitamente valores de extrema-direita (é por isso que defende a "família", critica a "esquerda arco-íris" e se liga diretamente a espaços de extrema direita, como CasaPound ou outros neofascistas). Citações de Marx e Gramsci lhe foram úteis para vender vários clichês "vermelho-pardos". Mas isso aconteceu porque havia uma sensibilidade difusa compartilhada por aqueles que o escutavam.
(2) Todo o imperialismo fora dos EUA é invisível. Derivado do exposto acima: há uma total incapacidade de analisar os imperialismos regionalizados. É óbvio que para qualquer país da periferia russa, o "imperialismo" é a Rússia. E é óbvio, depois do que aconteceu na Ucrânia, que a adesão à OTAN é hiper-racional. A expansão da OTAN, como diz meio mundo, e nós já assinalamos, foi um desastre. Mas a invasão da Ucrânia não é apenas um reflexo defensivo. Não há necessidade de cavar muito fundo, como disse o próprio Putin, justificando a invasão em terras da Grande Rússia imperial (a Ucrânia é parte da Rússia). Quando a China invadir Taiwan (se finalmente o fizer) ouviremos as mesmas frases. Somente que, quando isso acontecer, as redes sociais serão preenchidas com fotos de Mao. Um exemplo dos efeitos da proximidade com esses impérios regionais (embora a China já tenha passado para outra divisão) são os laços do Vietnã - inclusive militares - com os Estados Unidos. Os vietnamitas sabem melhor do que ninguém até que ponto o imperialismo americano pode ser impiedoso. Mas eles também conhecem bem e têm os chineses como vizinhos.
(3) Fatos alternativos: a esquerda latino-americana também trabalha com seus próprios fatos alternativos. Muitas vezes sem o menor esforço para ir mais longe e tentar se informar. É notável a quantidade de pessoas que compram a "desnazificação" (basta olhar para fotos de bandeiras nazistas na Ucrânia para confirmar isto!). Nisso não há muita diferença com o que faz o QAnon à direita. É claro que existem milícias neonazistas na Ucrânia. E também que a extrema direita tem menos votos que na França ou na Espanha. Quanto peso têm e onde, quanta influência têm na política local? Quão infiltradas estão as forças de segurança? É o mesmo agora que em 2014? Para combatê-las é preciso invadir, bombardear e destruir um país e culpar coletivamente o povo no "estilo antigo"? Quanto o próprio expansionismo russo desempenhou um papel no seu fortalecimento? Alguns parecem acreditar que o próprio Hitler governa a Ucrânia. Mas o presidente é um ex-comediante judeu de língua russa.
(4) Iliberalismo: como o anticomunismo era muito mais do que "não ser comunista", o iliberalismo é mais do que "não ser liberal". É uma identidade que tem o outro pólo como seu interlocutor e obsessão. Assim como os anticomunistas da Guerra Fria subordinaram qualquer princípio à derrota do comunismo - e poderiam massacrar metade do mundo em nome da liberdade - os iliberais acabam desconfiando da própria democracia e, em vez de lutar por uma espécie de esclarecimento radical e crítico, acabam defendendo explícita ou implicitamente qualquer alternativa à "democracia liberal", que geralmente é um álibi para o poder dos autocratas ou cliques cleptocráticas. Em seu momento, a "democracia direta" de Kaddafi e seu Livro Verde era a expressão mais pura disso. Mas hoje a simpatia que vemos por Putin entre parte da esquerda latino-americana deveria ser um alerta para estas derivações. Se os conservadores liberais são inconsistentes e hipócritas, talvez nós devêssemos ser mais consequentes e não usar a hipocrisia dos outros como justificativa para a nossa própria.
Mas no "campo popular" latino-americano ainda há muito fetichismo em relação aos tanques russos... A brutalidade dessa invasão é uma oportunidade para nos "destanquizarmos".