Elas ocupam a maioria dos postos na Saúde, serviços, e a informalidade. Não se trata mais de “dupla jornada”: trabalho tornou-se incessante, com atenção redobrada em casa. Relegadas a sustentar a vida e enfrentam uma violência crescente. A luta central é tornar a economia feminista
João Vitor Santos entrevista Renata Moreno, IHU Online, 8 de abril de 2021
Como compreender o espaço da mulher na organização social da atualidade? De que forma esse espaço se reconfigura com a experiência da pandemia?
O trabalho é central para compreender o lugar das mulheres em nossa sociedade. E compreender a divisão sexual do trabalho, e suas articulações com a divisão racial do trabalho, é fundamental neste sentido. O trabalho das mulheres nas casas e comunidades conforma as bases de sustentação da vida. Está relacionado com a alimentação (produção de alimento, preparação de comida), com os cuidados que satisfazem diferentes necessidades vitais, e também com a natureza.
Então, precisamos entender o trabalho em uma perspectiva mais ampla; o trabalho não se reduz ao emprego, ao que é feito em troca de um salário ou pagamento. Com a hegemonia do neoliberalismo e as políticas de ajuste, com a primazia do mercado sobre a vida nesse momento histórico, o que vemos são processos permanentes que ocultam as interdependências e os vínculos entre todos esses trabalhos e relações que sustentam a vida, e o que se considera econômico, o que se considera público, produção. E isso significa um processo permanente de invisibilização, que acaba naturalizando esses trabalhos que sustentam a vida como responsabilidade das mulheres, como se fizesse parte de uma essência, e não como um processo social de responsabilização.
A pandemia intensifica essas dinâmicas de desigualdade e responsabilização das mulheres com a vida, com os tempos da vida, conformando essa espécie de “colchão” que amortece os impactos da violência desse sistema, como dizem as economistas feministas. É importante compreender como essa intensificação tem a ver diretamente com a ausência de responsabilidade do Estado com a vida, e/ou com os ataques diretos das políticas de Estado contra a vida, como é o caso que estamos vivendo e enfrentando no Brasil.
A crise de 2008 afetou principalmente os setores de empregos predominantemente masculinos (construção civil, indústria e transportes), mas a crise atual da pandemia atinge setores fortemente marcados pela presença de mulheres (hotelaria, turismo, comércio varejista e emprego doméstico). Quais as consequências dessa realidade atual? Em que medida podemos vislumbrar reações a partir da experiência de 2008?
Essa é uma questão importante para compreender o que está acontecendo. Um ponto é que na crise de 2008 o impacto no emprego feminino ficou, muitas vezes, invisibilizado. E é importante compreender também o que foram as mudanças no mercado de trabalho nesse período entre aquela crise e a de agora. Esses setores de serviços, mais impactados nesta crise, têm de fato mais presença de mulheres trabalhadoras, e são também setores muito marcados pela informalidade.
Além disso, o trabalho informal, por conta própria, tem também mais presença de mulheres negras, expressão das articulações entre divisão sexual e racial do trabalho. Então precisamos considerar o tamanho desse impacto agora e a médio/longo prazo, considerando esse contexto de ofensiva do neoliberalismo, de generalização da precariedade. O que estamos vendo, então, não é só a precarização do trabalho, mas da vida em si, das bases que sustentam a vida, e é por isso que temos dito que estamos enfrentando um conflito do capital contra a vida.
A reação a isso, para enfrentar essa situação, é enfrentar também falsas soluções, como, por exemplo, aquelas que empurram o empreendedorismo como “a” alternativa para as mulheres, incorporando uma suposta liberdade das mulheres sobre seu tempo, para “conciliar” responsabilidades com o cuidado e com a autonomia econômica de uma forma muito individualista, sem que haja políticas direcionadas a mexer nessas estruturas da precariedade. A partir da economia feminista, o que temos apontado é a necessidade de deslocar o centro dos debates: não é o mercado que importa, e sim a sustentabilidade da vida. Esse precisa ser o centro, e a partir disso que as políticas precisam ser informadas, tendo como horizonte a construção de igualdade, a valorização dos trabalhos e das trabalhadoras, a reorganização dos cuidados com a afirmação dos direitos e a responsabilização pública pelo cuidado.
As funções de cuidado, da casa, da família, dos mais velhos etc., sempre foram legadas às mulheres. Em que medida esse quadro tem se alterado nos últimos anos? O que significa pensar que metade das brasileiras passou a cuidar de alguém na pandemia, segundo a ONG Gênero e Número?
Na pandemia ficou evidente que vivemos uma crise que não é apenas conjuntural, mas sim estrutural, está na base desse sistema. Ou seja, que a sociedade capitalista segue funcionando colocando a reprodução social nas costas das mulheres, no trabalho não remunerado ou no trabalho mal remunerado das mulheres, sobretudo mulheres negras, mulheres migrantes do Sul nos países do Norte. Falamos de uma crise de cuidados, que é expressão dessa crise mais estrutural da reprodução social.
Chama muita atenção esse dado de que, no Brasil, metade das mulheres passou a cuidar de alguém na pandemia, justamente porque vivemos uma situação em que o Estado não cuida. Essa responsabilidade é privatizada. E não podemos romantizar o cuidado, inclusive devemos considerar um fator muito importante: as mulheres estão cuidando nessa situação de precariedade, de aumento da fome, sem renda, e isso é uma situação gravíssima que é preciso ser enfrentada. Por isso o movimento de mulheres tem colocado no centro da sua agenda a luta pelo Auxílio Emergencial até o fim da pandemia, ampliado para todas as pessoas que precisam, e com um valor que dê conta das necessidades.
Ao mesmo tempo, além do cuidado em casa e nas comunidades, as mulheres são maioria entre as trabalhadoras da saúde e da educação, inclusive nas equipes de limpeza dos estabelecimentos de saúde. Estas são trabalhadoras que estão vivenciando há um ano uma rotina intensa, de muita sobrecarga. No caso da educação, inclusive, enfrentando o poder público, que não garante as condições de saúde para as trabalhadoras. O que estamos vendo são as mulheres preocupadas com a sua saúde, com a das pessoas próximas e mais distantes, com o distanciamento necessário, a higienização dos espaços.
Precisamos, então, pensar o cuidado de conjunto, para além das casas, e dar visibilidade às lógicas do cuidado, aos tempos da vida, à sobrecarga de trabalho, aos impactos de tantas mortes na saúde mental.
Também com a pandemia, muitos conheceram o home office. O que a realidade das mulheres exauridas com o trabalho em casa e da casa, realizado quase ao mesmo tempo, revela acerca da sociedade de nosso tempo? Como observa a forma como as organizações, as empresas, têm lidado com esse cenário?
Pela experiência das mulheres, o que temos visto é que elas estão trabalhando muito mais. Jornadas que não terminam, ou mulheres que trabalham à noite quando os filhos dormem, mulheres que compartilham o celular ou o computador com as crianças para acompanhar as aulas, então efetivamente a exaustão das mulheres é uma característica desse momento. Na pesquisa da SOF com a Gênero e Número, ficou evidente que, quando as mulheres têm alguma responsabilidade com o cuidado, a necessidade de monitoramento permanente é incontornável.
Portanto, não existe uma situação de “dupla jornada”, mas sim uma jornada intensa, múltipla e que não tem hora para começar ou terminar. As empresas se beneficiam com isso, impondo um ritmo incompatível com a vida e o cuidado. E é importante a gente considerar essa dupla situação, das mulheres exauridas que continuam empregadas, com sua renda, e a das mulheres exauridas que perderam sua fonte de renda e estão lidando com a insegurança permanente, sobre a alimentação, sobre a moradia, as contas para pagar etc. E os dois grupos lidando com as preocupações e perdas das pessoas próximas pela Covid. Essa não é uma situação individual de cada uma, mas uma realidade coletiva da maioria.
Na periferia, são as mulheres que assumiram o protagonismo no enfrentamento da pandemia, da crise econômica, da falta de emprego e comida na mesa. De que forma você tem visto essa realidade pandêmica na periferia?
Os movimentos sociais têm assumido a responsabilidade de encontrar formas coletivas de garantir as condições de vida, especialmente nas periferias, e, frente a essa ausência do Estado, ao aumento da fome e perda de renda. A solidariedade tem sido o eixo das ações dos movimentos, como, por exemplo, da Marcha Mundial das Mulheres, que em diferentes lugares está se mobilizando em ações permanentes de distribuição de alimentos, informação e produtos de higiene.
São as mulheres que estão à frente dessas ações realmente, e construindo, multiplicando estratégias e iniciativas que articulam também as agricultoras, articulando o campo e a periferia, tendo em vista não só a segurança alimentar, mas a soberania alimentar. Temos visto que essas ações de solidariedade se direcionam a garantir as condições de existência, e isso tem a ver com a comida, com a saúde, com a organização das mulheres também para enfrentar o isolamento, a violência. Essas ações de solidariedade também nos ajudam a pensar no cuidado para além das casas, o cuidado no âmbito comunitário, nos territórios concretos. Essa é uma base muito concreta para enfrentar as consequências da pandemia, mas também para construir a resistência e as alternativas políticas a esse projeto de morte que tem hegemonizado o cenário político no Brasil.
Um dos primeiros dados gerados a partir do isolamento social foi a violência doméstica contra a mulher. O que isso indica? Como mensurar os danos à mulher que sofre violência ou que é obrigada a reagir diante da violência praticada contra as crianças dentro de casa?
Mais uma vez, ficou evidente que a casa não é um espaço seguro para muitas mulheres, e muitas meninas, crianças, que vivem relações abusivas. E é fundamental destacar que o poder público, de modo geral, não construiu estratégias para enfrentar essa situação de forma coletiva. Isso é um dos fatores que fazem inclusive com que seja difícil mensurar a violência neste contexto, ou seja, quais são os canais de denúncia, quais são os mecanismos de proteção das mulheres e das crianças?
A violência contra as mulheres é um instrumento do patriarcado, e esta situação sobre a qual falamos anteriormente, da precariedade das condições de vida, ampliam as dificuldades das mulheres de lidarem com a violência. Não à toa, os dados mostram que são as mulheres negras a maioria das que sofrem violência. Outro aspecto a destacar é que a violência tem múltiplas manifestações, como, por exemplo, a agressão física, a violência sexual, a violência psicológica e o feminicídio.
Os movimentos feministas levaram as mulheres a grandes conquistas, mas como você observa o feminismo de hoje? Em que medida as discussões e ações desses movimentos têm dado conta das diversas realidades das mulheres na pandemia?
Nesse 8 de março de 2021, que é um dia internacional de luta das mulheres, o feminismo no Brasil construiu um consenso importante, a partir da unidade entre diferentes organizações e movimentos: o foco da ação política nessa data, e em 2021, é enfrentar a pandemia, defendendo a vida, exigindo o Auxílio Emergencial até o fim da pandemia e a vacina para todas as pessoas. Nesse sentido, com as mulheres em movimento, o feminismo no Brasil já tem acumulado muita força e muita potência na resistência ao projeto representado hoje pelo governo de Jair Bolsonaro e, por isso, o “Fora Bolsonaro” é a palavra de ordem comum.
Nos debates feministas, fica evidente a crítica global a esse projeto, não a um ou outro ministro. O problema das mulheres não é só a Damares [Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos], é também o Paulo Guedes, é também a militarização da política, é o projeto de Bolsonaro como um todo. Mas o feminismo também enfrenta o “neoliberalismo diverso”, o “neoliberalismo colorido”, que é esse projeto da direita e do mercado, que se apresenta como mais “decente”, mas que segue aprofundando as políticas neoliberais, o ajuste, as privatizações, e o poder das empresas transnacionais sobre a nossa vida.
Como mencionei antes, a ação, por exemplo, da Marcha Mundial das Mulheres tem tido como centro estratégico a solidariedade, junto com essa perspectiva política de que é preciso colocar a sustentabilidade da vida no centro. E essa perspectiva não cabe no capitalismo racista e heteropatriarcal. A sustentabilidade da vida significa uma construção programática, a partir das mulheres auto-organizadas, a partir do feminismo popular e internacionalista, que enfrenta o racismo em todas as suas expressões, que enfrenta a precarização da vida e a exploração do trabalho, que questiona a heteronormatividade e todas as formas de controle dos corpos e das vidas.
Colocar a sustentabilidade da vida no centro significa reconhecer todos os trabalhos, as relações e os processos, interdependentes e ecodependentes que dão as condições de possibilidade para a vida. É uma agenda que propõe, mais do que o reconhecimento, a valorização e reorganização destes processos e trabalhos que sustentam a vida, tendo a justiça socioambiental, a soberania alimentar, a solidariedade e a igualdade como princípios.
Renata (Tica) Moreno é doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo – USP, com estágio doutoral no laboratório Cresppa-GTM, na França. Graduada em Ciências Sociais pela USP, também é mestra em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC – UFABC. É militante da Marcha Mundial das Mulheres, integra a equipe técnica da SOF Sempreviva Organização Feminista e a Rede Economia e Feminismo.