Juan Leal*, do Rio de Janeiro
A cultura foi a primeira a parar e será a última a retornar. Essa frase, que repetimos como um mantra nesse momento da pandemia, não é um retrato fiel da realidade, mas deveria ser encarada como um importante alerta. Durante o período de isolamento, a produção artística e cultural não parou completamente como muitos setores da cadeia produtiva. E seria uma catástrofe ainda maior para todos se tivesse parado. A quantidade de apresentações ao vivo em plataformas virtuais – as chamadas lives – atingiu números recordes de exibição e audiência, nunca se viu surgir tantos canais de contação de histórias, oficinas de dança se multiplicaram na internet.
Muitos artistas, dos mais famosos na indústria aos mais dedicados às suas comunidades, seguiram buscando formas de criar e transformar o isolamento social em apenas distanciamento físico. Mas a adaptação dos meios de produção das artes ao ambiente virtual trouxe junto um debate que costuma ser deixado atrás das cortinas: ao mesmo tempo em que as diversas manifestações culturais são vitais para qualquer sociedade, os milhões de trabalhadores que fazem os shows acontecerem nunca estiveram em situação tão calamitosa.
É inegável o papel fundamental que as artes vêm cumprindo para a saúde mental e física durante a pandemia, porém, essa enorme oferta de conteúdos online não pode ser encarada como uma solução para as produções artísticas. Em um país com mais de 1/4 da população sem acesso à internet em casa, a produção cultural restrita às redes serve como um reforço das desigualdades já explícitas e acaba impondo graves obstáculos à fruição desse direito humano fundamental. E, como toda ação de improviso, as plataformas que passaram a servir como espaços culturais não estão preparadas para guardar e organizar a memória das manifestações, tão fundamental à continuidade da produção cultural.
Cada apresentação é uma gota num mar de conteúdos variados e facilmente descartados. Impedir a naturalização desses meios virtuais de produção durante a pandemia é fundamental para superar a lógica de reprodução da exclusão no acesso à Cultura, inclusive, na ainda nebulosa discussão sobre a reabertura que, em algum momento, virá à tona.
A natureza aglomerativa das atividades culturais é parte das suas experiências, a arte não é produto de uma mente iluminada e fechada em si mesmo, ela é resultado de um processo inteiramente coletivo e intimamente ligado à vivência em sociedade. E, se uma live não é capaz de reproduzir todas as sensações e materialidades de uma apresentação cultural, ela tampouco resolve a vida da maioria dos profissionais que fazem da Cultura seu ofício. No Brasil, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) do último trimestre de 2019, o setor cultural é responsável por 5,4% da população com ocupação profissional. Destes, alarmantes 73,2% são autônomos, ou seja, uma ampla maioria não possui qualquer garantia de trabalho. São mais de 5 milhões de trabalhadores que estão para além do artistas que ocupam a boca de cena. Com o cancelamento de todos os eventos e com o fechamento dos espaços culturais por tempo indeterminado, também os técnicos, produtores, assistentes, figurinistas, diretores, maquiadores, músicos acompanhantes e mais umas dezenas de profissionais envolvidos nas produções se viram diante de um completo apagão de seus recursos financeiros.
A falta de medidas emergenciais de garantia de renda básica que possibilitem um efetivo isolamento durante a pandemia atingiu a imensa parcela da população brasileira. Para os trabalhadores do setor cultural, isso se somou a um histórico de desmonte de políticas públicas. Logo no início do governo Bolsonaro, a pasta da Cultura perdeu o status de Ministério e passou a ser uma Secretaria com uma brusca redução de 25% nos investimentos em relação ao ano anterior. O rebaixamento não foi só na estrutura administrativa: a Cultura vem sendo caracterizada como mero entretenimento, portanto, matéria dispensável em tempos de crise. Só que a própria crise fez questão de descortinar uma das contradições dessa narrativa aonde o calo mais aperta: na economia.
O Rio de Janeiro, conhecido por ser um caldeirão de efervescência cultural e exportador de artes para o mundo, é um bom exemplo de como o descaso com a produção de cultural pode virar uma tragédia grega. O Rio é o segundo Estado do sudeste com o maior número de pessoas ocupadas na área da Cultura e tem cerca de 70% da sua mão de obra empregada no setor de serviços, sendo este o setor com a maior participação na economia fluminense. De acordo com um estudo recente da PPGER/UFRRJ, dentro do setor de serviços, as atividades artísticas serão as mais impactadas pela crise atual, com uma projeção de retração econômica de quase 50%, sem demanda reprimida, ou seja, não haverá compensação dessa perda após o fim do período de isolamento. E o governo pouco fez além de colocar no papel medidas que não saíram de lá. Os números não projetam um cenário grave somente para a Cultura, mas para a economia de um Estado que já agoniza com uma crise de longa data.
Nos bastidores da ausência de incentivo e da morosidade para que os governos implementem ações emergenciais para a Cultura, há um problema antigo: a falta de reconhecimento das artes como um ofício. Com a estrutura vigente, a produção artística fica sufocada por um mercado bastante restrito de financiamento, a continuidade das produções é prejudicada pela falta de políticas públicas e a imensa maioria de fazedores de Cultura fica à margem, sem nenhuma estabilidade e obrigada a buscar um segundo emprego paralelo que ajude a garantir sua subsistência. O caráter efêmero dos projetos se reflete no alto índice de informalidade do setor. Carteira assinada é obra rara.
Até quando a sociedade seguia sua normalidade, a precariedade da classe trabalhadora da Cultura já estava encoberta pelo fetichismo provocado por uma gigantesca indústria do entretenimento, muito criativa em esconder os bastidores. Sorrisos e aplausos garantem o bis, mas não sustentam os milhares de trabalhadores, tampouco a continuidade de suas produções artísticas. Com a crise em curso, essa situação alarmante passou a ser reprisada com capítulos mais drásticos, escancarando a miséria de uma classe que segue buscando e encontrando inspiração. As artes agonizam, mas não morrem.
Enquanto a indústria cultural continua tentando salvação para sua própria criação e reproduzindo a velha lógica com suas mega lives patrocinadas, a pandemia ressalta a urgência do debate sobre políticas públicas estruturantes para a Cultura e a necessidade do reconhecimento de sua classe trabalhadora. A dimensão da Cultura enquanto um direito não é possível de ser construída sob a lógica de mercado, na qual somente tem espaço quem vende e produz lucro.
Agora, é preciso garantir a vida. As medidas emergenciais aprovadas com luta nas casas legislativas precisam ser implementadas imediatamente. Para que, vivos, os fazedores de cultura possam ser protagonistas na reinvenção de outro modelo de produção e fruição, que supere as dificuldades impostas pela pandemia e também os velhos problemas da estrutura atual. Afinal, há duas certezas: não existe sociedade sem Cultura e nada será como antes amanhã.
*Juan Leal é produtor cultural, coordenador da Escola de Teatro Popular-RJ e articulador da Frente Cultura RJ.