O chileno Sebastián Piñera, o dominicano Luis Abinader, o equatoriano Guillermo Lasso figuram no novo vazamento. Entre os ex-mandatários, os colombianos Gaviria e Pastrana e o peruano Kuczynski. No Brasil, estão o ministro Paulo Guedes e o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto.
Três presidentes no exercício de seu mandato e 11 que já deixaram seus cargos; 90 políticos de alto escalão, congregações religiosas e artistas de fama mundial, bilionários e até o presidente de um banco central — toda uma constelação de personagens poderosos da América Latina fez uso de paraísos fiscais ao longo dos anos. Apesar de habitar a região mais desigual do planeta, essa elite se valeu de um emaranhado de sociedades fiduciárias, empresas de fachada e documentos mercantis opacos em lugares como as Ilhas Virgens Britânicas e o Panamá para evitar o escrutínio público sobre uma parte substancial de seus bens. É uma estrutura que vem à luz agora com a publicação dos Pandora Papers. O vazamento, obtido pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ, na sigla em inglês), se baseia em 11,9 milhões de arquivos que reúnem o trabalho de 14 assessorias para offshores. Esta massa de informação foi revista e verificada por uma equipe de 600 jornalistas, da qual o EL PAÍS participou junto com The Washington Post, The Guardian, BBC e diversos outros veículos de todo o mundo.
Os resultados, de impacto mundial, ganham especial relevância na América Latina, onde a cada ano escapam do fisco cerca de 40 bilhões de dólares desviados para paraísos fiscais. Como publicarão nos próximos dias este jornal e outros veículos que participaram da apuração, 14 dos 35 presidentes ou ex-presidentes mencionados nos documentos pertencem a esta região. A maioria é de tendência conservadora. Entre eles se destacam três presidentes no exercício de seus mandatos: o chileno Sebastián Piñera, o equatoriano Guillermo Lasso e o dominicano Luis Abinader. Também emergem 11 ex-mandatários, sendo os mais conhecidos os colombianos César Gaviria e Andrés Pastrana, o peruano Pedro Pablo Kuczynski; o paraguaio Horacio Cartes e os panamenhos Juan Carlos Varela e Ricardo Martinelli.
No caso do mandatário chileno, a investigação feita pelos sites chilenos CIPER e LaBot revela entre seus negócios offshore a aquisição, nas Ilhas Virgens Britânicas, da mineradora Dominga, em sociedade com o empresário Carlos Alberto Délano, seu amigo de infância. Em dezembro de 2010, nove meses depois de Piñera iniciar seu primeiro mandato, a família presidencial transferiu o negócio para as mãos de Délano com uma minuta assinada no Chile, que mencionava um valor de 14 milhões de dólares, e outra nas Ilhas Virgens, falando em 138 milhões de dólares. O montante deveria ser saldado em três parcelas, com uma condição: o último pagamento dependia de que não fosse estabelecida uma área de proteção ambiental sobre a zona de operações da mineradora, como pleiteavam grupos ambientalistas. A decisão sobre a viabilidade da mineradora Dominga ficou, portanto, nas mãos do Governo de Piñera. A área de proteção afinal não foi estabelecida, e a terceira parcela foi paga. Apesar dessas sombras, o gerente das empresas da família Piñera alegou que o presidente não dirige seus negócios há 12 anos, não foi informado sobre o processo de venda da Dominga, e que a investigação judicial sobre a operação acabou sendo arquivada.
Outro presidente revelado pelos Pandora Papers e que tem sido um empresário de sucesso, mas desta vez no setor hoteleiro, é o dominicano Luis Abinader. Os documentos mostram a vinculação do presidente dominicano com duas empresas no Panamá, a Littlecot Inc. e a Padreso S.A. Essas duas pessoas jurídicas foram criadas antes de ele assumir o cargo e serviram para administrar ativos na República Dominicana. A investigação de El Informe com Alicia Ortega de Noticias Sin aponta que as ações dessas empresas eram inicialmente “ao portador”, um instrumento utilizado para ocultar os beneficiários das companhias. Abinader, segundo essa investigação, se registrou publicamente como beneficiário em 2018, três anos depois de que entrasse em vigor uma lei que obriga as empresas a divulgar a identidade de seus donos.
Ao se tornar presidente, em 2020, o mandatário declarou nove empresas offshore que controlava através de uma sociedade fiduciária. Abinader assegura que não tem nenhuma participação nela. Tanto Piñera como Abinader recorreram ao escritório OMC Group, com sede no Panamá — o mesmo que administra ao menos três offshores da cantora colombiana Shakira, cujos rastros foram seguidos durante anos pela Fazenda espanhola.
O terceiro chefe de Estado ativo que consta dos documentos obtidos pelo ICIJ é Guillermo Lasso, ex-banqueiro conservador e milionário, que conquistou a presidência do Equador em abril passado. O mandatário, segundo os documentos e a investigação do jornal El Universo, chegou a ter vínculos com 14 empresas offshore, mas foi fechando uma após outra depois que o grupo político do ex-presidente Rafael Correa impulsionou uma lei que proibia candidatos a presidente de serem beneficiários de empresas em paraísos fiscais. Em sua defesa, o presidente equatoriano alega que abriu essas offshores porque a legislação nacional impede os banqueiros de investir em seu país. O presidente equatoriano alega que 10 dessas companhias já estão inativas, e sobre as outras 4 nega qualquer relação ou benefício.
Lasso era cliente do Trident Trust, um dos maiores prestadores de serviços para offshores no planeta. Esse escritório suíço é conhecido por sua discrição neste tipo de soluções e aparece repetidamente nas operações reveladas no vazamento, assim como o escritório panamenho Alemán, Cordero, Galindo & Lee (Alcogal), que conta com inúmeros clientes na América Latina. O Alcogal abriu a maioria das 78 empresas que cidadãos venezuelanos teriam usado para ocultar em Andorra dois bilhões de dólares desviados da estatal Petróleos da Venezuela (PDVSA). Entre os beneficiários desta estrutura, segundo a investigação do site Armando.info, está uma parte importante da cúpula chavista.
No Brasil, os Pandora Papers apontam para os dois homens mais poderosos do seu universo econômico: o ministro Paulo Guedes e o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. Nenhum dos dois divulgou publicamente suas operações offshore antes de assumir cargos nos quais participariam da tomada de decisões sobre esse tipo de investimento. Este possível conflito afeta especialmente o Ministro da Economia, que lidera uma reforma tributária que, em sua versão atual, reduziu a pressão sobre o dinheiro das pessoas físicas em paraísos fiscais.
Guedes, de 72 anos, aparece como acionista da empresa Dreadnoughts International Group, registrada nas Ilhas Virgens Britânicas. Trata-se de uma shelf company, como são conhecidas no jargão financeiro: empresas fundadas em paraísos fiscais, mas que podem permanecer anos sem atividade à espera de que alguém lhes dê uma função. Os documentos mostram que o ministro, guru econômico do presidente Jair Bolsonaro, e uma das personalidades mais polêmicas do gigante sulamericano por suas conexões com a elite financeira, tinha em 2014 pelo menos oito milhões de dólares (43,3 milhões de reais, pelo câmbio atual) investidos na companhia, registrada em seu nome e nos de sua esposa, Maria Cristina Bolívar Drumond Guedes, e da filha, Paula Drumond Guedes. O Ministério da Economia, em resposta à investigação, encaminhou uma nota à revista Piauí em que afirma que essas atividades “foram devidamente declaradas ao órgão tributário e demais órgãos competentes, o que inclui sua participação na empresa Dreadnoughts International Group”. “Sua atuação sempre respeitou a legislação aplicável e se pautou pela ética e pela responsabilidade”, indica a nota.
O presidente do Banco Central, Campos Neto, é dono de quatro empresas. Duas delas, Cor Assets e ROCN Limited, são registradas no Panamá em sociedade com sua esposa, a advogada Adriana Buccolo de Oliveira Campos. O objetivo declarado das empresas é investir nos ativos financeiros do Santander Private Bank, cujo conselho executivo Campos Neto integrou no passado. As outras offshores são Peacock Asset Ltda, gerida pelo banco Goldman Sachs, e que foi descoberta na investigação do Bahamas Leaks, de 2016. A quarta empresa é a Darling Group, que segundo o Banco Central informou em nota, é uma empresa de “gestão de bens imóveis”. Assim como Guedes, o presidente do Banco Central afirma que declarou todo o seu dinheiro no exterior à Comissão de Ética da Presidência da República, bem como ao fisco e ao próprio Banco Central. Ele também reforça que construiu seu “patrimônio com as receitas obtidas em 22 anos de atuação no mercado financeiro”.
A Colômbia é outro dos países onde se nota um uso intensivo da opacidade financeira nas altas esferas políticas. Entre as personalidades que figuram no vazamento destacam-se dois ex-presidentes: o liberal César Gaviria Trujillo (1990-94) e o conservador Andrés Pastrana Arango (1998-2002). Ambos, ainda detentores de uma notável influência política, bateram às portas dessas assessorias quando já tinham deixado o poder.
Na Argentina, os documentos jogam luz sobre os nomes de Jaime Durán Barba, consultor político que catapultou Mauricio Macri à presidência em 2015; e Zulema Menem, filha do ex-presidente Carlos Menem (1989-99). Pelo lado do kirchnerismo, os papéis citam atividades financeiras no exterior do já falecido Daniel Muñoz, que foi secretário do ex-presidente Néstor Kirchner, e de algumas figuras-chaves na ação judicial sobre o suposto pagamento de propinas por empreiteiros a governos peronistas.
Muito mais volumoso é o resultado da investigação no México, onde os documentos apontam mais de 3.000 pessoas. Entre elas se destacam três dos empresários mais ricos do país: o magnata da mineração Germán Larrea, a herdeira do grupo cervejeiro Modelo, María Asunción Aramburuzabala, e Olegario Vázquez Aldir, cujo grupo controla hospitais privados, redes de hotéis, seguradoras e meios de comunicação. Suas fortunas juntas somam mais de 30 bilhões de dólares.
Embora o destino dado ao dinheiro tenha sido diferente, coincidiram em usar paraísos fiscais para criar empresas que serviram de ferramenta para operar internacionalmente. Larrea chegou a abrir, entre 2013 e 2016, nove firmas nas Ilhas Virgens Britânicas, com as quais controlou, quase sem deixar rastro, a aquisição de imóveis de luxo nos Estados Unidos. Aramburuzabala comprou propriedades milionárias em Utah e Nova York e dois aviões. Já Vázquez Aldir e seu entorno, através de oito empresas opacas, adquiriram iates, um avião e pelo menos duas mansões. Nem Larrea nem Aramburuzabala responderam aos pedidos de esclarecimento do consórcio de jornalistas. Vázquez, por meio de seu advogado, afirma que cumpre todas as obrigações tributárias e jurídicas no México e no exterior.
Mas não são só os bilionários que recorrem a essas práticas (que são legais, desde que devidamente declaradas ao fisco). O atual secretário [ministro] de Comunicações e Transportes, Jorge Arganis Díaz Leal, aparecenos Pandora Papers como propietário de uma empresa criada nas Ilhas Virgens Britânicas, aberta com intermedição do escritório Alcogal e Stanford Financial Group, do bilionário Allen Stanford, que em 2012 recebeu a sentença de 110 anos de prisão nos EUA por uma fraude bilionária. Arganis reconheceu sua participação na sociedade, mas assinala por escrito que foi criada como parte da estratégia financeira que Stanford recomendava a seus clientes. Ele assegura que ainda não recuperou seu investimento, mas não esclarece se continua vinculado à empresa nem se declarou seus bens diante das autoridades mexicanas.
Outro personagem político que emerge com força no México é Julio Scherer Ibarra, que até um mês atrás era assessor jurídico do presidente Andrés Manuel López Obrador. Em 2017, figurava como único proprietário de uma firma com sede nas Ilhas Virgens Britânicas, com ativos num valor de dois milhões de dólares procedentes de seu trabalho como advogado privado. A companhia era dona de uma empresa nos Estados Unidos, que, por sua vez, possuía um luxuoso apartamento num bairro de classe alta em Miami. A entidade nas Ilhas Virgens Britânicas tornou-se inativa em 2019, 11 meses depois de que Scherer passasse a integrar o governo mexicano, mas a companhia norte-americana continua sendo dona do apartamento em Miami. Questionado sobre esses movimentos, o ex-assessor presidencial se limitou a dizer que nas datas em que fez os investimentos não era um funcionário público, mas um profissional independente.
Junto destes políticos, os Pandora Papers mostram como ao redor de determinados centros de poder mexicanos proliferaram personagens que utilizaram intensamente os serviços financeiros offshore. Assim ocorreu nos círculos próximos ao ex-presidente Enrique Peña Nieto (2012-2018) e também de grandes fornecedores da empresa estatal de petróleo Pemex, um gigante que atualmente arrasta uma dívida de quase 114 bilhões de dólares.
Os repórteres do EL PAÍS Eliezer Budasoff, Georgina Zerega, Elías Camhaji, Zorayda Gallegos, Federico Rivas Molina, Carla Jiménez, Marina Rossi, Regiane Oliveira e Inés Santaeulalia colaboraram com a elaboração desta reportagem.
Nas investigações dos Pandora Papers na América Latina participaram repórteres de: La Nación, elDiarioAR, Infobae, El Deber, Agência Pública, Metrópoles, Poder360, Revista Piauí, Ciper, LaBot, CLIP, El Espectador/CONNECTAS, Costa Rica Noticias, Proyecto Inventario, Noticias Sin, El Universo, El Faro, Plaza Pública, Contracorriente, Proceso, Quinto Elemento Lab, Univision, Confidencial, Grupo ABC Color, Convoca, IDL-Reporteros, Centro de Periodismo Investigativo, Armando.info.