29 de setembro de 2022. Por Insurgência Mineira
Na semana passada, no dia 16 de setembro, testemunhamos mais um episódio de violência em Belo Horizonte. Dessa vez, a vítima foi uma empregada doméstica, trabalhando em um dos bairros mais nobres da cidade, alvo de inusitada situação: pelos relatos que circulam quanto ao ocorrido, teria o agressor se indignado pelo fato da trabalhadora estar "gastando" água ao limpar a calçada do condomínio no qual trabalhava.
Este episódio ganha importância não só pelo grau de absurdo do ocorrido, mas por revelar sintomaticamente como uma limitada compreensão da problemática ambiental pode resultar em consequências sociais e políticas desastrosas. Dizemos limitada vez que responsabiliza individuos pelos problemas ecológicos experimentados na contemporaneidade, desprezando aspectos estruturais que aprofundam dia após dia o estado de barbárie em que vivemos. Barbárie esta que não se dá pelo “gasto” de água individual, mas sim pelo modo como a produção industrial, no campo e na cidade, o faz: a ficarmos em um exemplo, são 1,8 mil litros utilizados para produzir um quilo de soja exportada do agronegócio brasileiro, que invariavelmente serve à ainda mais perdulária e destrutiva produção de carne. Barbárie que se caracteriza por opressões multifacetadas constituintes de uma mesma lógica destruidora da natureza e da vida humana. A barbárie do capital.
A agressão a esta trabalhadora - situação ápice da projeção subjetiva de responsabilidades sistêmicas - encontra eco no processo eleitoral.
Isso se dá sobretudo com a discussão acerca da produção de lixo nas eleições através dos panfletos, santinhos e outros materiais gráficos, que reclamam ser discutidos dentro do marco do ecossocialismo.
Como demonstraremos, o que parece carecer neste debate são os resgates de nosso lugar de classe, nosso lugar como oprimidos e oprimidas, para discutir não só o ecossocialismo, como também para construir uma outra forma de nossa sociedade se relacionar com a natureza, sem opressões e em equilíbrio com as outras formas de vida existentes.
O ecossocialismo, ao se propor uma alternativa social e política ao modo de vida que hoje nos inscrevemos, não desconsidera as contradições que despontam de nossa realidade social e de nossas próprias práticas políticas: o descaso generalizado das organizações da classe com o tema ambiental e seu costumeiro imobilismo se unem à compreensão de que sem a prática transformadora dos oprimidos e oprimidas, daqueles que vivem de seu trabalho, não alcançaremos esse novo arranjo de vida.
Como denuncia Michael Löwy em seu clássico texto sobre o tema, não nos basta apenas o marxismo nessa empreitada, mas também o abandono de todas as suas escórias produtivistas.
Estas contradições devem ser tomadas, domadas, superadas. E não intensificadas.
Bem, e o que isso tem a ver com o mencionado episódio de violência e o aparecimento do debate de produção de lixo eleitoral/partidário nas eleições?
Entendemos que as duas situações gozam de origem comum e que em seu horizonte vão de encontro com práticas excludentes da classe trabalhadora, e que logo, alcançam de forma mais contundente a mulheres, negras e negros. Não bastasse a ingenuidade simplista dos argumentos, que de um lado promovem agressões explícitas e implícitas a essa parcela da população, isso ao reforçar a exclusão das parcelas superexploradas e marginalizadas dos espaços de acesso à informação e participação política, considerando seu largo histórico de interdição à cidadania, acesso a bens e serviços, portanto, do espaço político.
Quanto à insuficiência do argumento, é conveniente ressaltar a arbitrariedade quanto à definição do que é "lixo" e o que é uma campanha "limpa". Imediatista e espetacular - no melhor sentido de Debord - reputa "lixo" um material gráfico que pode (ainda que nem sempre o seja) ter importante papel de conscientização sócio-ambiental, enquanto considera "limpas" campanhas eleitorais marcadas pela mediocridade imediatista da imagem, da carência de conteúdo do virtual, da alienadora marca das redes sociais amparada na predação mineral, no trabalho escravo - tudo indispensável para produção de celulares, computadores e outros gadgets - e sobretudo na produção de resíduos tóxicos impassíveis de reciclagem, como o das descartáveis baterias marcadas pela lógica da obsolescência programada.
Ao reputar "lixo" - e sabemos que tudo que é assim nominado ocorre por resultantes sociais e históricas - materiais de conscientização política, inclusive recicláveis, desconsiderando o que são os efeitos deletérios da virtualização e da dependência tecnológica projetada em nossas vidas, pronuncia a alienação e a despolitização, ao invés de dar a ela combate.
Daí inexistir incompatibilidade entre a distribuição de panfletos e a pauta ambiental. Sobretudo quando esse material se coloca a promover conteúdos radicais, de forma local e não massiva/perdulária. Não podemos nos render a uma simplificação errônea da totalidade estrutural que deve pautar o agir ecológico. O que freará o colapso não será o esforço individualizado em aderir acriticamente a uma redução da pegada de carbono - ainda que não desconsideremos o componente ético de nossa agenda - , mas sim a aposta política coletiva.
Se panfletos, santinhos e lambes têm a potencialidade de atingir e sensibilizar mais pessoas para a construção de uma política com comprometimento socioambiental, não há como serem os inimigos da natureza! Se esse, denominado "lixo", tem a potencialidade de somar mais ainda a classe trabalhadora e aquela precarizada à luta de campanhas de esquerda que demarcam seus espaços de luta no antirracismo, no feminismo, no anti-LGBTQIA+fobia, e na luta contrária a tantas outras formas de opressão, há que defender o uso táctico de panfletos e santinhos no período eleitoral.
E não se trata de um cálculo histórico, que compensa o ônus ambiental com saldos ecológicos. Seja pela necessidade de abandonarmos a métrica de nossas vidas pela equivalência, seja pela imponderabilidade dessa avaliação, fundamentalmente esse debate também se inscreve em uma lógica de inclusão classista e etária.
Os inimigos da luta ecossocialista são os representantes de uma institucionalidade burguesa excludente, que se coloca a serviço da mineração e do agronegócio para fazer perpetuar a miséria no país, e não a classe trabalhadora. Essa exclusão é o que também gera quase 30 milhões de brasileiros e brasileiras sem acesso à internet ou com acesso limitado por planos telefônicos. Não fosse bastante, parcelas significativas da população, dada a carência de acesso a aparelhos, seja pela falta de hábito resultante de sua idade, também se vê excluída. Esse argumento ganha ainda mais valia considerando que é cada vez diminuta, em proporção, a parcela de jovens em um país que apesar da COVID-19 segue envelhecendo. É contra a desinformação e pela democratização do acesso aos debates, que não podem se restringir à virtualidade, que devemos nos insurgir.
A desconsideração de parcelas expressivas da população, seja por seus aspectos de classe ou etários, não nos permitem admitir o argumento da suficiência do virtual.
É esse tipo de descaso que levou a agressão da empregada doméstica, sobretudo em razão de estar desempenhando sua atividade laboral em decorrência do mando ao qual está submetida. Não só ela como muitas e muitos que se inserem nesse processo destrutivo do capital, porque necessitam realizar seu trabalho, consequentemente, necessitam do trabalho para sua sobrevivência. A classe trabalhadora não é a culpada, ela é parte dessas contradições.
Todavia, é do cerne destas contradições e de nossa inserção real no mundo que construiremos transicionalmente o novo.
É tendo em conta que nosso projeto de mundo é pra integralidade da humanidade, não comportando uma exclusão sequer, que buscaremos incidir politicamente junto a tantas e tantos quanto forem possíveis!
É por essa razão que a politizacão radical, antes da lacração de conveniência, é nossa baliza fundamental para a ação.
A luta pautada pela esperança de dias melhores reclama que saiamos da bolha digital dispostos a enfrentar as contradições da produção de resíduos, indo às ruas trocar com os nossos e as nossas para construção de uma alternativa possível de vida, que será ecossocialista ou não será.