Queimadas recorde mudaram o cenário até da capital mato-grossense, a 200 quilômetros da reserva, com o tradicional céu azul de Cuiabá tingido de cinza. Fogo ameaça araras-azul.
Juliana Arini, El Pais Brasil, 21 de agosto de 2020
Um cheiro de mato queimado entrou pela janela da casa de Zulmira Maria Lucia, de 67 anos, residente de Mata Cavalo, comunidade quilombola, situada no Pantanal, em Mato Grosso, no oeste do Brasil. “O fogo apareceu muito rápido e arriou todo o pasto. Perdemos tudo, a roça de banana e outras plantações”, conta Zulmira, sobre sua comunidade e as outras 28 vizinhas, onde vivem 40.000 quilombolas. Uma das casas mais atingidas é a da família de Maria da Paz, que perdeu todo o pasto e a cana-de-açúcar no incêndio e precisará comprar ração para alimentar o pequeno rebanho de dez animais. Da porta da varanda, Maria da Paz, segura o neto recém-nascido no colo. Tânia, a mãe do bebê, está internada com covid-19. Maria levanta os olhos cheios de água e faz um sinal de que não podemos nos aproximar por causa do bebê. Ela aponta para a área queimada e diz de forma lacônica: “Também perdemos tudo, o fogo chegou até aqui”, mostra, apontando para as marcas que os incêndios deixaram perto de casa.
O fogo chegou este ano com intensidade no Pantanal, um bioma de156.000 km² no extremo oeste do Brasil, entre Mato Grosso e Mato Grosso do Sul e as fronteiras da Bolívia, Argentina e Paraguai. Apesar de preservar 83% de suas matas, a região arde neste momento. Só no mês de julho foram mais de 1.601 focos de calor, os maiores da história do Pantanal desde que o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) iniciou o monitoramento da região. No mês de agosto, o problema de aprofundou. São 2.170 focos de calor em apenas 10 dias. “Esse número já é 28% maior em relação ao contabilizado em todo mês de agosto de 2019”, explica Vincíus Silgueiro, pesquisador do Instituto Centro de Vida (ICV), que atua no bioma há vinte anos. “Mais de 55% dos focos de calor estão em propriedades rurais cadastradas. A origem dos focos vem dessas áreas com forte presença humana.”
O quadro de emergência levou o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, a se deslocar para Mato Grosso no início desta semana. Da janela do avião que o trasladou para lá, ele pôde testemunhar o que os alertas de fogo já apitavam. “Ao longo da viagem podemos ver centenas de focos de queimadas, mas agora conseguimos detectar a origem e vamos penalizar todos os responsáveis”, alertou o ministro na tarde de terça-feira após sobrevoar pontos de queimadas na região.
O Governo Bolsonaro está cada vez mais pressionado pela má gestão ambiental na Amazônia, e há consenso que faltou organização e competência também para lidar com o bioma. Nesta sexta, o Diário Oficial publicou a exoneração do coronel Homero Siqueira, que estava à frente do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), um dos órgãos do sistema de vigilância e fiscalização das florestas. A decisão foi tomada por Salles em função do descontrole das queimadas no Pantanal, segundo os jornais O Globo e o O Estado de São Paulo. Siqueira seguiu a fórmula comum na gestão de Bolsonaro de trocar técnicos por militares em cargos do instituto que cuida das reservas nacionais, dizem seus críticos.
Quem conhece o Pantanal diz que faltou se antecipar aos fatos. “As ações precisam começar mais cedo. Só foram tomadas de forma tardia em 2020, quando os números [de queimadas] já estavam altos. Uma lentidão fatal para o bioma”, afirma Júlio Sampaio, que coordena o programa Cerrado Pantanal no grupo ambientalista WWF-Brasil. Ele cita o decreto federal que proibiu o uso do fogo no manejo das propriedades, publicado apenas este ano.
Bombeiros rodeados pelo fogo
O combate ao fogo tem sido um desafio complexo pelas características do Pantanal, como admitiu Salles na entrevista de terça. “Estamos deslocando efetivos, mas o ambiente do Pantanal é muito seco, quente e tem muito vento”, disse. Um dia antes, na segunda-feira, 17, equipes locais enfrentaram momentos de terror. Seis homens do Corpo de Bombeiros Militar de Mato Grosso foram surpreendidos pela velocidade e intensidade das linhas do fogo em Poconé, área vizinha de Mata Cavalo, e acabaram rodeados pelas chamas. Foi necessário acionar o helicóptero Black Hawk H-60 da Força Aérea Brasileira para o resgate emergencial. Com sorte ninguém se feriu.
O fogo já atinge em cheio os animais da mata. Uma onça-pintada teve 70% do corpo queimado e precisou ser transportada no helicóptero do Exército na segunda-feira, 16, para Cuiabá. Foi internada no hospital veterinário da universidade federal do Estado. Em desespero com o fogo, o animal invadiu quintais na comunidade Poconé, gerando pânico na população. Quase 500 espécies de aves e 132 mamíferos vivem no Pantanal.
O quadro preocupa o Mato Grosso, que vive do turismo na região, e tem ali uma reserva natural importante para o equilíbrio climático mundial. “Os incêndios já consumiram 6% do Pantanal”, disse o governador, Mauro Mendes (DEM), ao lado do ministro Ricardo Salles, cada vez mais cobrado para atuar em prol da preservação das matas brasileiras.
As queimadas do Pantanal mudaram o cenário até da capital mato-grossense, a 200 quilômetros da reserva. O tradicional céu azul de Cuiabá foi tingido de cinza. A fumaça acumulada obriga os aviões aterrissarem com a ajuda de aparelhos por falta de visibilidade no aeroporto principal do Estado, o Marechal Rondon. Mato Grosso vive das glórias de ser o maior produtor de soja do mundo, ao mesmo tempo em que lidera os incêndios em 2020. Segundo Inpe, são 769 registros, um terço de tudo que queima no Brasil. Até quarta-feira (19) o fogo seguia sem controle, especialmente na Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) do Sesc Pantanal.
A Fazenda São Francisco do Perigara, vizinha à reserva, foi uma das mais atingidas pelas queimadas. Ali esta a maior concentração de ninhos naturais de arara-azul do mundo. O local é polo de pesquisa do Instituto Arara Azul. “Ali existem 700 animais e mais de 77 ninhos monitorados, só poderemos saber a dimensão do estrago causado pelo fogo quando o combate acabar. Mas, muitos ninhos já estavam com filhotes e os animais perderam o seu alimento para o fogo, as palmeiras do Bacuri”, explica Neiva Guedes, diretora do Instituto Arara Azul.
Amazônia e Pantanal
A reserva matogrossense tem uma relação umbilical com a Amazônia. Os dois biomas têm grande parte de suas nascentes localizadas na mesma serra, a Chapada dos Parecis, em Mato Grosso. É ali que estão 70% das águas que irão formar a planície do Pantanal, em Mato Grosso do Sul. “A região depende dessa água que vem das florestas do norte de Mato Grosso, na região amazônica. Mas estamos registrando cada vez menos chuvas ali”, lamenta Felipe Dias, diretor-executivo do Instituto SOS Pantanal, instituição que monitora o desmatamento na região. A projeção é que as secas serão cada vez mais severas daqui para a frente. “Temos que nos preparar para não perdermos o Pantanal”, explica Dias. “O cenário atual é propício para o tripé do fogo: inverno quente, baixa umidade e vento forte”, conclui.
Uma das causas para tanto fogo é a seca. A Régua de Ladário, em Mato Grosso do Sul, fixada pela Marinha Brasileira em 1900 para medir as cheias do rio Paraguai, há 47 anos não atingia índices tão baixos. “Esse regime de secas e chuvas é a natureza do Pantanal Os antigos sempre disseram que os períodos de alternância duram até dez anos. Isso significa que temos que nos preparar”, alerta Dias.
O fogo no Pantanal é um problema para o mundo. As queimadas e mudanças no uso da terra são responsáveis por 80% das emissões brasileiras de gases que aquecem o planeta e provocam as mudanças climáticas. O Brasil já esteve em quarto lugar no ranking mundial dos emissores de gases-estufa durante anos de descontrole nos incêndios e desmatamento, como em 2005.
O país saiu da lista dos dez maiores emissores em 2019, após controlar o desmatamento na Amazônia. Mas em 2016 ainda estava na sexta posição, e se a situação sair fora de controle em outros biomas, as emissões voltam a subir. As emissões também podem reduzir os recursos financeiros para controlar as queimadas. Hoje, são os compromissos estaduais e nacionais de redução do desmatamento na Amazônia que dão suporto financeiro às ações de combate às chamas.
O acordo assinado entre o Governo de Mato Grosso e países europeus durante a Conferência Mundial do Clima de Paris, a Cop-21, garantem repasses anuais ao Estado. O programa conhecido como Redd+ para Pioneiros concede aporte financeiro aos grandes desflorestadores que controlam a perda de florestas. Mato Grosso era o segundo em perdas de áreas naturais na Amazônia, mas hoje está em sétimo, segundo o Inpe. O controle garantiu um investimento 22 milhões de reais repassados por bancos alemães e britânicos para o combate às queimadas.
Segundo a Secretaria do estado de Meio Ambiente (Sema), esse recurso foi aplicado nas ações conjuntas do Comitê do Fogo, composto por entidades civis, públicas e organizações não governamentais. A Sema fornece equipamentos e diárias para realizar as operações. Desde março, foi repassado 680.000 reais em diárias para os Bombeiros Militares e demais profissionais que atuam diretamente no combate às queimadas.
O ano passado já havia sido crítico em termos de estiagem. “Tivemos picos de temperatura e baixas de umidade em todo o Pantanal”, diz Júlio Sampaio da Silva, da WWF-Brasil. “O fogo é algo que vemos desde o início de 2020. E as queimadas têm uma origem na ação humana. O fogo começa pela mão do homem, através da limpeza e áreas e renovação de pastagens”, explica. “É muita irresponsabilidade colocarem fogo em períodos críticos de seca. Mesmo na chuva, os incêndios aconteceram e marcaram que já teríamos um ano atípico.”
As queimadas deixarão marcas profundas. “Para os insetos é uma perda bastante acentuada nesse momento de incêndio, porque são animais que não têm mobilidade de longo alcance, muitos deles são polinizadores, fundamentais para o desenvolvimento das plantas”, explica Cristina Cuiabalia, bióloga e gerente de Pesquisa e Meio Ambiente do Polo Socioambiental Sesc Pantanal. Não são os únicos: répteis também acabam sendo consumidos pelo fogo. “As aves até conseguem migrar entre um ambiente e outro, mas perdem-se ninhais e dormitórios, o que representa a perda de uma geração, já que estamos bem na estação reprodutiva da arara-azul, do tuiuiú”, segue Cuiabalia.
Sizenando Carmo Santos, 62 anos, explica que os quilombolas tentaram chamar o Corpo de Bombeiros por horas. “Ligamos muitas vezes. Eles chegaram quando já não conseguiam fazer nada, o fogo tinha se alastrado por tudo. Ficaram só olhado. Fomos nós mesmos que evitamos que as casas se perdessem”
Covid-19 e fogo
As autoridades de Cuiabá e Várzea Grande, as maiores cidades de Mato Grosso, precisam conciliar os efeitos das queimadas na saúde em meio a pandemia do novo coronavírus. O Estado foi considerado em julho, pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), como um dos epicentros da covid-19 no Brasil. Com uma curva acentuada no número de casos e poucos leitos hospitalares, são quase 80.000 casos, para 450 leitos de Unidades de Terapias Intensiva públicas.
A Secretaria da Saúde afirma que a taxa de ocupação segue sob controle, com pouco mais de 20% de leitos disponíveis, porém o Ministério Público de Mato Grosso decretou quarentena restritiva emergencial duas vezes no Estado entre junho e julho por falta de leitos.
Na Comunidade de Mata Cavalo a população ainda debate o que fazer após a perda das hortas. “As pessoas dizem que estamos perto de cidades, mas para o quilombola sair de sua casa a dez quilômetros do asfalto e ir a um mercado precisa de cem reais de frete. Por conta da pandemia do coronavírus, o ônibus que fazia nossa linha parou em abril”, diz a presidente da Associação de Mata Cavalo de Baixo, Arlete Pereira, 54 anos.
Para o agente de saúde, Edson Batista, de 51 anos, os efeitos das queimadas podem agravar a pandemia. “Com essa seca, sem hortas e o auxílio da pandemia acabando (em setembro), as famílias ficarão sem comida. Já temos alguns casos aqui de coronavírus, e um óbito foi registrado. Os problemas respiratórios gerados pelas queimadas também vão induzir as famílias a procurarem tratamento nos hospitais da capital. Não sei como serão os próximos meses”, diz o agente de saúde Batista.