Ao ver as imagens de desespero em Cabul, não há como não pensar em refugiados que compartilham sentimentos muito parecidos, independente de qual seja sua origem ou destino.
Jamil Chade, El País Brasil, 17 de agosto de 2021
Quando alguém se agarra num trem de pouso de um avião, tentando voar, ou quando entra em um barco furado para cruzar o Mediterrâneo, mesmo sem saber nadar, há apenas uma constatação que pode ser feita: para aquelas pessoas, ficar em terra firme é sinônimo de morte.
Em quase duas décadas cobrindo fluxos de refugiados, êxodos e crises humanitárias, uma pergunta me atormentou: existe alguma fronteira para o desespero? Haverá algum muro que irá frear alguém fugindo da fome, miséria e violência?
Um refugiado sírio, certa vez numa ilha grega, me resumiu esse sentimento quando eu perguntei se ele não tinha medo. “Qual o tamanho do pesadelo que você acha que existia na minha vida para eu decidir colocar meus filhos num barco, atravessar o mar sem saber nadar, gastar todo meu dinheiro naquela viagem e ainda não saber se alguém sobreviveria?”
Ao ver as imagens de desespero do aeroporto de Cabul, não havia como não pensar nesses refugiados que compartilham sentimentos muito parecidos, independente de qual seja sua origem ou destino.
As cenas de corpos que despencam do céu marcarão o ano de 2021 e certamente entrarão para os livros de história. Talvez num capítulo anterior, a foto da retirada dos americanos de Saigon em 1975 garantirá uma coerência interessante para o eventual manual sobre a realidade do mundo sem filtros.
Mas se essas fotos entram nos programas escolares como o símbolo da derrota de uma superpotência, elas precisam passar a ser reflexos de uma outra história: a da traição e hipocrisia dos grandes centros de poder no mundo.
No atual debate sobre o destino do Afeganistão, soldados britânicos se queixam que arriscaram suas vidas em vão por anos e, agora, o Talibã voltou ao poder. Contribuintes americanos se questionam por qual motivo mais de 2 trilhões de dólares foram destinados para a reconstrução do país cujo final foi melancólico. Debates similares ocorrem na Alemanha e França.
Mas a verdadeira história de indignação é de quem fica. Não por opção. Mas por traição.
Ao longo dos últimos 20 anos, liderado por um ousado programa da ONU, milhões de refugiados afegãos que viviam de forma precária no Irã e no Paquistão retornaram para suas cidades. A promessa era de que a história não seria desleal com eles, e muito menos as potências ali presentes.
Alguns avanços ocorreram. Não há como negar. Mas o projeto de “reconstrução” do Afeganistão provou ser uma ficção. Mais de 40% da população continua a viver abaixo da linha da pobreza, o analfabetismo é um dos maiores do mundo, doenças que atingiram a Europa há séculos continuam a fazer vítimas e a corrupção era, segundo a ONU, “endêmica”.
Nesta terça-feira, o aeroporto da capital afegã anunciou que voltará a funcionar. Mas apenas para estrangeiros. A população local, pelo menos por enquanto, será proibida de embarcar.
De forma inesperada, a pista de decolagem de Cabul se transformou na metáfora empoeirada e ensanguentada do caos de uma ocupação que jamais traduziu em realidade suas promessas.
Nos corpos empilhados em aviões e no desespero por encontrar um espaço rumo ao desconhecido, ficava claro que o desembarque americano duas décadas antes jamais foi feito em nome de um resgate do povo afegão.
Joe Biden, em sua única declaração até agora sobre o tema, cedeu e confessou: o objetivo nunca foi o de reconstruir o país. Nunca foi.
Na Europa, a hipocrisia não é diferente. Governos europeus, mesmo com o Talibã avançando, insistiam em devolver refugiados para o país na Ásia Central, alegando que se tratava de um “local seguro”. A operação, assim como no caso americano, nunca foi pela população.
Quem hoje começa a estender sua influência pela região —a China— também deixa claro que nem a democracia e nem os direitos humanos serão elementos que irão definir a relação com as novas autoridades do Afeganistão. Nunca será pela população.
Ignorados, os afegãos são agora entregues pelas potências às mãos do Talibã que, num teatro extremamente bem ensaiado, promete o suposto “o fim da guerra”, a anistia a todos e os direitos às mulheres. Sempre, porém, dentro das “estruturas” da cultura local e da religião. Ou seja, a autonomia dessas mulheres e de seus corpos terá uma fronteira.
O discurso “moderado” ainda se contrasta com alertas emitidos nos últimos dias por parte da ONU sobre crimes de guerra e crimes contra a humanidade cometidos pelo grupo, ao avançar até Cabul.
Enquanto os sonhos de uma transformação se desfazem, as vozes se proliferam entre ativistas como Malala, negociadores e intelectuais indicando que, diante da traição, as potências têm a obrigação de socorrer pelo menos uma parcela dessa população. Uma atenção especial deve ser dado aos afegãos que acreditavam no conto e passaram a trabalhar para as forças estrangeiras. Agora, são os que mais temem por suas vidas, ao serem considerados como traidores.
Khaled Hosseini, escritor afegão, insiste que os americanos têm o dever moral de resgatar essas pessoas que, por anos, serviram aos estrangeiros. Sua esperança é de que se repita o que a Casa Branca fez com 125 mil vietnamitas que, em 1975, foram retirados do país do Sudeste Asiático diante da derrota americana.
Hoje, alguns estimam que cerca de 20 mil pessoas estariam nessa situação, incluindo ativistas de direitos humanos e jornalistas.
O governo Biden já anunciou que vai reservar cerca de 500 milhões de dólares para atender a essa população mais vulnerável e que eventualmente tenha de ser retirada do país.
O valor do pacote, porém, é o equivalente a 0,05% do que os americanos destinaram para o exército afegão, que sequer se deu ao trabalho de lutar.
Nunca foi pelo povo afegão.
Jamil Chade é correspondente na Europa desde 2000, mestre em relações internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais de Genebra e autor do romance O Caminho de Abraão (Planeta) e outros cinco livros.