Ho Chi Minh, em sua morada eterna, deve estar se deliciando, com um sorrisinho celestialmente irônico. O Vietnã foi o anfitrião, virtual, da 37ª Cúpula da ASEAN, na qual os dez países da ASEAN mais China, Japão, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia assinaram, no último dia da conferência, a Parceria Econômica Regional Ampla, ou RCEP, a sigla em inglês.
Pepe Escobar, Alainet, 18 de novembro de 2020. Tradução de Patricia Zimbres.
A RCEP, que vem sendo preparada há oito anos, interliga 30% da economia global e 2.2 bilhões de pessoas. Ela é o primeiro marco auspicioso dos Frenéticos Anos 20, que começaram com um assassinato (do General Soleimani, do Irã), seguido de uma pandemia global e, agora, de insinuações agourentas de uma suspeitíssima Reinicialização Global.
A RCEP confirma o Leste Asiático como o foco geoeconômico incontestável. O Século Asiático, de fato, já estava sendo preparado na década de 1990. Fui um dos primeiros que identificaram o fenômeno, entre asiáticos e expatriados ocidentais: já em 1997, publiquei o livro 21, o Século Asiático.
A RCEP vai forçar o Ocidente a se dar ao trabalho de entender que o principal, aqui, não é que a RCEP "exclua os Estados Unidos", ou "seja um projeto chinês". A RCEP é um acordo amplo leste-asiático, de iniciativa da ASEAN, e que vem sendo debatido entre iguais desde 2012, incluindo-se o Japão que, para todos os fins práticos, se coloca como parte do Norte Global industrializado. Trata-se do primeiro acordo comercial de todos os tempos unindo potências asiáticas como China, Japão e Coreia do Sul.
A estas alturas já ficou claro, pelo menos em vastas áreas do Leste Asiático, que os vinte capítulos da RCEP irão resultar em uma redução geral de tarifas, na simplificação dos procedimentos alfandegários com a abertura total de pelo menos 65% dos setores de serviços e com limites mais altos para a participação acionária estrangeira, na solidificação das cadeias de fornecimento, privilegiando regras de origem comuns, e na codificação de uma nova regulamentação do comércio digital.
O xis da questão é que as empresas poderão economizar e exportar para qualquer um dos quinze países, sem ter que se preocupar com as muitas e diferentes exigências de cada um deles. É disso que se trata quando se fala em mercado integrado.
Quando a RCEP se encontra com a Iniciativa Cinturão e Rota
O mesmo CD arranhado vai continuar tocando sem parar, dizendo que a RCEP facilita as "ambições geopolíticas" da China. Mas não é disso que se trata. A questão é que a RCEP evoluiu como par natural da Iniciativa Cinturão e Rota que, sendo uma estratégia sustentável de desenvolvimento e comércio, abrange não apenas o Leste Asiático, penetrando até a Ásia Central e Oriental.
A análise do Global Times está correta: o Ocidente nunca deixou de distorcer a Cinturão e Rota, recusando-se a reconhecer que "a iniciativa que eles tanto caluniam é, na verdade, enormemente popular na grande maioria dos países situados ao longo das Rotas da Seda".
A RCEP dará um novo foco à Iniciativa Cinturão e Rota - cujo estágio de "implementação", segundo o cronograma oficial, só terá início em 2021. O financiamento de baixo custo e os empréstimos especiais em moeda estrangeira oferecidos pelo Banco de Desenvolvimento da China irão se tornar muito mais seletivos.
Muita ênfase será colocada na Rota da Seda da Saúde - em especial por todo o Sudeste Asiático. Projetos estratégicos terão prioridade: eles giram em torno do desenvolvimento de uma rede de corredores econômicos, zonas logísticas, centros financeiros, redes de 5G, portos marítimos de importância-chave e, principalmente, alta-tecnologia de curto e médio prazos relacionada à saúde pública.
As discussões que conduziram à minuta final da RCEP enfocaram um mecanismo de integração capaz de contornar facilmente a OMC, caso Washington insista em sabotá-la, como ocorreu durante o governo Trump.
O passo seguinte poderia ser a constituição de um bloco econômico mais forte até mesmo que a União Europeia - o que não é uma possibilidade longínqua quando se tem China, Japão, Coreia do Sul e dez países da ASEAN trabalhando juntos. Em termos geopolíticos, o principal incentivo, além de toda uma série de compromissos financeiros imperativos, seria solidificar algo semelhante a Façam Comércio, Não Guerra.
A RCEP marca o irremediável fracasso da TPP da era Obama, que fazia às vezes de uma "OTAN comercial" na estratégia "Pivotar para a Ásia" sonhada pelo Departamento de Estado. Trump destruiu a TPP em 2017. A TPP não era um "contrapeso" à primazia chinesa no comércio asiático, e sim um vale-tudo aberto às 600 empresas multinacionais que participaram de sua elaboração. O Japão e a Malásia, principalmente, nunca se deixaram enganar.
A RCEP marca também o irredimível fracasso da falácia do desacoplamento, e também de todas as tentativas de provocar discórdia entre a China e seus parceiros comerciais leste-asiáticos. Todos esses parceiros, agora, irão privilegiar o comércio interno ao grupo. O comércio com países não-asiáticos terá importância secundária. E todas as economias da ASEAN darão total preferência à China.
Mesmo assim, as multinacionais dos Estados Unidos não serão alijadas, uma vez que elas poderão se beneficiar da RCEP por meio de suas subsidiárias nos 15 países-membros.
E a Eurásia Maior?
E, então, temos a proverbial bagunça indiana. A versão oficial de Nova Delhi é que a RCEP "afetaria o ganha-pão" de indianos vulneráveis. Isso é linguagem-código para mais invasão de produtos chineses baratos e eficientes.
A Índia fez parte das negociações da RCEP desde o início. Retirar-se agora - com um condicional "talvez voltemos a nos filiar" é, mais uma vez, um espetacular caso de auto-esfaqueamento pelas costas. O fato é que os fanáticos do Hindutva que apóiam Modi estão apostando no cavalo errado: a parceria Quad somada à estratégia Indo-Pacífico apoiada pelos Estados Unidos, que significa uma tentativa de conter a China, obstruindo assim o estreitamento de laços comerciais.
Nenhum "Made in India" vai compensar o estúpido erro geoeconômico e diplomático que implica, principalmente, que a Índia virá a se distanciar dos dez países da ASEAN. A RCEP consolida a China, e não a Índia, como o motor incontestável do crescimento do Leste Asiático em meio ao reposicionamento das cadeias de fornecimento pós-covid.
Um desdobramento geoeconômico muito interessante é o que a Rússia irá fazer. No momento, a prioridade de Moscou é a luta sisífica de administrar a turbulenta relação com a Alemanha, a maior parceira comercial da Rússia.
Mas há então a parceria estratégica Rússia-China - que deve ser aprofundada em questões econômicas. O conceito de Eurásia Maior proposto por Moscou implica um maior envolvimento tanto com o Oriente quanto com o Ocidente, incluindo a expansão da União Econômica da Eurásia (UEE) que, por exemplo, firmou acordos de comércio com países da ASEAN, como o Vietnã.
A Organização de Cooperação de Xangai (OCX) não é um mecanismo geoeconômico. Mas é importante notar o que o Presidente Xi Jinping disse em sua fala no Conselho de Chefes de Estado da OCX, na semana passada.
Aqui vai a principal citação de Xi: "Temos que apoiar firmemente os países em questão no que se refere ao avanço de suas principais agendas políticas internas nos termos da lei; à manutenção da segurança política e da estabilidade social e ao combate resoluto às forças externas que, a qualquer pretexto, interfiram nos assuntos internos dos estados-membros".
Isso, aparentemente, nada tem a ver com a RCEP. Mas há diversas intersecções significativas. Não à interferência de "forças externas". Pequim está levando em conta as necessidades dos membros da OCX em termos de vacinas de covid-19 - e isso pode se estender à RCEP. A OCX - bem como a RCEP - é uma plataforma multilateral para mediação das disputas entre os estados-membros.
Tudo o que foi dito acima aponta para a natureza interseccional da Iniciativa Cinturão e Rota, da União Econômica da Eurásia, da Organização de Cooperação de Xangai, da RCEP, BRICs+ e do Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura, o que significa uma integração mais estreita da Ásia - e da Eurásia - em termos geoeconômicos e geopolíticos. Enquanto os cães da distopia ladram, a caravana asiática - e eurasiana - continua a passar.