O educador Paulo Freire, um dos mais importantes intelectuais brasileiros, com enorme reconhecimento internacional, faria 100 anos. Muitas atividades e escritos em sua homenagem têm sido organizados, alguns, inclusive, em defesa do seu legado, atacado por grupos conservadores e de direita.
Sergio Haddad, Revista Educação, 17 de março de 2021
Paulo Freire ganhou visibilidade nacional em janeiro de 1963, quando ele e sua equipe do serviço de extensão cultural da então chamada Universidade de Recife desenvolveram um programa de alfabetização com 300 adultos na cidade de Angicos, Rio Grande do Norte, a convite do governador do estado, Aloisio Maranhão. A experiência foi propagandeada nacionalmente por interesses políticos, e ganhou reconhecimento porque jovens e adultos se alfabetizavam rapidamente, em 40 horas, e saíam dos seus estudos com maior consciência dos seus problemas.
No encerramento das aulas, várias autoridades estiveram presentes a convite do governador, dentre elas, o presidente da República, Jango Goulart, e o general Humberto Castelo Branco, comandante do IV exército. Jango, impressionado com o que vira em Angicos, convidou o educador para coordenar uma ação nacional de alfabetização. Paulo Freire mudou de Recife, sua cidade natal, para Brasília e começou a trabalhar preparando os diversos estados brasileiros. O general Castelo Branco, por outro lado, comentou para alguns jornalistas presentes: “estão engordando cascavéis nesses sertões”, preocupado com a politização da metodologia utilizada.
Ditadura e a educação libertadora
Em abril de 1964, um golpe civil-militar depôs o presidente da República, cancelou o Programa Nacional de Alfabetização e prendeu por 40 dias o seu criador em Recife. O general Castelo Branco tornou-se o primeiro presidente militar depois do golpe. Paulo Freire, sentindo-se ameaçado, acabou por se exilar na embaixada da Bolívia.
Os militares que assumiram o poder viram no Método Paulo Freire um potencial explosivo capaz de desestabilizar o equilíbrio da tradicional política brasileira dominada por suas elites. Ao planejar alfabetizar 1,8 milhão de pessoas em 1964, o Programa Nacional de Alfabetização faria com que muitos dos currais eleitorais fossem desmontados pelo voto consciente destes novos eleitores.
É preciso lembrar que naquela época pessoas que não sabiam ler nem escrever não podiam votar. Eram 15,9 milhões de jovens e adultos em 1960, 39,6% da população nessa faixa etária.
O trabalho de alfabetização começava por um levantamento dos principais temas/problemas do cotidiano enfrentado pela população que iria se alfabetizar, por exemplo: temas relativos à cultura local, problemas vinculados à saúde do povo, questões relativas ao futuro do trabalho dos alfabetizandos etc. Este é o sentido primeiro da pedagogia proposta por Freire: fazer a leitura do mundo preceder a leitura da palavra. É a partir da leitura crítica do cotidiano das pessoas de uma determinada comunidade que tem início o processo de aprendizagem.
A alfabetização
Os temas geradores que davam início ao processo de alfabetização eram apresentados por meio de uma imagem, por exemplo, um tijolo, que servia como elemento detonador de uma discussão estimulada pelo coordenador do círculo de cultura (a sala de aula) sobre questões relativas ao trabalho em uma olaria, às condições de habitação da população, às diferenças no modo de vida produzidas pelas desigualdades sociais, e assim por diante. Os educandos procuravam ir às raízes dos problemas, superando a rotina de convivência com eles, avançando sobre as suas causas e as consequências para a sua vida.
Feita a discussão, a palavra “tijolo” era apresentada junto com a imagem. Vinha carregada dos significados produzidos pelo debate anterior. Posteriormente a palavra era dividida em suas sílabas: ti-jo-lo; na sequência, apresentavam-se as famílias de cada sílaba: ta-te-ti-to-tu, ja-je-ji-jo-ju, la-le-li-lo-lu. Cada pessoa então seria convidada a formar novas palavras com as famílias apresentadas, por exemplo: tatu, lula, lajota.
Alegria
Paulo utilizaria naquele momento os recursos disponíveis para a construção do seu método. Estávamos no início dos anos 1960. Novas metodologias e perspectivas pedagógicas viriam. Em Cartas a Cristina, reconheceria a importância de estudos posteriores ao afirmar ser “impossível relegar a um plano secundário os estados atuais da sócio e da psicolinguística”.
Duas questões se colocam a partir dessa observação. Paulo Freire sempre sugeriu aos seus seguidores não o imitar, mas sim reinventar novas formas do fazer político-pedagógico para cada tempo. A segunda questão é o equívoco em reduzir o trabalho de Paulo Freire ao chamado Método Paulo Freire. Claro que havia um método de alfabetização, no entanto, o que o educador produziu foi uma teoria do conhecimento, um “caminho epistemológico”, como afirmou em entrevista para O Pasquim, em 1978.
E qual é este caminho? Paulo acreditava que qualquer ser humano, diferentemente de outros seres vivos, era vocacionado ontologicamente a ensinar e a aprender. Por isso, em sua pedagogia, o diálogo entre os participantes é um ponto central, pois é por meio dele que as pessoas aprendem, constroem a sua história, produzem cultura.
“Não há saber mais, ou saber menos, há saberes diferentes”, dizia, todas as pessoas são produtoras e consumidoras de conhecimento. Acreditava na práxis como motor da transformação social. Não uma práxis vazia, um ativismo inócuo, mas sim naquela molhada pela teoria, pelo conhecimento, que se refazia em cada luta cotidiana. Nada de cartilhas que falavam sobre um mundo distante do educando. Nada de decorar palavras sem sentido, copiando nos cadernos, mas sim criá-las em um processo permanente de descoberta, baseado em uma pedagogia ativa. Estes elementos, presentes nas suas primeiras experiências, permaneceram ao longo da vida com o educador, adaptando-se às novas experiências pedagógicas que viria a vivenciar.
Exílio e reconhecimento internacional
Paulo Freire, sua esposa Elza e seus cinco filhos saíram exilados do Brasil em 1964. Depois de uma breve passagem pela Bolívia, fixaram-se no Chile. Ali, Paulo trabalhou com camponeses e auxiliou o Ministério da Educação no campo da alfabetização. Foi no Chile que Paulo escreveu Pedagogia do Oprimido, sua obra mais importante, cuja publicação, em 1970, fê-lo ser ainda mais conhecido internacionalmente. Em 1969 mudam-se para os Estados Unidos, trabalhou como professor visitante da Universidade Harvard. Em 1970, mudam-se novamente, desta vez para Genebra, na Suíça, onde trabalharia por 10 anos no Conselho Mundial de Igrejas, sendo que os últimos cinco foram dedicados em grande parte ao trabalho de educação com ex-colônias portuguesas na África.
Voltou ao Brasil em 1980, depois de mais de 150 viagens internacionais, reconhecido em todos os continentes por suas ideias e práticas. Passou a trabalhar em duas universidades paulistas: PUC-SP e Unicamp. Foi secretário de Educação no município de São Paulo, convidado pela prefeita Luiza Erundina, em 1989. Faleceu em 1996, aos 74 anos.
Paulo Freire é uma das principais vozes da Pedagogia Crítica, aquela que não separa a educação da política. Para o educador não há neutralidade na educação: sendo um produto da sociedade, ela se organiza como reflexo de projetos políticos em disputa.
Seu projeto estava do lado dos oprimidos, por isso sua pedagogia incomoda os poderosos, os opressores, as elites fechadas ao diálogo. Proclamava valores éticos, estéticos e políticos que tinham por base uma profunda crença na capacidade do ser humano de se educar e amar para poder participar da construção de um mundo melhor, mais justo e respeitador da natureza.
Seu legado é incomensurável.
Sérgio Haddad é doutor em história e filosofia da educação, pesquisador e professor. Autor do livro O educador: um perfil de Paulo Freire (ed. Todavia).