Julia Almeida Vasconcelos da Silva, 22 de junho, para o Le Monde Diplomatique
As declarações do presidente do Superior Tribunal Militar (STM), general Luís Carlos Gomes Mattos, de que a oposição estaria “esticando a corda” da democracia não são fato novo. Inúmeros foram os pronunciamentos similares ao longo do governo Bolsonaro de diferentes representantes das Forças Armadas e, até mesmo antes das eleições de 2018 com o famoso tuíte ameaçador do general Villas Boas acerca do habeas corpus de Lula no STF – que acabou tirando o ex-presidente das eleições, mesmo figurando em primeiro lugar nas pesquisas.
A realidade da intervenção de militares na política e, atualmente, de uma profunda militarização do Estado brasileiro, é concreta e inafastável, sendo importante para qualquer caracterização da cambaleante “democracia” brasileira. Mas vale alertar que tivemos, no último ano, um aprofundamento da militarização e sucessivos “eventos-teste” de Bolsonaro na radicalização do seu controle sobre as Forças Armadas. Nessa construção, cuja conclusão é imprevisível, o general Pazuello tem tido um papel que merece uma análise mais acurada.
No tabuleiro de xadrez, o cavalo é quem faz os movimentos menos previsíveis, o famoso “L”, e acaba sendo fundamental para a dilatação das fronteiras e o movimento do jogo. O Cavalo, que não anda para frente, para trás ou na diagonal, é a única peça que sai das fronteiras usuais entre caminhos, que se movimenta de outra forma e em outro sentido. Ele rompe com uma certa lógica de definição de fronteiras e, por isso, é uma peça tão importante para a sua expansão.
No xadrez de Bolsonaro, Pazuello tem cumprido esse papel. A estratégia parece boçal, mas é arquitetada e profundamente complexa. Sua função tem sido dilatar fronteiras e refazer limites, sendo um dos personagens que mais tem contribuído para a mudança de patamar autoritária de Bolsonaro. Vejamos.
Pazuello foi o único ministro militar da ativa à frente de um ministério, todos os demais estavam na reserva. Há um simbolismo importante nisso, ele representou um ministério realmente militar, uma completa fruição das Forças Armadas no governo e, em verdade, uma certa simbiose. Isso significa que não se pode alegar, nem que por disputa de narrativas, a perspectiva de que era apenas um ministério civil, conduzido por um militar já na reserva, exercendo uma função de agente público como qualquer outro ministro. Pois, se o militar está na ativa, a sua atividade à frente do Ministério tem caráter militar. E isso não é qualquer quebra de barreira na relação entre civis e militares desde a redemocratização. Nenhum militar ficou tanto tempo numa função ministerial sem passar para a reserva.
Mas mais do que isso, à frente não de qualquer ministério, mas do Ministério da Saúde, que executou a política mais ousada e criminosa de Bolsonaro. O projeto negacionista em relação à pandemia, que visava a manutenção de um determinado status quo e da disputa política com governadores presidenciáveis para desresponsabilizar Bolsonaro pelos efeitos da pandemia, só conseguiu ser executada por um militar, que conduziu a política genocida de Bolsonaro, por meio de um processo de militarização do Ministério da Saúde, que já acumulou mais de 500 mil mortos e um nível de precarização da vida e aumento da desigualdade sem precedentes. Seu depoimento na CPI da Pandemia foi icônico nesse sentido. O patamar de deferência e lealdade que teve com Bolsonaro, chegando a se autoincriminar para não utilizar um habeas corpus que poderia preservá-lo, mas necessariamente, manteria o foco em Bolsonaro – não é coincidência que, no relatório atual da CPI, Pazuello esteja como investigado e Bolsonaro não.
Ressalte-se que esse ato de lealdade teve como principal característica a radicalização da perspectiva da hierarquia, da concepção antirrepublicana de autonomia e responsabilidade de um agente público, que não pode apenas cumprir ordens, mas precisa responder à legalidade e conduta ética administrativa. Pazuello, ajuda a romper com essa dinâmica que foi fundamental na concepção de Estado moderno, pois é um cuidado com a res publica que todo funcionário público tem que arcar e que visa evitar a apropriação do Estado por interesses privados.
Após toda essa repercussão, fato que gerou enorme controvérsia foi a aparição de Pazuello, na mesma semana de seu depoimento, na manifestação no Rio pró governo, a “Motociata”, infringindo a legalidade por ser vetada a militares a participação política, conforme lista do anexo 1 do Decreto nº 4.346, de 26 de agosto de 2002. É evidente que não foi mera coincidência, mas ato pensado e formulado por Bolsonaro e por Pazuello. E isso não tem nenhuma correlação com um comportamento irresponsável ou inconsequente, mas faz parte de uma estratégia, que está ficando bastante clara. Na companhia de Bolsonaro, portanto comandante em chefe das Forças Armadas, Pazuello rompe um importante limite da atuação militar na política.
Ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello (Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)
Pazuello cumpre, portanto, duas funções essenciais: a primeira é de tensionar o aprofundamento da relação de simbiose entre as Forças Armadas e Bolsonaro, e a segunda é de ampliar os poderes do presidente pela consolidação de autorização tácita ou expressa de uma conduta contra legem.
Carl Schmidt,[1] importante teórico do Direito e Teoria do Estado fascista, dizia que “é soberano quem decide o estado de exceção”. Dentro desta perspectiva, o estado de exceção não era necessariamente estado de guerra ou de sítio previstos já em constituições. Mas sim, uma determinada imprevisibilidade, que em nome de proteger o próprio Estado, seria usada para construir uma política que poderia ultrapassar a institucionalidade vigente. Portanto, quem tem esse poder, seria, evidentemente o “soberano”, pois teria um poder “criativo” e não delimitado. Toda teoria desenvolvida sobre um Estado constitucional é exatamente no sentido de tentar impor limites aos poderes constituídos, para evitar arbítrios. O Estado fascista terá uma reformulação importante nesse ponto, que é esse aumento de poderes na figura do Executivo, acima inclusive da Constituição – o que seria uma ruptura com a democracia liberal.
Giorgio Agamben[2] aprofunda esse debate e dirá que há uma excepcionalidade que pode ser prevista e normatizada na constituição, como “provisória”, que amplia os poderes do Executivo e acaba perdurando significativamente (ou seus efeitos para a institucionalidade), e a excepcionalidade da institucionalidade que não é regulada, ela está fora de uma autorização legal (mais próxima da versão clássica), que se daria pela completa subversão da ordem jurídica vigente. Entenderá que há mitigações em inúmeras esferas de democracias que convivem com estados parciais, mas perenes de excepcionalização.
Agora, à luz dessa reflexão, cabe voltar a questão acerca da participação de Pazuello no ato. Trata-se de evidente infração e ato contra a constituição, e coloca o presidente acima da lei. Mas mais do que isso, ela obrigou e testou uma atuação do novo comando das Forças Armadas. O aval de Bolsonaro, comandante em chefe das Forças Armadas, desloca a relação para uma tensão entre o próprio presidente e os comandantes, em especial o comandante do Exército.
E nessa relação, no jogo de forças, o que Bolsonaro provou com a não punição de Pazuello não foi a deflagração de uma crise militar, mas que seu governo consegue se colocar contra legem. Bolsonaro não tem o apoio das Forças Armadas apenas nos seus limites institucionais. Se havia alguma dúvida até aqui, ela se dissipou. Bolsonaro tem e demonstrou com firmeza o apoio das Forças Armadas acima da lei. E a prova não poderia ser mais inequívoca. Pois, quando Bolsonaro coloca em jogo a disciplina militar, a hierarquia, as regras e códigos de conduta militares, ele não está fazendo qualquer teste com as Forças Armadas, não é apenas que elas topam quebrar as regras da democracia e da constituição – porque isso era evidente e a sua participação no governo deixa mais do que transparente – mas a não punição de Pazuello é, também, um processo de transgressão pública (e isso importa) e desautorização das regras internas militares. Bolsonaro colocou todos os comandantes das Forças Armadas em um lugar que apenas Pazuello o tinha atribuído, o de “comandante em chefe supremo”, que deve ser obedecido a qualquer custo. E aí está a jogada e por que Pazuello é a figura militar que mais alarga as fronteiras para Bolsonaro – mesmo que não seja a mais influente, a mais relevante internamente, o melhor articulador etc.
Cumpre ressaltar que a relação entre os militares e o governo Bolsonaro ganhou novos contornos desde 30 de março deste ano, com a troca do ministro da Defesa e a exoneração dos três comandantes das Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica). De igual modo, a saída de Pazuello do Ministério da Saúde. Portanto, no jogo interno das Forças Armadas, a mudança do comando e a saída de Pazuello e Fernando Azevedo, sinalizavam, naquele momento, uma derrota a Bolsonaro, pois deflagraram a maior crise militar desde a redemocratização e evidenciaram divergências internas (não entre setores democráticos e antidemocráticos, mas entre diferentes formas de condução política do país e dos seus interesses).[3] Fernando Azevedo era um articulador importante com a ativa e, ao que tudo indica, ajudou a influenciar a nova leva de comandantes que assumiram após a crise. Bolsonaro não conseguiu intervir nisso, mesmo tendo uma vitória parcial de retirar comandantes que tinham alguma ressalva com parte de sua política. Agora, no teste necessário, Bolsonaro conseguiu colocar a cúpula das Forças Armadas numa situação de ter que responder por algo que era inquestionavelmente ilegal, e eles cederam. Esse poder, essa tensão, muda de qualidade o peso de Bolsonaro no alto comando das forças e coloca a dinâmica em outro patamar.
Cumpre lembrar ainda que, em manifestações anteriores, Bolsonaro chegou a buscar participação do Exército, como no caso de Brasília, e houve repercussão na cúpula do Exército, com reclamações sobre a separação das Forças Armadas do governo e politização dos quartéis. Ocorre que é notório que não há uma separação estanque das Forças Armadas como instituição e como integrante do governo Bolsonaro. Os militares possuem a vice-presidência, ministérios importantes e mais de 6 mil postos de cargos comissionados. Portanto, é evidente que essa tentativa de dissociação não consegue ter lastro na realidade. As Forças Armadas, enquanto instituição, responderão pelo governo Bolsonaro, seja qual for seu desfecho e não parecem com planos de deixar o Executivo tão cedo.
De igual modo, é evidente que já existe completa politização dos quartéis, e não apenas do alto escalão, dadas as tarefas que os militares têm cumprido no governo e a completa ocupação da máquina pública e de ganhos concretos das categorias nesse período. Apesar da tentativa histórica, inclusive, de manter o baixo oficialato distante, para não ameaçar a hierarquia interna, é evidente que os níveis de politização das Forças Armadas penetram todas as suas camadas.
Nesse sentido, Pazuello, o cavalo no xadrez, cumpriu mais essa “missão”. Testou as forças dos novos comandantes com Bolsonaro e expandiu os poderes do presidente. Foi ele quem, verdadeiramente, decidiu sobre a exceção, e isso é uma política de expansão de fronteiras e de consolidação de excepcionalidade. Pois esse ato, claramente contra legem, foi referendado pela institucionalidade que caberia impor limite. E, nesse sentido, viabilizou essa interpretação de que Bolsonaro está acima da lei e que, sob seu comando, não há limites. A decretação de sigilo do processo disciplinar de Pazuello é a prova da ilegalidade e do acirramento autoritário que essa questão gerou. Essa fronteira política não é pautada apenas nessa situação, mas, sem dúvida, esse fato representa uma mudança de qualidade importante.
Isso não significa dizer que não haja nuances e diferenças entre a cúpula militar, e que inclusive possam, se necessário e possível (o que hoje é), constituir sua manutenção sem o próprio Bolsonaro. A preocupação exposta por Temer acusa a gravidade da situação, quando dá declarações neste contexto de crise de que receia a aceitação do resultado eleitoral de 2022, em caso de derrota do governo. Numa espécie de Carlos Lacerda, Temer percebe o óbvio: chamar os militares para o jogo político coloca, necessariamente, a dúvida sobre a sua real possibilidade e condições de saída.
Julia Almeida Vasconcelos da Silva é advogada, mestre em Direito pela UFRJ e integrante do NEV/USP. É militante da Insurgência em São Paulo.
[1] Aguilar, Héctor Orestes. Carl Schmitt Teólogo de la Política. México: FCE, 2001.
[2] Agamben, Giorgio. Estado de Exceção. 2ª Edição. São Paulo: Boitempo, 2004.
[3] Assim como na ditadura, quando também existiam diferenças entre a “linha dura” e a linha de “sorbonne”, mas ambos os setores disputaram a presidência e articularam e defenderam o golpe. Entretanto, a forma de participação, o tempo de duração e a estratégia poderiam ser diferentes – como em qualquer grupo denso que faz política. Pressupor homogeneidade é empobrecer a análise militar.