Fabricio Pereira da Silva, Latinoamerica21, 3 de agosto de 2021
No dia em que foi celebrado o bicentenário da independência do Peru, 28 de julho de 2021, Pedro Castillo (Perú Libre) assumiu a Presidência para um mandato de cinco anos (2021-2026). A posse simbolizaria a retardatária participação do país no que ficou conhecido como “maré rosa”: a onda de governos de esquerda que varreu a América Latina na primeira década do século XXI e parte da segunda. Argumento que aquele ciclo se esgotou, que estamos em outro momento na região. De fato, esgotado ou não o ciclo regional, Castillo se enfrenta com dilemas nacionais: alguns de longo prazo, outros mais imediatos. Os de longo prazo se relacionam com a pobreza e informalidade de sua economia e com a secular divisão entre Costa e Serra. Os mais imediatos consistem em sobreviver até o final do mandato – algo improvável.
Subidas e descidas de maré
A “maré rosa” é um ciclo esgotado. Ela se deu em outro contexto, como reação ao ciclo de políticas neoliberais dos anos 1990. Foi beneficiada pela subida dos preços internacionais das commodities (base das economias latino-americanas), e por certa desatenção do governo norte-americano em relação à região, focado que estava na chamada “guerra ao terror”. Se caracterizou por estratégias de política externa independente, aumento dos investimentos sociais, experimentos de democracia participativa e direta.
A maré começou a baixar no começo dos anos 2010, e o que a sucedeu foi um quadro matizado. Houve a ascensão de governos de direita, alguns deles por via eleitoral; outros mediante golpes de Estado institucionais. Alguns vêm cumprindo uma agenda neoliberal dentro dos limites mínimos da democracia procedimental, como o Uruguai. Outros vão assumindo posições mais autoritárias, casos da Colômbia e de El Salvador, chegando a flertar com o fascismo no Brasil. Por outro lado, há os sobreviventes da “maré rosa”. Alguns procuram reproduzir as políticas do começo do século em versões rebaixadas, como Argentina e Bolívia (e o México, que não entrou na primeira maré). Outros fecham seus regimes para sobreviver, casos de Venezuela e Nicarágua.
Não se pode considerar que há uma onda avassaladora de direitas, tampouco um segundo ciclo de esquerda. Há sim uma região em disputa, na qual o Peru é uma peça importante do tabuleiro. A depender do que ocorrerá até o ano que vem no Chile, na Colômbia e no Brasil, pode se configurar mais claramente um novo “ciclo de esquerdas” – que forçosamente será distinto do anterior. Mas Castillo não pode esperar: terá que se preocupar com questões locais, algumas bem imediatas.
Moderar para sobreviver?
O principal dilema será o da moderação. A “boa” Ciência Política convida os agentes políticos a caminharem para o centro em busca de votos e governabilidade. Esta tese pode estar associada ao conservadorismo da maioria dos cientistas políticos, e vem sendo praticamente contestada por quase todas as polarizadas disputas políticas contemporâneas. No Peru atual, seria a senha para Castillo não realizar nada – e ser derrubado ao final, de todo modo.
A posse de Castillo simboliza sua vitória temporária em uma disputa de narrativas que durou semanas em torno de pretensas fraudes eleitorais nunca comprovadas. Porém, de modo algum assegura governabilidade ao novo presidente. O país atravessa uma grave crise política, econômica, social – que simbolicamente não se resolve com esta posse e os apelos de união em torno do Bicentenário.
O fujimorismo é um fator contumaz de desestabilização, se constituindo na verdadeira ameaça à democracia peruana. Para além disso, nada ajuda conviver com uma Constituição produzida num período autoritário, em consequência de um autogolpe de Estado. Assim como no Chile, se justifica considerar a carta peruana carente de legitimidade, para dizer o mínimo.
Ademais, a Constituição é fiadora de um sistema político que não se sabe bem se é semipresidencialista ou semiparlamentarista, e que gera sucessivas crises entre presidentes fracos e partidos políticos minoritários e sem representatividade. Não gera equilíbrio e estabilidade, mas uma crise sem fim e o bloqueio de qualquer transformação. Desde fora, surpreende que qualquer analista peruano que se proclame democrático seja tomado por temores em relação à proposta de uma Assembleia Constituinte. E não surpreende em nada que a convocação da Assembleia esteja no centro do programa de Castillo e do Perú Libre.
Dois cenários possíveis
Diante disto, a Assembleia Constituinte se constitui num símbolo que vai indicar se Castillo optou pela moderação ou por cumprir seu programa. É por isto que, tendo feito movimentos ao centro no segundo turno e na montagem de seu gabinete, não abre mão desta bandeira em específico. Assim, se abrem dois cenários possíveis. Os dois são difíceis, e não garantem o cumprimento do mandato.
O primeiro é renunciar a todos os anéis para não perder os dedos. Neste cenário, ao final teríamos um governo desmoralizado e sem qualquer chance de eleger um sucessor. Como Ollanta Humala, seria mais um mandatário a renunciar a um programa de mudanças. A propósito, nem isto garantiria o cumprimento dos cinco anos de mandato. Outros presidentes peruanos têm sido derrubados por muito menos.
O segundo caminho é o de tentar cumprir o máximo que for possível do programa, forçar dentro das possibilidades, ou tentar ampliar os limites das possibilidades. Se trata de um caminho evidentemente sobre o fio da navalha, que igualmente não garante a sobrevivência do governo por cinco anos. Este caminho evidentemente exigiria maior mobilização popular, e árduas negociações.
Percebe-se que nos dois cenários não há garantia de estabilidade. Mas ao menos no segundo cenário, haveria uma chance de conclusão da crise orgânica vivenciada pelo país, dada a possibilidade (ainda que improvável) deste caminho concluir numa refundação do país.
Em meio a este dilema de difícil resolução, o novo governo deve ainda reorganizar o problemático enfrentamento da pandemia. Deve também atacar a pobreza e a informalidade crescentes. Estas foram aprofundadas pela pandemia, mas são heranças de décadas de neoliberalismo e da história de larga duração do país. Com isto chegamos ao tema da secular divisão entre Costa e Serra, atravessada pela questão indígena. Castillo se elegeu em boa parte com base nesta divisão. O fez inclusive deslocando a esquerda “cosmopolita” e “progressista” limenha, que precisará lidar com o eterno retorno de temas que gostaria de contornar: uma nacionalidade que nunca se completa, a questão indígena, as divisões regionais, a religiosidade do povo pobre.
Dado todo o contexto, os espaços são estreitos. Mas há que se tentar aproveitar a rara oportunidade de um governo claramente de esquerda no Peru – novidade numa larga trajetória conservadora.
é professor de Ciência Política da Univ. Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Vice-diretor de Wirapuru, Revista Latinoamericana de Estudo das Idéias. Pós-Doutorado no Instituto de Estudos Avançados da Univ. de Santiago de Chile.