Um resumo das intervenções apresentadas durante um seminário internacional organizado pelo Diálogo Global
Pierre Beaudet, Global Dialogue Online, 2 de março de 2021
Uma grave situação
Devemos impedir que a Organização Mundial do Comércio ponha milhões de vidas em perigo. De acordo com Edgardo Lander (Sociólogo e pesquisador venezuelano do Instituto Transnacional), a luta contra a atual pandemia não será eficaz a menos que o mundo inteiro tenha acesso universal a vacinas gratuitas. No sistema atual, em que a produção é controlada por um punhado de grandes corporações transnacionais (conhecidas como “Big Pharma”), não é possível que isto aconteça porque estas corporações monopolizam os “direitos” da vacina graças a acordos de propriedade intelectual relacionados ao comércio. Como resultado, os países mais pobres não têm os meios para adquirir estas vacinas caras. Para a pesquisadora sul-africana Fátima Hassan, um sistema de apartheid médico está em vigor. Em todo o mundo, cerca de 100 milhões de pessoas ficaram doentes devido à COVID-19 e mais de 2 milhões morreram. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), mais de três quartos das vacinações ocorreram em apenas 10 países o quais representam quase 60% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial. A OMS também afirma que menos de 27% da população do Sul Global receberá as vacinas até o final de 2021.
Uma resposta global completamente inadequada
Até este momento, a resposta tem sido fornecer vacinas como parte do programa COVAX, administrado como uma parceria público-privada. Entretanto, o processo permanece obscuro. Nós não sabemos como ou sob quais condições as vacinas serão distribuídas. Mesmo os funcionários eleitos dos diferentes países não estão sendo, supostamente, informados. Todo o processo está fundamentado em uma ordem mundial que dá prioridade à proteção dos direitos de propriedade intelectual relacionados ao comércio, mesmo em meio à uma letal crise de saúde pública.
Há 30 anos atrás, uma história semelhante se desdobrou
A atual crise é uma repetição trágica dos primeiros anos da pandemia da síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS). No período de 1980-1990, milhões de pessoas morreram por não ter acesso aos medicamentos antirretrovirais produzidos pela Big Pharma. Uma enorme campanha internacional lançada por organizações sul-africanas conseguiu forçar a Organização Mundial do Comércio (OMC) a aceitar uma suspensão temporária dos direitos de propriedade intelectual sobre a vacina. Rapidamente, muitos países como o Brasil, Índia, África do Sul e Tailândia conseguiram produzir e importar versões genéricas que tornaram o medicamento acessível, que é como a situação foi contida até certo ponto. Hoje, de acordo com Fatima Hassan, advogada de direitos humanos aposentada, fundadora da Iniciativa de Justiça por Saúde na África do Sul, o mundo não deve cometer os mesmos erros. A resposta à pandemia não deve recair sobre a cooperação voluntária, mas em programas de emergência, incluindo medidas para forçosamente tornar as vacinas acessíveis.
Solidariedade acima de lucros
Vittorio Agnoletto, médico e militante da campanha europeia “Right 2 Care – No profit on Pandemic!” explica que atualmente, na Europa, três grandes empresas farmacêuticas foram incumbidas pela União Européia a produzir e entregar vacinas. Isto rapidamente se transformou em caos. Isto porque os 27 Estados-membros jogaram seus próprios jogos e importaram remédios a torto e à direita, mesmo da Rússia e da China. Alguns países conseguem, outros muito menos nesta corrida de ratos aparentemente interminável. O médico italiano está entre milhares de outros na Europa que lançaram uma petição para que os Estados deixem de ceder suas responsabilidades à Big Pharma. Eles exigem saber o que está acontecendo, quem está produzindo o quê, de acordo com quais contratos e a que custos. Eles também querem saber quais empresas foram subsidiadas pelo financiamento público que permite que a Big Pharma se beneficie do Estado. “Nós já pagamos por estas vacinas!”, afirma Agnoletto. Mais de 100.000 pessoas assinaram a petição, mas, de acordo com as regras da Comissão Européia, é preciso um milhão de assinaturas para abrir um inquérito. Enquanto isso, movimentos sociais e ONGs estão fazendo campanhas para apoiar a iniciativa sul-africana e indiana (para mais detalhes sobre esta campanha, acesse noprofitonpandemic.eu).
Uma escassez artificial
De acordo com Jorge Bermudez, Pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a principal instituição a trabalhar com as vacinas no Brasil, há escassez de vacinas em mais de 84 países. Até mesmo a OMS admite que, no ritmo atual, o acesso às vacinas não será universal até 2024. O programa de alocação atual, COVAX, é amplamente insuficiente. Além disso, ele está subjugado a inúmeras restrições. Exclui pessoas vulneráveis, como desempregados ou semiempregados, pessoas sem teto, refugiados e muitas mais. E contudo, mais de 40 países, como o Brasil com seu Instituto Butantã, dispõem de instalações de produção que poderiam ser utilizadas para a fabricação de vacinas. Infelizmente, o governo de direita no Brasil, ao invés de apoiar as demandas da África do Sul, Índia e outros governos, está paralisado. O Brasil é agora o país do mundo mais afetado pela pandemia, com um número de mortes que agora supera todos os outros países, inclusive os Estados Unidos.
Devemos suspender as patentes
Leena Menghaney, pesquisadora indicana do Médicos ,Sem Fronteiras Índia, acredita que as regras sobre direitos de propriedade intelectual não farão sentido em uma situação crítica como a que estamos vivendo hoje. “Teríamos de esperar até 2033 para que as patentes expirassem”. E assim mesmo, como dissemos na tragédia da AIDS na África, eventualmente encontramos uma maneira de nos sobrepor a estas normas. Mas, até agora, as corporações farmacêuticas e outros fabricantes de produtos essenciais para lutar contra a COVID-19 não demonstraram interesse algum em adotar uma abordagem diferente. A organização Médicos Sem Fronteiras urge para que todos os governos adiram à iniciativa sul-africana e indiana a fim de garantir que salvar vidas se torne nossa prioridade. A suspensão (waiver) deve ser mantida até que as vacinas estejam disponíveis em massa e até o momento em que a maior parte da população desenvolva imunidade.
A maior batalha está pela frente
A questão apresentada não é nova. No Canadá, explica Amir Khadir, médico especialista em doenças infecciosas e ex-membro da Assembléia Nacional do Quebec, representando o Québec solidaire, o país dispõe de capacidades locais para produzir vacinas desde os anos 60, o que vimos quando o Institut Armand-Frappier fez vacinas contra tuberculose, poliomielite, difteria, coqueluche e tétano. A pesquisa foi desenvolvida nas universidades graças ao financiamento público. Desta forma, as vacinas para crianças se tornaram amplamente disponíveis e gratuitas. Mas com o aparecimento da onda neoliberal nos anos 80, estas instituições foram privatizadas. Adquirido por menos de 4 milhões de dólares pela Biochem Parham, o Institut Armand-Frappier foi vendido 10 anos depois por 5 bilhões de dólares à Shire, uma empresa farmacêutica britânica, que acabou por deslocar a produção para economizar nos custos de fabricação. “Temos que mudar tudo isso”, afirma Khadir. Está em andamento uma campanha para criar uma corporação da coroa incumbida de regular a produção e distribuição ou venda de produtos farmacêuticos.