Pedro Castillo força seu primeiro-ministro a renunciar após 69 dias de Governo no Peru
O presidente decide pela mudança de Guido Bellido “a favor da governabilidade” após vários confrontos em seu Gabinete
Jacqueline Fowks, El País Brasil, 6 de outubro de 2021
O presidente do Peru, Pedro Castillo, impôs nesta quarta-feira a renúncia de seu primeiro-ministro, Guido Bellido. Em mensagem à Nação, o presidente ratificou o compromisso do seu Governo com o investimento privado e com a resolução dos problemas de “saúde, fome e pobreza”, e na sequência anunciou a saída do político “a favor da governabilidade”. Bellido representava no gabinete a posição do político de esquerda radical Vladimir Cerrón, líder do partido com o qual Castillo chegou à presidência, e havia gerado inúmeros confrontos internos nos dois meses de sua vida no Executivo. Com esse movimento, Castillo parece querer bater na mesa diante daqueles que duvidam de quem realmente detém o poder no Governo: o presidente ou o próprio Cerrón, por meio do primeiro-ministro.
A última altercação ocorreu na semana passada. O primeiro-ministro tuitou uma mensagem dirigida ao consórcio que opera o maior campo de gás do país, para avisá-los de que, se não concordassem em renegociar o percentual que pagam ao Estado, o Governo nacionalizaria ou recuperaria o recurso. Com a ameaça, o primeiro-ministro dilapidou em poucas horas a confiança empresarial que Castillo conquistara dias antes em uma visita aos Estados Unidos, onde se reuniu com presidentes executivos de mineradoras e farmacêuticas, convidando-os a manter seus investimentos e oferecendo garantias de estabilidade, e com os presidentes do Banco Mundial e do BID. A taxa de câmbio atingiu seu máximo histórico na última semana, com 4,12 soles por dólar.
O primeiro-ministro também convidou publicamente o ministro das Relações Exteriores, Oscar Maúrtua, a renunciar depois que o vice-chanceler comentou que o Peru não reconhecia nenhuma autoridade legítima na Venezuela desde janeiro. O congressista do Peru Libre compartilha da posição ortodoxa de esquerda de Cerrón a favor do Governo de Nicolás Maduro. Na sexta-feira à noite, em uma reunião de três horas no Palácio do Governo, mais da metade dos ministros questionou os anúncios de Bellido sobre questões que não haviam sido previamente tratadas ou debatidas no gabinete.
O início turbulento de Pedro Castillo no Peru
Em sua mensagem à nação, Castillo reiterou que, conforme anunciou em sua passagem pelos Estados Unidos, ratifica o compromisso do Governo com o investimento privado, para que opere “sem corrupção e com responsabilidade social”. “Pelo compromisso do meu Governo de abordar como prioridade os grandes problemas que o país tem —saúde, fome, pobreza—, decidi tomar algumas decisões a favor da governabilidade”, acrescentou em mensagem televisiva na qual questionou a maneira de fazer política do Bellido, embora tenha lhe agradecido por seus serviços.
“O equilíbrio de poderes é a ponte entre o Estado de direito e a democracia, deve garantir a tranquilidade e a coesão do Governo. A interpelação, a questão da confiança e da censura não devem ser utilizadas para criar instabilidade política. O Peru espera muito de suas autoridades, é hora de colocar o Peru acima das ideologias e posições isoladas“, disse o professor rural e sindicalista de esquerda.
Castillo anunciou que um novo gabinete será empossado nesta noite. A imprensa peruana antecipa que o substituto de Bellido será a advogada de Cajamarca Mirtha Vásquez, ex-presidente do Congresso entre novembro e julho. Vásquez também é defensor dos direitos humanos há mais de uma década e político moderado de esquerda.
A primeira reação da oposição veio da presidenta do Congresso, María del Carmen Alva, que apoiou a decisão do chefe de Estado. “Após vários dias de incerteza desnecessária e ministros altamente questionados, saudamos a decisão do presidente Castillo de mudar o Gabinete ministerial”, tuitou. Bellido retornará ao seu assento na bancada parlamentar do Peru Libre.
Uma nomeação polêmica
Desde que Bellido chegou ao Governo, gerou desconforto na elite política e econômica por sua falta de experiência na gestão pública, mas também porque o consideravam o representante de Cerrón no Governo. Alguns analistas duvidaram de quem realmente tinha poder: se o presidente Castillo ou Cerrón, por meio do primeiro-ministro. A fratura dentro do Gabinete também ficou clara desde o primeiro dia. Em julho, a posse de dois ministros teve de ser adiada quando se soube que Bellido lideraria o Gabinete. Pedro Francke, ministro da Economia, e Aníbal Torres, ministro da Justiça e Direitos Humanos, pediram a Castillo garantias de que Cerrón não interviria nos assuntos do Gabinete.
Esta é a segunda baixa no Gabinete em 69 dias. Dezenove dias após a posse como chanceler, o Governo pediu a demissão do sociólogo e escritor Héctor Béjar, após a polêmica que gerou devido as declarações que fez antes do mandato como ministro. Béjar comentou em um chat na internet que o Sendero Luminoso não foi o primeiro a ter atividades terroristas no Peru, referindo-se a sabotagens e crimes cometidos por membros da Marinha na década de 1970.
Pedro Castillo demite primeiro-ministro e se afasta de ala radical
Começa um novo capítulo no ainda breve Governo de Pedro Castillo. Apenas 69 dias depois da sua posse, o presidente peruano rompeu nesta quarta-feira as amarras que o atavam ao setor mais radical de seu entorno.
Inés Santaeulalia, El País Brasil, 7 de outubro de 2021
O mandatário forçou a renúncia de seu primeiro-ministro, Guido Bellido, braço-direito de Vladimir Cerrón, o líder da formação marxista-leninista que levou Castillo à presidência depois de chegar ao partido como um paraquedista. Se algum dia Cerrón ou Bellido – que conheceu o professor rural quase por acaso e lhe ofereceu a candidatura do Peru Livre – pensaram nele como um espantalho, nesta quarta-feira sua criação ganhou vida própria. O presidente substituiu também 6 dos seus 19 ministros, o que o Peru Livre definiu como “uma traição contra todas as maiorias” que o elegeram.
Castillo se deparou nestes dois primeiros meses de presidência com numerosas pedras no sapato, mas Bellido foi desde o primeiro dia a mais incômoda de todas. Sua nomeação foi uma surpresa, desagradável para quase todos. Alguns dos ministeriáveis se negaram durante horas a assumir suas pastas até que o presidente se comprometeu a manter Cerrón distante das decisões de Governo. Essa foi a primeira grande crise do Executivo. Antes inclusive de começar a funcionar.
A escolha de Bellido – um desconhecido para a maioria, sem experiência de gestão e autor de comentários misóginos e homofóbicos nas redes sociais – para o cargo de primeiro-ministro foi interpretada como a prova de que Castillo se rendia ao poder de Cerrón, a quem muitos acabaram por considerar um presidente à sombra. Bellido nunca facilitou as coisas. Desde o primeiro dia, tornou-se alvo principal das críticas ao Governo, e a tensão com ele dentro do gabinete foi crescendo. Nas últimas semanas, ameaçou publicamente expropriar uma jazida de gás e convidou um ministro a renunciar se não estivesse de acordo em reconhecer Nicolás Maduro como presidente da Venezuela. Vários membros do Governo se distanciaram publicamente dele.
As tentativas do presidente de se afastar de um discurso radical – sua defesa da propriedade privada, seus convites ao investimento estrangeiro e à estabilidade econômica – se chocavam repetidamente com Bellido, transformado em um franco-atirador que Cerrón estimulava pelos alto-falantes do Twitter. Assim ficava difícil para o Governo avançar.
Mas sua saída também abre dúvidas sobre a futura relação do Governo com a sigla que o levou ao poder. A julgar pelos primeiros comunicados – “A bancada partidária do Peru Livre não respalda este Gabinete” –, nada prenuncia que a relação será fácil. Ao presidente, não lhe resta outro apoio para levar suas iniciativas adiante. Renunciar aos votos parlamentares do Peru Livre poderia ser um suicídio político. Cerrón, como líder da formação, já o tinha advertido na rede social antes de conhecer a nova composição do Governo: “É hora de que o Peru Livre exija sua cota de poder, garantindo sua presença real, ou a bancada partidária tomará uma posição firme”.
Ainda assim, Castillo decidiu assumir os riscos e cortar pela raiz o maior de seus problemas, mas não o único. A remodelação do Governo anunciada a noite de quarta-feira corrige alguns erros, que ele mesmo reconheceu, e isso se reflete, por exemplo, no aumento do número de mulheres, de duas para cinco. A nova primeira-ministra será a ex-deputada Mirtha Vásquez, defensora dos direitos humanos. O mandatário pretender fechar as fissuras que Bellido abriu no Executivo, onde vários responsáveis nem sequer despachavam diretamente com ele, apesar de ser o presidente do Conselho de ministros.
O que virá a partir de agora é uma incógnita. O poder de um Governo solitário, com uma oposição ferozmente contrária a suas posições, é muito reduzido. Castillo, entretanto, tenta fechar com esta uma sucessão de crises que o impediam de governar. Não é nem sequer a primeira mudança no gabinete. Apenas 19 dias depois começar, seu chanceler Héctor Béjar se viu obrigado a renunciar por causa de declarações feitas meses antes, quando acusou a Marinha peruana – e não o grupo maoísta Sendero Luminoso – de ter desencadeado o terrorismo no país na década de 1980.
Desde que derrotou Keiko Fujimori nas urnas, em 6 de junho, o presidente não teve um só dia fácil. Sua vitória só foi confirmada em 19 de julho, devido a denúncias não comprovadas de fraude que o fujimorismo lançou. Mas logo ele descobriu que o mais difícil ainda estava por vir. Castillo, entretanto, decidiu desde esta quarta-feira ser ele o único responsável pelo incerto destino do seu Governo.