Raquel Torres, Outra Saúde, 25 de junho de 2021
O mal dos recuperados. Um estudo feito pelo Imperial College de Londres com dados de 500 mil ingleses traz uma perspectiva bem impressionante quanto às sequelas de longo prazo da covid-19. Segundo as estimativas feitas a partir da pesquisa, mais de dois milhões de ingleses sofrem ou sofreram a chamada ‘covid longa’. Para se ter uma ideia do que isso representa, ao todo o país registrou pouco mais de quatro milhões de infecções até hoje.
Os participantes foram questionados se haviam tido uma infecção sintomática e se tinham experimentado, por 12 semanas ou mais, algum entre 19 sintomas ligados ao vírus, como fadiga contínua, falta de ar, perda de memória, problemas de concentração, insônia, dor no peito e tontura. Entre as 76.155 pessoas que disseram ter tido covid-19 sitnomática, 37,7% confirmaram pelo menos um sintoma duradouro, e quase 15% disseram ter experimentado três ou mais desses efeitos.
Outro estudo semelhante, feito pelo departamento de estatística do Reino Unido (ONS) havia encontrado cerca de um terço da prevalência: de acordo com ele, 741 mil ingleses teriam covid longa. É uma diferença bem grande, que, segundo especialistas, é explicada pelo uso de metodologias distintas. Por exemplo, a pesquisa da ONS estimou o número de pessoas que tiveram covid longa em uma data específica (2 de maio), enquanto o do Imperial College quis ver quantas experimentaram o problema em algum momento entre setembro e fevereiro.
De todo modo, esse tipo de trabalho oferece bons elementos para desmanchar a narrativa furada de que ter “milhões de recuperados” é algo bom. Mais que isso, eles ajudam também a se ter uma ideia do impacto que a covid-19 pode ter nos sistemas de saúde.
Mas ambas as pesquisas têm limitações bastante relevantes. A divulgada ontem foi feita com base em perguntas cujas respostas podem não ser muito exatas. Os participantes tinham que dizer se acreditavam ter tido covid-19, mas não era necessário comprovar. E seus relatos não dão conta da gravidade dos sintomas relatados, portanto não dá para saber o quanto suas vidas foram afetadas por eles.
Além disso, talvez um dos pontos mais importantes dos dois estudos seja o fato de que não houve nenhuma comparação com um grupo de perfil semelhante que não tenha tido covid-19 – essa limitação em especial, que poderia ter um impacto muito grande nos resultados, tem sido pouco ressaltada na imprensa. “Alguns dos sintomas listados surgem com bastante frequência em pessoas que nunca tiveram covid-19, porque podem ser causados por muitas doenças diferentes”, nota Kevin McConway, professor emérito de Estatística Aplicada da Open University, no Science Media Centre.
COMO DOIS E DOIS
Quando todos os olhos estão voltados para o contrato do governo com a Precisa Medicamentos para a importação da Covaxin, a jornalista Marta Salomon decidiu analisar outra negociação envolvendo a empresa – e encontrou uma conta que não fecha.
Na Piauí, ela aponta que a Precisa recebeu um total de 96,1 milhões de reais entre janeiro de 2019 e maio de 2021 pela venda de preservativos femininos ao Ministério da Saúde. Pelos preços registrados nos documentos do Tesouro Nacional, esse valor daria para comprar 40 milhões de unidades do produto. Poderia ser uma coisa boa, não? Só que, ao todo, Secretaria de Vigilância em Saúde só distribuiu 32,5 milhões desses preservativos. E, para piorar, nem todos vieram da Precisa: havia outras empresas fornecedoras.
A matéria lembra ainda que a Global Saúde, cujo presidente é o sócio da Precisa Francisco Emerson Maximiano, deve R$ 20 milhões aos cofres públicos. Já falamos disso por aqui: contratada pelo Ministério da Saúde na gestão Ricardo Barros para mediar a compra de medicamentos de alto custo, embolsou o dinheiro e nunca entregou os remédios.
NÃO FALTARAM AVISOS
Em janeiro, um mês antes de o contrato com a Precisa Medicamentos ser assinado, a embaixada do Brasil na Índia alertou o governo Bolsonaro sobre o alto preço da Covaxin. Na época (e ainda hoje), o valor cobrado pela Bharat Biotech era questionado mesmo no país asiático.
Não foi o único alerta. Segundo o Intercept, a diplomacia também avisou que o imunizante estava tendo um “processo alegadamente opaco de autorização para uso emergencial” na Índia, além da baixa aceitação do produto pela população. Lá, o uso da Covaxin foi autorizado em janeiro, com os resultados dos ensaios de fase 2 ainda não publicados e os da fase 3 em andamento. Só dois meses mais tarde a empresa começou a divulgar os primeiros comunicados à imprensa com análises preliminares dessa etapa da pesquisa. No entanto, até hoje os dados finais não foram compartilhados.
Em um intervalo de 11 dias ao longo do mês de fevereiro, a Precisa Medicamentos se comunicou com o governo ao menos três vezes para acelerar a negociação. Em ofícios e e-mails, alegou que havia outros países de olho nas 20 milhões de doses oferecidas ao Brasil e até que a OMS estaria pressionando para distribuí-la a nações mais pobres. Detalhe: ainda hoje, quatro meses depois, a OMS não concedeu autorização emergencial para o uso desse imunizante nem tem data para isso, portanto não pode oferecê-lo. No dia 22, a empresa deu uma espécie de ultimato, oferecendo apenas mais um dia para o governo responder. Três dias mais tarde, o contrato era assinado.
Quantos foram os e-mails da Pfizer ignorados, mesmo?
NA CORRIDA
Depois de se ver muito implicado pelo caso, o federal agora estuda cancelar o contrato assinado com a Precisa Medicamentos. Segundo a Folha, a ideia foi discutida em vários setores do Ministério da Saúde e já chegou ao conhecimento da Casa Civil.
A questão é como fazer isso sem se prejudicar juridicamente. A Saúde deve consultar a Controladoria-Geral da União, o Tribunal de Contas da União e o Ministério Público Federal para ver se houve irregularidades, se elas são sanáveis, e, se não foram, que instrumentos previstos podem ser usados para rescindir o acordo.
VIROU PÓ
O deputado Luís Miranda (DEM-DF), que afirmou ter alertado Jair Bolsonaro sobre indícios de irregularidades na negociação com a Precisa Medicamentos pela compra da Covaxin, disse também que o presidente prometeu pedir à Polícia Federal para investigar o caso. Pois bem: a PF não encontrou nenhum inquérito aberto sobre o assunto (como era mesmo de se esperar).
Ao não relatar as suspeitas de corrupção à PF, o presidente pode ter cometido três crimes, segundo especialistas ouvidos pelo Estadão: prevaricação, condescendência com o crime e de responsabilidade.
As denúncias envolvendo a negociação podem inclusive entrar no superpedido de impeachment que reúne partidos de esquerda e ex-governistas. Ele será protocolado no dia 30.
A defesa do governo chegou por meio do senador aliado Jorginho Mello (PL-SC). De acordo com ele, Bolsonaro comunicou as suspeitas, sim, mas… a Eduardo Pazuello. “O presidente falou imediatamente com o ministro Pazuello para pedir ‘ó, vê um assunto aí da Covaxin’ e o ministro foi ver, viu, e como não tinha nada depois de três meses eles estão requentando o assunto”.
Em tempo: depois de o ministro Onyx Lorenzoni, da Secretaria-Geral da Presidência, levantar suspeitas sobre a existência do recibo de importação apresentado pelo deputado federal Luís Miranda (DEM-DF), O Globo viu que o documento não só existe como está disponível no sistema do Ministério da Saúde, ao qual os integrantes do governo têm acesso.
ESTUDO CENSURADO
Ontem, na CPI, o epidemiologista pesquisador da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) Pedro Hallal disse que foi alvo de censura pelo Ministério da Saúde. Ele coordenou o Epicovid-19 – estudo de testagem em massa da população com testes de anticorpos, para verificar a prevalência do vírus – e foi convidado pela pasta para apresentar resultados em coletiva de imprensa.
No entanto, 15 minutos antes da apresentação, ele foi informado de que um dos seus slides havia sido removido. Qual? O que mostrava um risco de contaminação de indígenas cinco vezes maior em comparação com a população branca. De acordo com Hallal, o responsável pela ordem de censura foi o então secretário-executivo do Ministério, o coronel da reserva Élcio Franco.
O epidemiologista depôs ontem junto com Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Internacional Brasil e representante do Movimento Alerta. Ela apresentou um estudo inédito indicando que, no primeiro ano da pandemia, 120 mil vidas poderiam ter sido salvas se uma política efetiva de controle baseada em ações não farmacológicas tivesse sido implementada. Já Hallal reafirmou sua projeção de que, se o Brasil tivesse tido um desempenho igual ao da média mundial, teríamos cerca de 400 mil mortes a menos até agora.
JOGO RÁPIDO
O Instituto Butantan planeja pedir autorização para o uso emergencial da ButanVac sem a fase 3 de testes, diz O Globo. Os ensaios clínicos foram desenhados para durar 17 semanas, incluindo apenas as fases 1 e 2. É quase metade do tempo que duraram os ensaios da AstraZeneca e da Pfizer.
Para lembrar: a fase 1 costuma incluir dezenas de pacientes para observar principalmente a segurança; na fase 2, já com algumas centenas de pessoas, o objetivo é ver se a vacina consegue gerar resposta imune. Durante a pandemia, tem sido comum a realização dessas duas etapas de forma concomitante, para acelerar o processo. A fase 3, que engloba milhares de pessoas e dura mais tempo, é a que produz dados para o cálculo da eficácia. E, conforme o número de participantes aumenta, vão aparecendo também mais informações sobre a segurança.
Segundo a reportagem, as fases iniciais seriam mais amplas do que normalmente acontece: em vez de dezenas ou centenas de pessoas, seriam até seis mil voluntários. É bastante, mas ainda menos do que se viu nos ensaios de fase 3 das outras vacinas até aqui (12,4 mil para a CoronaVac, 44 mil para a Pfizer, 43,7 mil para a Janssen).
SUCESSO DAS VACINAS
Quase todas as mortes recentes por covid-19 nos Estados Unidos foram de pessoas que não tinham sido vacinadas. Segundo um levantamento da Associated Press com base em dados do governo de maio, 150 pessoas vacinadas morreram pela doença naquele mês, num total de 18 mil. Isso dá 0,8% de todos os óbitos.