9% dos infectados têm altíssima carga viral na garganta, e um terço deles não apresenta sinais de portar o vírus
Manuel Ansede, El País Brasil, 27 de maio de 2021
Quase um ano e meio depois da aparição da covid-19 na China, a comunidade científica continua esclarecendo como foi possível passar tão rapidamente de um primeiro caso no final de 2019 para os quase 167 milhões de infectados confirmados desde então no mundo. O maior estudo já feito sobre a carga viral nos pacientes de covid-19, com mais de 25.000 participantes, confirma agora o papel decisivo dos supercontagiantes invisíveis. A investigação, do Hospital Charité de Berlim (Alemanha), mostra que as pessoas infectadas pelo coronavírus alcançam seu pico de carga viral na garganta entre um e três dias antes da aparição dos sintomas. Há contagiados que se tornam autênticos espalhadores de vírus sem suspeitar.
Uma amostra normal colhida na garganta contém 2,5 milhões de cópias do genoma do vírus, mas quase 9% dos infectados apresentam um bilhão de cópias ou mais, segundo o novo estudo. O trabalho constata um cenário explosivo: mais de um terço dos pacientes com altíssima carga viral é assintomático ou só tem sintomas leves. E, com uma média de 37 anos, são uma população muito móvel. O autor principal do estudo, o virologista Christian Drosten, afirmou em um comunicado que estes dados respaldam “a ideia de que uma minoria dos infectados causa a maioria dos contágios”. Seus resultados foram publicados nesta terça-feira na revista Science. O semanário destaca que uma pessoa sem sintomas pode ser tão contagiosa como um doente de covid-19 hospitalizado.
As conclusões concordam com outros estudos recentes. Um trabalho publicado em 10 de maio sugere que 2% dos infectados portam 90% dos vírus circulantes. O estudo inclui 1.400 casos positivos sem sintomas, identificados na Universidade de Colorado em Boulder (EUA). Os autores, encabeçados pela virologista Sara Sawyer, falam de “superportadores virais e, talvez, supercontagiantes”. Outro estudo, publicado em novembro, observou na Índia que 71% de 85.000 pessoas infectadas não transmitiram o vírus a ninguém mais. E uma análise de 1.200 casos na China detectou em janeiro que 15% provocavam 80% dos contágios.
O novo trabalho da Alemanha também ilumina outro dos aspectos mais confusos da pandemia: o papel das crianças. Os pesquisadores não observaram grandes diferenças na carga viral das pessoas entre 20 e 65 anos. Mas a quantidade de vírus era inferior nas crianças menores de cinco anos, com níveis de pelo menos 800.000 cópias do genoma do coronavírus. A carga viral, entretanto, aumenta com a idade e se aproxima das cifras dos adultos em crianças maiores e em adolescentes. Era uma velha batalha de Drosten na Alemanha. “Minha hipótese inicial ―que todas as faixas etárias têm aproximadamente o mesmo nível de infectividade―se confirmou, tanto por este como por outros estudos”, afirmou o pesquisador, diretor do Instituto de Virologia do Hospital Charité. O cientista alemão recorda a solução já conhecida: máscaras e distância física.
O pediatra Quique Bassat, do Instituto de Saúde Global de Barcelona, mostra certo ceticismo. “Os dados do estudo publicado na Science sugerem que, em igualdade de condições e sem aplicar medidas de prevenção adicionais, a contagiosidade das infecções em crianças seria similar à dos adultos. Isto, embora possível, contraria a ausência de dados claros de focos ou eventos de supercontágios entre as populações pediátricas”, reflete. Em todo caso, salienta Bassat, os novos resultados “confirmam a necessidade de continuar mantendo nas escolas as medidas de prevenção básicas, que permitiram o desenvolvimento normal das aulas presenciais sem aumentar a transmissão entre as crianças ou seus professores”. A equipe de Drosten calcula que o nível de infectividade dos menores de cinco anos é apenas 20% inferior ao dos adultos.
O estudo do Hospital Charité também confirma que a variante B.1.1.7 do coronavírus, registrada pela primeira vez em setembro de 2020 no Reino Unido e já dominante em muitos países, é mais contagiosa. A análise de 1.500 infectados com este subtipo sugere que sua carga viral é 10 vezes maior em média, com uma infectividade 2,6 vezes superior, conforme apontam os testes com cultivos de células humanas em laboratório.
O virologista Rafael Delgado, chefe de Microbiologia do hospital madrilenho 12 de Outubro, acredita que o estudo alemão confirma com milhares de casos o que já se sabia. “As crianças têm basicamente a mesma carga viral ―e certamente a mesma infectividade― que os adultos. E o mesmo ocorre com os assintomáticos e os sintomáticos”, resume. “Esta é a principal perversão da transmissão: é à custa de indivíduos assintomáticos ou com pouquíssimos sintomas”, adverte.