Afonso Benites, El País Brasil, 30 de agosto de 2021
De nota em nota, de manifesto em manifesto, o setor produtivo brasileiro vai desembarcando do Governo Jair Bolsonaro (sem partido). Desde o início do ano, ao menos dois textos com críticas ao presidente foram divulgados por integrantes do primeiro escalão do mercado financeiro e do mundo dos negócios brasileiro, responsáveis pela maior parcela do Produto Interno Bruto (PIB) do país. Numa delas, foi cobrado respeito à democracia e um rompimento com o falso dilema entre salvar vidas ou economia durante a pandemia de covid-19. Uma terceira manifestação pública, um pouco mais leve, estava em gestação e, ao contrário das primeiras missivas, levaria o nome de instituições, não de pessoas físicas. Entre os apoiadores, estava a poderosa Federação Brasileira dos Bancos (Febraban), que congrega as principais instituições financeiras públicas e privadas, mas que acabou rachando no processo de elaboração da nota. O texto tinha a sua publicação prevista para o início desta semana, e, após a intervenção de interlocutores do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do ministro da Economia, Paulo Guedes, a divulgação foi adiada.
O freio foi pisado pelo temor do que pode vir a ocorrer no próximo dia 7 de setembro, para quando Bolsonaro tem convocado manifestações em seu favor. Arthur Lira, principalmente, enviou sinais ao empresariado de que agora não era o momento ideal para se acirrar ainda mais os ânimos. O documento que estava em elaboração não cita nomes, contudo, e o fato de sua divulgação ter sido agendada para esta semana, pouco antes das manifestações pró-Governo e contra o Supremo Tribunal Federal (STF), também indica que o mercado está de olho nos movimentos de Bolsonaro.
O texto, que não foi divulgado oficialmente, pregava “serenidade, diálogo, pacificação política e estabilidade institucional” entre os três poderes. “Mais do que nunca, o momento exige do Legislativo, do Executivo e do Judiciário aproximação e cooperação. Que cada um atue com responsabilidade nos limites de sua competência, obedecidos os preceitos estabelecidos em nossa Carta Magna. Este é o anseio da Nação brasileira”, dizia o texto que foi enviado por um dos potenciais signatários ao EL PAÍS.
Chamou a atenção o fato de que a redação da carta foi coordenada pelo presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Paulo Skaf (MDB), um pretenso candidato de Bolsonaro para o Senado em 2022, que vinha servindo de ponte entre o presidente e os industriais paulistas. Skaf acabou fazendo um jogo duplo —ao mesmo tempo em que cobrava harmonia entre os poderes, sempre se postou ao lado do presidente—, o que pesou para o adiamento da publicação. Oficialmente, a Fiesp alega que, no último fim de semana, mais de 200 entidades quiseram aderir ao movimento e, por essa razão, o prazo para as novas firmas foi estendido. Com carta ou sem carta, está claro que Bolsonaro tem, gradativamente, perdido força entre seus antigos fiadores.
“O cenário econômico está em um grau elevado de deterioração. O Governo desistiu de governar e não dá para contar estritamente com o Congresso para se fazer política econômica”, explica o economista-chefe da consultoria MB Associados, Sérgio Vale. Na visão dele, as reformas econômicas tão ansiadas pelos representantes do capital financeiro estão travadas por conta da falta de ação do Governo, o que espanta os investidores. “O pouco que aconteceu na economia acaba sendo sobrepujado por um presidente que causa tanta incerteza que afugenta investimento e a possibilidade de se ter um crescimento sustentável”, segue o especialista.
Um outro sinal de que o apoio a Bolsonaro está degringolando é a sinalização de desembarque dos bancos, como essa possível adesão da Febraban ao grupo dos insatisfeitos. Nas duas últimas ocasiões em que isso ocorreu, com Fernando Collor e Dilma Rousseff, o presidente acabou sofrendo impeachment. Uma distinção entre aqueles momentos e o atual é que, antes, havia alguma segurança sobre o que faria o sucessor do destituído, seja ele o vice-presidente ou um potencial vencedor da próxima eleição. Agora, não. “Quando o Michel Temer assumiu, ele sinalizou que poderia ser melhor economicamente do que a Dilma. E foi. O nosso cenário econômico hoje é tão complexo que ninguém tem segurança que o Lula [melhor colocado nas pesquisas eleitorais] será melhor que o Bolsonaro”, diz Vale.
Na prática, o documento que estava sendo produzido pela Fiesp pretendia acalmar os ânimos e distanciar seus signatários de boa parte das entidades agropecuárias e mineradoras, que financiam o bolsonarismo raiz. Mas a sua retirada da praça —ou adiamento— frustra as tentativas de buscar alguma paz em um momento em que Bolsonaro insiste em apostar no tensionamento, com discursos autoritários e antidemocráticos, como forma de desviar o foco da crise econômica e política que varre o seu Governo.
Aproveitando o embalo da, por enquanto, não-nota da Fiesp, e para tentar mostrar que não há um consenso entre os ruralistas, sete instituições do agronegócio divulgaram na noite desta segunda-feira um documento em que defendem respeito à democracia e criticam “aventuras radicais”. Um dos medalhões desse grupo, que segue na contramão da maioria ruralista, é o ex-ministro da Agricultura e ex-senador pelo Mato Grosso Blairo Maggi, um dos maiores sojicultores do Brasil e presidente do conselho da Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove).
“É o Estado Democrático de Direito que nos assegura essa liberdade empreendedora essencial numa economia capitalista, o que é o inverso de aventuras radicais, greves e paralisações ilegais, de qualquer politização ou partidarização nociva que, longe de resolver nossos problemas, certamente os agravará”, dizem no manifesto a Associação Brasileira do Agronegócio, a Abiove, a Associação Brasileira dos Produtores de Óleo de Palma (Abrapalma), a Croplife Brasil, a Indústria Brasileira de Árvores (Ibá) e o Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para a Defesa Vegetal (Sindiveg).
O racha no agronegócio é apenas mais um entre os grandes setores econômicos do país. Dois dos bancos públicos vinculados à Febraban, a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil, ameaçaram romper com a entidade caso se confirmasse sua adesão ao manifesto que cobra os poderes da República. Seria mais um indicativo que a política de Governo está se sobrepondo à política de Estado. De qualquer forma, o coro dos insatisfeitos já parece maior do que aquele dos que ainda enxergam perspectivas para a economia sob a batuta de Bolsonaro e Paulo Guedes.