A dimensão autoritária irredutível do neoliberalismo se configura em diversos graus, inclusive na constitucionalização do direito privado
Pierre Dardot, A terra é redonda, 19 de março de 2021
Desde a eleição de Trump, em 2016, o debate público sobre a caracterização do neoliberalismo esteve concentrado em torno do termo “autoritarismo”. De fato, a partir deste momento, alguns analistas não hesitaram em declarar a “morte do neoliberalismo” devido à vitória do “populismo de extrema direita” (right-wing populism). Contrariamente, outros insistiram na necessidade de considerar o amálgama entre esses dois fenômenos, sob o nome de “neoliberalismo autoritário”, e até mesmo procuraram reelaborar a própria noção de “autoritarismo”[i].
Mas o que se deve depreender deste último conceito? Trata-se da tendência observada por quase todos os cantos de fortalecimento do poder executivo e de restrição das liberdades públicas? Trata-se de definir um novo tipo de liberdade, adequada à versão “nacionalista” do neoliberalismo, e que Wendy Brown interessantemente chama de “liberdade autoritária”? Além disso, seria o caso de isentar a versão “globalista” e “progressista” do neoliberalismo de qualquer autoritarismo? Mais ainda, a tendência autoritária não atravessaria, em níveis distintos, o próprio neoliberalismo, independentemente de suas tendências, desde a sua origem? Seria o caso de relembrar, para além do apoio unânime de Hayek, Friedman, Becker e Buchanan à ditadura de Pinochet, da alegria de Röpke com a notícia do golpe de Estado de 1964 que instaurou uma ditadura militar no Brasil ou ainda de que Hayek enviou um exemplar, com dedicatória, de sua Constituição da Liberdade ao ditador Salazar português?
O autoritarismo político neoliberal
A revolta do dia 6 de janeiro de 2021, em Washington, mostrou até que ponto Trump estava disposto a chegar para impedir a ratificação do voto dos estados. O mais importante, porém, para o futuro, é inquestionavelmente que ele foi capaz de aumentar o número de vozes em sua defesa entre 2016 e 2020 (de 63 milhões a 73 milhões em 2020). Esta polarização não teria sido possível sem uma oposição de valores, aquela entre liberdade e igualdade, ou entre liberdade e justiça social, em uma só palavra, aquela entre “liberdade” e “socialismo”. Foi esta oposição que deu um sentido ao ódio ou ao ressentimento de uma grande parcela de seus eleitores.
Como disse Wendy Brown, a maior conquista dos Republicanos nestas eleições foi “associar Trump à liberdade”: “liberdade para resistir aos protocolos anti-Covid, para reduzir os impostos dos mais ricos, para aumentar o poder e os direitos das empresas, para tentar destruir o que resta de um Estado regulador e social”. É a associação com esta “liberdade” que leva o trumpismo para além da pessoa de Trump e é ela que permite a perspectiva de um trumpismo sem Trump. Trump encarna, certamente, um “autoritarismo neoliberal racista”, mas ele não é, de forma alguma, um acidente no decorrer da história americana, e os milicianos do Capitólio, longe de serem um corpo estranho à América, “inscrevem-se em uma longa tradição de terrorismo branco americano”, que só pode prosperar sobre o terreno de um “nativismo” de quatro séculos de idade.
Foi esta “liberdade desregulada”, “mais preciosa que a vida”, que Bolsonaro e seus partidários reivindicaram no Brasil. E, assim como Trump recorreu ao poder dos decretos (dentre eles o famoso “Muslim ban”), Bolsonaro procurou estender seu poder diminuindo, senão eliminando, o sistema de freios e contrapesos inerente à Constituição de 1988. Ele se levantou contra os limites impostos ao poder executivo pelo poder judiciário (a Corte Suprema) e pelo poder legislativo (o Congresso). Todas as suas ações foram direcionadas no sentido de uma expansão do poder executivo (intimidar os governadores e prefeitos favoráveis ao confinamento, acusados de corrupção, convocação da população às armas para forçá-los a ceder etc.)
Nos dois casos, do lado dos dirigentes, o autoritarismo político se caracteriza pela vontade de governar libertando-se de qualquer controle parlamentar ou constitucional. Isso significa, contudo, que o neoliberalismo enquanto tal requer a colocação em prática de um regime autoritário como sua condição de possibilidade? Em síntese, qual é a relação entre autoritarismo político neoliberal e regime autoritário?
Autoritarismo neoliberal e regime autoritário
Para responder a essa questão, é preciso considerar a categoria clássica de “autoritarismo” em voga na filosofia política. Neste campo, ela frequentemente designa um tipo de regime político: por “autoritarismo” entende-se um regime autoritário.
Esse é, particularmente, o caso de Hannah Arendt, dedicada a evitar uma confusão entre fenômenos tão profundamente distintos como os “sistemas tirânico, autoritário e totalitário”, assim como sua inscrição em um continuum que considera apenas diferenças de grau: se os regimes autoritários se caracterizam por uma “restrição da liberdade”, essa última não deve ser confundida com a “abolição da liberdade política nas tiranias e nas ditaduras”, nem com a “eliminação total da própria espontaneidade” nos regimes totalitários[ii]. Uma tal tipologia não é de ordem histórica e não pode ser compreendida para além da referência a um mundo no qual “a autoridade foi apagada ao ponto de quase desaparecer” – a autoridade sendo entendida, aqui, a partir do conceito romano de autocritas, como sendo distinta do poder (protestas).
Se nos direcionarmos aos historiadores, distinguiremos regimes como o fascismo italiano e o nazismo alemão, que visam “garantir um enquadramento total da sociedade” e procuram “formar um novo homem”, dos regimes autoritários, tradicionalistas e conservadores, como o Portugal de Salazar, a Espanha de Franco e a França de Vichy[iii]. Agora, a distinção se passará no interior dos próprios regimes ditatoriais, e não entre os regimes autoritários, ditatoriais e totalitários, como em Arendt.
A dificuldade de tais classificações se deve ao fato de que elas se mostram inoperantes quando se trata de dar conta das múltiplas formas do neoliberalismo de governo. Seria o fato de Hayek ter apoiado o Salazar e de Friedman ter se mostrado entusiasta, em 1997, da forma com que a Grã-Bretanha agiu como “ditadora benevolente” em Hong Kong o suficiente para estabelecer que todos estes regimes foram “regimes neoliberais”? Podemos nos recusar a entrar em tais classificações e nos dedicar a salientar a tendência comum dos regimes autoritários a dar primazia ao poder executivo às custas do legislativo. Essa caracterização dos regimes autoritários, no entanto, é excessivamente geral para ser pertinente: afinal, onde devemos marcar a diferença entre os regimes que demonstram tais tendências e aqueles regimes autoritários característicos, onde toda pluralidade política foi banida?
Ela também se mostra incapaz de dar conta da diversidade de formas assumidas pelo neoliberalismo de governo. Dessa maneira, pode acontecer que um dirigente como Macron jogue intencionalmente com os recursos de uma Constituição hiperpresidencialista (prolongação do estado de urgência desde 2015) para ir muito além de seus antecessores na colocação em prática de políticas neoliberais iniciadas por eles nesta mesma posição. Mas também pode acontecer que um chefe de Estado consiga modificar a Consituição existente no sentido da colocação em prática de um regime autoritário: Viktor Orban aboliu, desta forma, as garantias democráticas mais elementares, atribuindo a si plenos poderes por uma duração ilimitada. Estas condições estão longe de ser indiferentes à luta política pela democracia.
Constituição política e “constitucionalismo de mercado”
À primeira vista, existe, na predileção dos neoliberais pelo Estado forte senão autoritário – algo difícil de conciliar com sua insistência quase unânime na inviolabilidade das regras do direito. Como afirmar, ao mesmo tempo, a necessidade de um Estado forte e a limitação do poder governamental pelas mesmas regras? Na verdade, tais regras se reduzem àquelas do direito privado. O que torna o neoliberalismo original é afirmar que o direito privado deve ser constitucionalizado. Nós designaremos por “constitucionalismo de mercado” a elevação das regras do direito privado (incluindo o comercial e o penal) ao nível das leis constitucionais, seja ela prolongada ou não por sua inscrição em uma Constituição política.
Mas o que se deve entender por “constitucionalização”? Que relação existe entre constitucionalização e Constituição? E qual sentido dar à ideia tipicamente neoliberal de “constituição econômica”? Não se trata de sancionar, depois de outorgada uma Constituição estatal, um direito desprovido, em si mesmo, de qualquer constitucionalidade. Muito pelo contrário, trata-se de reconhecer, desde o princípio, que a economia tem um âmbito constitucional livre de qualquer formalização até um segundo momento. Vemos que a originalidade do neoliberalismo está em inscrever a Constituição na ordem da economia através da mediação do direito, sem necessariamente pressupor sua incorporação em uma constituição política estatal.
Em sua origem, na década de 1930, Eucken e Böhm, dois fundadores do ordoliberalismo alemão, davam dois sentidos à noção de “constituição econômica”: um sentido descritivo, aquele de uma realidade sociológica dada, e um sentido normativo, aquele de uma ordem jurídica desejada. Eles não pensavam, portanto, a “constituição econômica” em seu sentido literal, assim como não afirmavam que tal constituição deveria ser incorporada em um documento jurídico fundador[iv]. Em Direito, legislação e liberdade, Hayek qualifica as regras do direito privado como leis “constitucionais”, afirmando que elas antecedem a constituição política e não fazem parte dela. Para que fique mais claro, nós distinguiremos sistematicamente três grandes vias da constitucionalização neoliberal: aquela da promulgação de uma nova Constituição autoritária, aquela da modificação da Constituição existente em um sentido autoritário e aquela de um Tratado constitucional sem Estado impondo uma política de concorrência.
Impor uma nova Constituição pela ditadura estatal
Nós conhecemos o exemplo do Chile de Pinochet, apoiado por Hayek e Friedman. Mas prestamos pouca atenção ao conteúdo da Constituição promulgada em 1980. Esta constituição, no entanto, é sem dúvidas a única que podemos qualificar como “neoliberal” em razão de sua inspiração fundamental. Em seu núcleo, tem lugar o “princípio de subsidiariedade”: o setor privado tem prioridade em um mercado a menos que o Estado possa provar sua superioridade, que deve ser ratificada por uma votação no Congresso. Interditando, de início, qualquer possibilidade de alternativa política, mesmo em caso de alternância eleitoral, essa constituição foi justamente denominada a “Constituição armadilha”.
Mas o constitucionalismo neoliberal ainda pôde assumir outras formas. Na reunião do Monte Pélerin de Viña del Mar, em novembro de 1981, em sua contribuição intitulada “Democracia limitada ou ilimitada?”, James Buchanan alertou seus colegas ao fazer alusão às vitórias recentes de Tatcher e Reagan: não se pode “deixar-se cair no sono com as vitórias eleitorais temporárias dos políticos e dos partidos que partilham de nossas afiliações ideológicas”, pois elas não deviam distrair a atenção “do problema mais fundamental de impor novas regras para limitar os governos”[v]. Em maio de 1980, ele apresentou cinco conferências a dignatários de alto nível da junta militar para lhes auxiliar na elaboração da nova Constituição chilena. Ele recomendou a imposição de restrições severas ao governo e, em primeiro lugar, o rigor fiscal afim de evitar qualquer despesa excedente.
Em uma entrevista para o jornal El Mercurio, ele declarou: “Nós estamos em vias de formular meios constitucionais para limitar a intervenção do governo na economia e garantir que ele não coloque a mão nos bolsos dos contribuintes produtivos” (9 de maio de 1980). Compreendemos, à luz de suas declarações, que os neoliberais não tinham nenhuma ojeriza a recorrer à força, não apenas para salvar a ordem do mercado quando ela é ameaçada, mas para criar uma tal ordem por tal meio. De forma convergente, ainda que por vias diferentes, eles procuraram instaurar o constitucionalismo de mercado por todos os meios, inclusive aqueles da ditadura estatal.
A via das emendas constitucionais
A história recente do neoliberalismo de governo nos leva a considerar uma outra via de constitucionalização. No Brasil, o golpe de Estado institucional de 2016 contra Dilma Rousseff, presidente eleita em 2014, ilustrou tal tendência de maneira impressionante. O pretexto para lançar o processo de impeachment contra a presidente foi fornecido por manobras contábeis às quais seu governo fez recurso depois de ter utilizado os bancos públicos para executar pagamentos diversos. O processo de destituição, no Congresso nacional, retomou a acusação já formulada pelos juízes, aquela de uma tentativa de contornar as leis orçamentárias. No fundo, para além do pretexto fiscal, o impeachment visava criminalizar qualquer política que permitisse gastos maiores que aqueles autorizados pelas leis de austeridade.
Como disse Tatiana Roque: “Tratou-se, no fim das contas, do começo de um processo de constitucionalização da política econômica, cujo pico foi alcançado com a primeira providência do governo instaurado em 2016: uma emenda constitucional impondo um teto fiscal para as despesas públicas”. Embora esta constitucionalização sem precedentes na história do Brasil fosse válida apenas no nível federal, ela atingiu duramente os sistemas de educação e saúde. O presidente Temer, desta maneira, abriu caminho para Bolsonaro ao introduzir modificações constitucionais com o objetivo de congelar as despesas públicas por 20 anos. Bolsonaro, por sua vez, teve que modificar a Constituição para levar a cabo a reforma da previdência. Em ambos os casos, o mecanismo é o mesmo: a modificação foi realizada por meio de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC).
Vemos que a “constitucionalização” não necessariamente assume a forma da criação de uma nova Constituição, como no Chile, nem aquela da inscrição formal de uma constituição econômica na Constituição política existente.
Decisionismo constitucional e construção europeia
A construção da União Europeia permite a exploração de uma terceira via. Os pioneiros do ordoliberalismo alemão, W. Eucken e F. Bhöm, já haviam aberto o caminho para um decisionismo constitucional inspirado em Schmitt, entendendo a “constituição econômica” como uma “decisão de base” ou “decisão fundamental”. Desde 1937, Böhm descrevia a constituição econômica como uma “ordem normativa da economia nacional”, que não podia existir a nãos ser “pelo exercício de uma vontade política consciente e informada, uma decisão autoritária de leadership”[vi].
A partir dos trabalhos de Eucken e Böhm, os ordoliberais transpuseram esta concepção da constituição econômica à escala supranacional da Europa. Na verdade, desde o momento da assinatura do Tratado de Roma, ficou claro que esse Tratado, longe de ser uma cópia conforme da doutrina neoliberal, não era mais do que uma base jurídica geral destinada a ser formalizada por uma direção política. Foi apenas mais tarde, em 1962, que algumas adições ao Tratado atribuíram uma “jurisdição ilimitada” à Corte de justiça da União Europeia (CJUE) no que diz respeito às emendas e sanções. Os neoliberais pró Europa fizeram valer dois princípios: o poder da Corte de sobrepor o direito nacional e o reconhecimento do poder dos indivíduos de apelar diretamente à Corte. Uma tal bifurcação de poderes, para cima em direção à Comunidade e para baixo em direção aos indivíduos, foi essencial à leitura constitucionalista da construção da União Europeia: a Europa era uma “ordem jurídica supranacional” garantindo direitos privados diretamente aplicáveis pela Corte de justiça[vii].
É por tal razão que a dimensão autoritária do neoliberalismo revestiu-se, na Europa, de uma forma distinta daquela do autoritarismo estatal clássico. Na falta de um Estado europeu, encontramos aqui uma expressão concentrada do constitucionalismo de mercado, através do empilhamento de normas ditas “comunitárias” prevalecendo sobre o direito estatal nacional. A equação que prevalece é a mesma que Hayek formulou em seu tempo: soberania do direito privado garantida por um poder forte. Essa soberania está selada nos tratados europeus; o poder forte encarregado de garantir o respeito à soberania assume a forma de órgãos diversos, mas complementares, como a Corte de justiça, o Banco central europeu (BCE), os Conselhos interestatais (chefes de Estado e ministros) e a Comissão. É o constitucionalismo de mercado, independentemente de suas formas, que requer não mais simplesmente os poderes do Estado-nação, mas mecanismos institucionais de decisão subtraídos de qualquer controle democrático em escala supranacional.
Quanto a isso, vale a pena lembrar que o Tratado de Lisboa não tem, formalmente, o estatuto de uma Constituição: em vez disso, ele é um acordo entre Estados com valor constitucional, o que é bem diferente. Entretanto, ele integra uma forma de “constituição econômica europeia” (principalmente em sua parte III) consagrando as famosas “regras de ouro” (estabilidade monetária, equilíbrio orçamental, concorrência livre e não distorcida). Podemos, assim, dar a tais regras o caráter constitucional sem esperar a criação hipotética de uma Constituição europeia no sentido estatal do termo. Melhor: esta constitucionalização permitiu que se economizasse uma Constituição supranacional de ordem estatal, cuja adoção imediatamente encontraria forte resistência.
A dimensão autoritária do neoliberalismo
O essencial está, no fim das contas, na própria constitucionalização. O inconveniente de uma interpretação focada em termos de regimes políticos é que o neoliberalismo não pode ser definido positivamente por um regime político específico: ele se opõe, certamente, à democracia liberal clássica, mas pode fazê-lo por meio de formas políticas bastante distintas. Para não ir além destes dois exemplos, a Constituição da Vª República francesa e o Estado federal alemão são dois regimes políticos bem diferentes, com nenhuma relação necessária entre si, mas que possuem políticas neoliberais. Em contrapartida, e aqui se trata de um caso particular, será muito difícil dissociar o regime chileno da Constituição de 1980, posto que foi tal Constituição que o estabeleceu como um regime que consagra a orientação neoliberal.
A atitude adotada por Röpke em função das circunstâncias históricas é reveladora da flexibilidade do neoliberalismo: partidário de um “Estado total” forte no início dos anos 1930 na Alemanha e de uma “democracia ditatorial” em 1940, em 1942 ele extrapola o modelo dos cantões suíços – que não é precisamente um modelo autoritário – à escala mundial e, na primavera de 1945, ele deixa entender que a “questão alemã”, segundo o título de seu livro, não seria resolvida a não ser por meio de uma decentralização que transforme o Estado bismarckiano em uma estrutura federal[viii]. Devemos, portanto, prestar atenção ao risco de equívoco em torno do conceito de “autoritarismo”.
Assim, podemos falar de um “autoritarismo de Estado” para retornar a um regime autoritário, mas podemos também falar de “autoritarismo” para designar o modo de governo próprio a um chefe de Estado ou a um governo: entendemos, com isso, uma atitude que consiste em sobrepor qualquer consulta, ou ainda a tendência a favorecer a concentração dos poderes em oposição à sua repartição.
Do primeiro ao segundo significado do conceito de “autoritarismo”, não há nenhuma conexão lógica. Tudo o que podemos dizer é que quanto mais a Constituição é “liberal” no sentido do reconhecimento da divisão de poderes, mais os governantes autoritários encontram obstáculos no caminho da execução de seus projetos.
Tudo isso diz respeito à história, à política e à relação de forças. O que não muda, para além da diferença entre neoliberalismo “nacionalista” e neoliberalismo “progressista”, é a afirmação da necessidade de uma “constituição econômica” capaz de vincular os Estados, qualquer que seja a sua forma política. Aqui está o coração da dimensão autoritária da política neoliberal: a estrutura do Estado pode muito bem variar, os governos e suas formas também, o essencial é que os governantes sejam suficientemente fortes para impor, por uma via ou outra, a constitucionalização do direito privado. Isso porque o que está em jogo é a decisão fundadora de restringir a priori o campo do deliberável excluindo a política econômica da deliberação coletiva.
O erro cometido por aqueles que se recusam a admitir uma conexão necessária entre neoliberalismo e autoritarismo consiste em igualar autoritarismo a regime autoritário[ix]. Afinal, se podemos afirmar com razão que a “opção autoritária” (no sentido de um regime autoritário) não é mais do que uma das diversas estratégias no interior do pensamento neoliberal e que outras incluem uma descentralização da soberania estatal, seria certamente errado apresentar a experiência do neoliberalismo de “terceira via” (Clinton, Blair) como não sendo autoritário: na verdade, ele foi autoritário à sua maneira, mesmo não tendo necessidade de recorrer à instauração de um regime autoritário para atingir seus fins. Tatcher também não precisou disso, como ela deixou claro a Hayek – quem a instigava a adotar o Chile como modelo.
De forma definitiva, se procuramos ser ainda mais claros, é preciso distinguir três coisas: o autoritarismo como regime político, que pode ser definido por um questionamento da divisão dos poderes e pela tendência do executivo de assumir todo o controle – um autoritarismo que não é, longe disso, exclusivo ao neoliberalismo político –; o autoritarismo político neoliberal, que se define, por sua vez, por modelos de governo que podem se acomodar a regimes políticos profundamente distintos em função das necessidades estratégicas do momento; por fim, a dimensão autoritária irredutível do neoliberalismo, aquela que se realiza em graus diversos através da restrição do deliberável que implica a constitucionalização do direito privado.
Pierre Dardot é filósofo, pesquisador do laboratório Sophiapol associado à Unversidade de Paris-Nanterre. É autor, entre outros livros com Christian Laval, de Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI (Boitempo). Tradução: Daniel Pavan. Publicado originalmente no portal AOC.
Notas
[i] Cf. Ian Bruff, “The Rise of Authoritarian Neoliberalism”, Rethinking Marxism (2014); Wendy Brown, Peter E. Gordon e Max Pensky, Authoritarianism: Three Inquiries in Critical Theory, University of Chicago Press (2018); Bob Jessop, “Authoritarian Neoliberalism: Periodization and Critique”, South Atlantic Quarterly (2019); Thomas Biebricher, “Neoliberalism and Authoritarianism”, Global Perspectives (2020).
[ii] Hannah Arendt, “Qu’est-ce que l’autorité?”, em L’humaine condition, Gallimard, 2012, p. 675-676
[iii] Johann Chapoutot, Fascisme, nazisme et régimes autoritaires em Europe (1918 – 1945), PUF, 2020, p. 249
[iv] Quinn Slobodian, Globalists, 2018, p. 211
[v] Citado por Nancy MacLean, Democracy in Chains. The Deep History of the Radical Right’s Stealth Plan for America, Scribe, 2017, p. 372
[vi]Quinn Slobodian, Globalists, 2018, p. 211
[vii] Quinn Slobodian, Globalists, 2018, p. 210
[viii] Quinn Slobodian, Globalists, 2018, p. 113
[ix] É o caso de T. Biebricher em “Neoliberalism and Authoritarianism”