[Título original: Nesta hora de grande perigo, vamos reconstruir o movimento internacional antiguerra, em solidariedade com a resistência ucraniana.]
Pierre Rousset e Mark Johnson, Europe Solidaire Sans Frontière, 24 de março de 2022 (atualizado em 27 de março para alinhamento das traduções).
Apresentamos a seguir nosso entendimento das tarefas que a esquerda enfrenta, particularmente no Ocidente. Esperamos contribuir para o debate e a construção do movimento de paz, solidariedade com a esquerda ucraniana e os movimentos sociais, apoio aos refugiados e anti-racismo, e o fortalecimento de alternativas ao imperialismo no Ocidente e no Leste do subcontinente europeu.
Vivemos em um mundo de guerra permanente. Temos experimentado vários alertas nucleares desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Mas a invasão russa da Ucrânia representa um ponto de virada: é a primeira vez desde 1945 que um alerta nuclear ocorre no contexto de uma guerra quente no coração da Europa.
Este conflito tem um impacto global, nos preços dos alimentos e dos combustíveis, nas relações comerciais, na integração regional e na forma como a esquerda entende a guerra, o imperialismo e a solidariedade.
O movimento internacional antiguerra havia se tornado menos ativo nos últimos anos, apesar dos conflitos no Iêmen, Congo, Etiópia e, é claro, mais de uma vez na Ucrânia. Agora enfrentamos um desafio urgente de reconstruir nossos movimentos internacionais de solidariedade e paz.
A reconstrução ou o fortalecimento dos movimentos anti-guerra coloca diferentes desafios para os socialistas em um país imperialista ou não, em um país da OTAN, com bases e mísseis americanos (como o Estado espanhol) ou sem (como a França), em um país ameaçado militarmente pela Rússia (Geórgia) ou dependente de uma garantia de segurança russa (Armênia).
Aqui na Europa devemos fazer todos os esforços para fortalecer os laços entre a resistência antiguerra no Ocidente e no Leste de nosso subcontinente, entre todos os lados do conflito. Devemos compreender a especificidade uns dos outros e encontrar maneiras de agir em conjunto em nível continental e global em torno de eixos comuns de mobilização (ver abaixo).
No oeste da Europa, poderíamos começar fazendo a pergunta: por que não vimos esta guerra chegar mais cedo? Camaradas e aliados de esquerda da Ucrânia, Rússia e outros países da região vêm tocando os sinais de alarme há vários anos. Mas muitos na esquerda ocidental acreditavam que o aumento da tensão militar nas fronteiras da Ucrânia era essencialmente um meio de pressão exercida por Moscou sobre os países da OTAN. Levamos em conta apenas o fator OTAN e nossa própria luta contra nossa própria classe dominante.
Agora vemos as coisas com mais clareza. Os discursos de Putin pouco antes e desde a invasão deixam claro o projeto imperial da Rússia, em suas dimensões militar, econômica, política e cultural.
Este conflito chegou em um momento de profunda crise na OTAN, após o desastre no Afeganistão, e tensões relacionadas com a administração Trump. As divisões internas eram evidentes, com alguns países europeus da OTAN propondo uma coordenação militar mais forte na Europa Ocidental, com um enfraquecimento da coordenação dos EUA. O presidente norte-americano Biden escolheu outras alavancas para recuperar o controle dos EUA na zona Ásia-Pacífico, com redefinição do papel do Quad (Austrália, Índia, Japão e EUA) e o estabelecimento do AUKUS (Austrália, Reino Unido e EUA - aqui à custa das relações entre EUA e Reino Unido, por um lado, e França, por outro).
Os recursos militares dos Estados Unidos e da OTAN eram (e continuam sendo) fracos na Europa, em comparação com o período da Guerra Fria. Esta fraqueza se mostrou na resposta imediata de Biden à invasão russa, quando ele anunciou imediatamente que não haveria intervenção militar por parte dos EUA. Vários países europeus da OTAN esperavam uma postura bem diferente, particularmente aqueles países com memória histórica da invasão e ocupação russa ou soviética.
Putin pretendia vencer rapidamente e colocar as potências ocidentais diante de um fato consumado, como havia feito com sucesso muitas vezes, na Chechênia, Síria, Donbas, Crimeia e Cazaquistão. Desta vez, os planejadores de Putin subestimaram a resistência do exército e da população da Ucrânia - tanto de língua ucraniana quanto russa. No entanto, a demonstração de força de Putin expôs e acentuou as divisões dentro da OTAN. Quase todos os dias, os líderes dos países da OTAN fazem declarações contraditórias sobre qual é a estratégia da aliança, particularmente no que diz respeito ao apoio à Ucrânia.
O conflito também expôs uma divisão em três direções na esquerda européia.
Os maiores setores da esquerda - os social-democratas e os verdes - se tornaram os mais eufóricos com a OTAN, como nos conflitos anteriores. Queremos ajudar esses progressistas a compreender as injustiças cometidas por nossos governantes, na Europa Oriental e no resto do mundo. Putin tornou esta explicação mais difícil. Após esta invasão, alguns progressistas se tornaram mais favoráveis à União Européia e à OTAN.
Parte da esquerda anticapitalista foi incapaz de encontrar o chão sob seus pés num conflito imposto por um imperialismo não ocidental. Estes camaradas estão confusos. Recusam-se a ir além das críticas brandas à invasão russa, relutam em estender a solidariedade à Ucrânia e insistem contra todas as evidências de que a OTAN é a única ou principal responsável, de que a Ucrânia é um fantoche ocidental ou um Estado proto-fascista, e de que a Rússia é a verdadeira vítima. Sua posição é "campista" - eles apoiam automaticamente quem quer que seja contra a classe dominante ocidental. Os ucranianos, e também os sírios, têm tentado durante anos advertir a esquerda ocidental contra esta política de beco sem saída. Esperemos que os olhos de alguns camaradas se abram finalmente, agora que temos outra guerra imperialista russa para lidar.
O fracasso dos campistas não está apenas na dimensão militar e geopolítica. O ponto de partida da solidariedade é certamente a defesa das populações que são vítimas da guerra. Os campistas não agem em solidariedade com a população ucraniana, em nome de suas considerações geopolíticas distorcidas. Eles separam friamente o sofrimento humano, reconhecendo as vítimas do imperialismo americano, e marginalizam, ignorando ou negando a existência de vítimas de outros imperialismos (na Síria, as vítimas de Bashar al-Hassad e seus partidários russos, na Eurásia os chechenos, georgianos e ucranianos, e na China os uigureses e tibetanos).
Rejeitamos esta abordagem. Consideramos que a empatia com as populações afetadas pela guerra, repressão e exílio é uma força motriz fundamental do internacionalismo e da ética militantes.
"Se você tremer de indignação contra toda injustiça, então você é um camarada meu". Ernesto Che Guevara
Apresentamos abaixo nossa compreensão das tarefas que, em especial, a esquerda ocidental enfrenta. Esperamos contribuir para o debate e a construção do movimento de paz, solidariedade com a esquerda ucraniana e os movimentos sociais, apoio aos refugiados e anti-racismo, e o fortalecimento de alternativas ao imperialismo no Ocidente e no Leste do subcontinente europeu.
Teses sobre o movimento pela paz
Esta é uma guerra injustificada do imperialismo russo contra o país mais pobre do continente europeu
A Rússia deveria acabar imediatamente com todas as formas de interferência na Ucrânia e retirar todas as suas tropas e mercenários, e imediatamente deixar de financiar as milícias pró-russas no Donbas ( região da Bacia do Rio Don). Forças de manutenção da paz das Nações Unidas deveriam ser destacadas para o território das chamadas Repúblicas Populares de Donetsk e Luhansk e na Crimeia, até que o status definitivo desses territórios possa ser resolvido pacificamente, com base na vontade da população, incluindo antigos residentes que deixaram essas regiões como resultado de conflitos nos últimos anos.
Apoiamos a resistência armada ucraniana; desejamos a libertação da Ucrânia de seus ocupantes estrangeiros por qualquer meio legítimo. Por conseguinte, somos a favor do fornecimento de armamentos defensivos às autoridades e ao povo ucraniano. Reconhecemos o direito dos ucranianos de obter armas de qualquer fonte, inclusive dos países da OTAN.
Apoiamos particularmente a entrega de armas mais adequadas às necessidades de uma resistência popular, incluindo armas antitanque e sistemas de defesa antiaérea. Rejeitamos as condições prévias e desculpas impossíveis daqueles que se opõem a uma vitória ucraniana, exigindo que a Ucrânia deve primeiro garantir que nenhuma arma caia nas mãos da extrema direita ou de elementos criminosos (impossível), ou que a Ucrânia só compre armas de países não alinhados, mesmo quando os países da OTAN as forneçam gratuitamente.
Em face de uma guerra de agressão, solidariedade significa reconhecer o direito dos ucranianos de se defenderem. Que o governo ucraniano seja capitalista não muda a situação. Nem a existência da extrema direita na Ucrânia, como em qualquer outro lugar, e na verdade menor do que em muitos países, em particular na Rússia.
Não cabe a nós decidir pelos ucranianos a forma de sua resistência. Até agora, eles se engajaram em uma luta armada multifacetada, juntamente com a mobilização cívica. O pacifismo e a resistência passiva não teriam sido suficientes para evitar as tragédias e o custo humano desta guerra, da qual todos estamos cientes. Uma vitória relâmpago para Putin teria sido um incentivo para que ele fosse ainda mais longe.
A própria indústria de armamento da Ucrânia não é suficiente para atender às necessidades imediatas do país, e foi muito danificada durante o conflito. Ela não produz as armas específicas que são mais necessárias e nem em quantidade suficiente.
Diante do risco de uma escalada em uma guerra continental e com o uso de armas nucleares, devemos nos opor a qualquer movimento em direção a um conflito direto entre a OTAN e a Rússia
O conflito direto entre países imperialistas traria um sofrimento muito maior, com impactos potencialmente negativos globais. O conflito da Ucrânia é o último de uma longa série de confrontos indiretos entre os países da OTAN e a Rússia, antes a União Soviética, que se estende até a Guerra Fria. Os movimentos que poderiam provocar uma entrada em conflito direto inter-imperialista incluem o uso "tático" de pequenas armas nucleares ou químicas dentro da Ucrânia, a imposição da OTAN de uma "zona de exclusão aérea" sobre partes da Ucrânia e a presença de tropas da OTAN dentro da Ucrânia.O apoio ocidental à Ucrânia neste conflito, incluindo o fornecimento de armas de defesa e ajuda não militar, não faz desta uma guerra inter-imperialista direta, assim como os numerosos conflitos durante a Guerra Fria não foram guerras inter-imperialistas, mesmo que o Ocidente e a URSS geralmente fornecessem apoio às partes adversárias.
Contra a invasão russa, pedimos Boicote, Sanções e Desinvestimento (BDS)
Apoiamos sanções estatais que visam os bens pessoais da elite russa, e sanções comerciais e financeiras que reduzem a renda do Estado russo e sua capacidade de continuar sua invasão e ocupação da Ucrânia.
Também apoiamos iniciativas da sociedade civil para boicotar e pressionar as corporações a desinvestir da Rússia, sempre que o alvo estiver apoiando diretamente à invasão e ocupação russa da Ucrânia.
Esta não é a primeira vez que defendemos o uso de sanções internacionais. Exigimos sanções contra o regime do apartheid na África do Sul. Hoje também o fazemos, como parte da campanha BDS em defesa dos palestinos, e em relação à Birmânia (Myanmar) após o golpe militar do ano passado. O tipo de sanções é obviamente uma questão fundamental. Não devemos apenas nos alinhar com Washington ou Bruxelas. Ao contrário, devemos levar em conta a opinião das correntes progressistas ucranianas sobre a natureza das sanções que podem ser defendidas e as que devem ser condenadas, na situação específica atual. Desde a invasão, a população ucraniana tem sido esmagadoramente a favor das sanções propostas pelos governos ocidentais. Até agora, a esquerda ucraniana não se opôs a nenhuma sanção específica. A esquerda radical russa não se opõe, até o momento ao BDS, embora tampouco apela a eles.
As sanções se concentraram na redução do acesso russo aos mercados financeiros e serviços bancários, juntamente com uma lista em rápida expansão de proibições de importação/exportação. Alguns dos estados membros do leste da UE estão pedindo uma proibição total do comércio com a Rússia. As maiores economias ocidentais até agora preferem proibições específicas e impostos de importação punitivos sobre os produtos russos. Estas sanções certamente causarão uma severa recessão na Rússia, mesmo que a UE e outros países da Europa Ocidental tenham evitado até agora a sanção mais eficaz: reduzir sua compra de petróleo e gás russo. No entanto, as empresas ocidentais começaram a reduzir suas compras da Rússia, permitindo aos compradores asiáticos, particularmente indianos e chineses, obter grandes descontos na compra de petróleo.
O boicote da sociedade civil e a pressão sobre as instituições para que descontinuem seus investimentos na Rússia tem sido generalizado e diversificado nas poucas semanas desde a invasão. Antecipando demandas da sociedade civil e dos governos ocidentais, um número crescente de multinacionais e empresas menores estão suspendendo ou terminando suas operações na Rússia. Há também uma tendência de consumidores recusarem bens e serviços russos, o que impacta negativamente a economia russa, com o principal impacto caindo sobre a população em geral e não sobre os tomadores de decisão.
Há também um movimento em grande parte espontâneo de boicotes culturais e esportivos. Isto tem sinalizado a condenação ocidental das políticas e ações russas e a solidariedade com a Ucrânia.
Alguns boicotes expressam uma hostilidade à cultura russa ou aos cidadãos russos como tal. Estes causam discriminação injustificada, alienam os russos bem-intencionados e reforçam uma agressiva campanha ocidental de demonização do "outro" russo.
Todos os refugiados da Ucrânia devem receber a melhor acolhimento
Pela primeira vez, a União Européia ativou sua diretiva de "proteção temporária" em favor desses refugiados, o que lhes dá acesso ao trabalho, aos estudos e à proteção social. Este precedente deve agora ser utilizado em benefício de outros refugiados (sírios e outros). Sob pressão da sociedade civil, vários Estados europeus já estenderam a "proteção temporária" e outras medidas específicas do país (transporte gratuito, etc.) a todos os refugiados ucranianos - cidadãos ou estrangeiros anteriormente residentes na Ucrânia. Devemos continuar a pressão, também em solidariedade com os refugiados de outros países. Denunciamos o racismo institucional e generalizado exposto na resposta humanitária ocidental muito maior ao sofrimento ucraniano em comparação com o sofrimento dos refugiados não-brancos (ou não-cristãos) de outros conflitos e catástrofes.
A maioria dos refugiados da Ucrânia está concentrada nos estados vizinhos da UE e na Moldávia. Estes estão entre os países mais pobres da Europa. A maioria dos serviços de apoio aos refugiados nesses países é fornecida pela sociedade civil. O Estado está falhando em prover moradia e proteção social e é muito lento na expansão das instalações de saúde e educação necessárias para os refugiados que ficarão. O Estado deve fazer mais.Todos os países da UE devem compartilhar a carga financeira das crises de refugiados.
A enchente de refugiados atesta a extrema violência desta guerra. É raro testemunhar tal êxodo em tão curto período de tempo. Sugere uma 'limpeza' genocida e a eliminação de elementos ucranianos e desleais do território planejado das colônias da 'Nova Rússia'.
O movimento internacional antiguerra deve ser independente das grandes potências
Isso significa não se alinhar com as potências ocidentais (Estados Unidos, União Européia, Grã-Bretanha) como fizeram os liberais ocidentais, os social-democratas e os verdes. Significa também não se alinhar com a Rússia ou a China com uma posição "campista" (apoiando qualquer que seja o "campo" contra o imperialismo ocidental).
Um alinhamento pró-russo e campista dentro do movimento pela paz significaria evitar críticas à expansão imperialista regional da Rússia, aceitação acrítica das reivindicações russas de genocídio contra os ucranianos de língua russa, legitimando os estados fantoches controlados pela Rússia no Donbas, e exigindo o direito de autodeterminação (separação da Ucrânia e integração na Rússia) para áreas sob controle militar russo, em um processo controlado pela Rússia. Significaria também retratar falsamente o governo burguês da Ucrânia como um governo fantoche ocidental fascista ou ilegítimo e exagerar o tamanho e a influência da extrema-direita nacionalista ucraniana, enquanto minimiza ou ignora a natureza cada vez mais autoritária e reacionária do próprio regime de Moscou.
Um alinhamento pró-ocidental significaria evitar críticas ao militarismo da OTAN e à expansão econômica neocolonial da União Européia na Europa Oriental. Significaria legitimar os movimentos antidemocráticos da elite política e econômica ucraniana (incluindo a proibição de organizações de esquerda e a restrição selvagem dos direitos sindicais trabalhistas). O alinhamento acrítico pró-ocidental nesta guerra também pode significar, cada vez mais, justificar restrições às liberdades civis nos países ocidentais e criminalizar opiniões e atividades políticas anti-ocidentais.
Somos contra a expansão e a agressão da OTAN
Opomo-nos a todos os aumentos nas despesas militares dos países da OTAN. Na verdade, pedimos reduções nas despesas militares em favor dos setores social, de saúde e de educação em particular. Opomo-nos a toda expansão futura das já extensas instalações da OTAN na Europa e propomos uma redução das forças da OTAN como um elemento essencial da desmilitarização do espaço do Leste Europeu. Opomo-nos a todas as instalações da OTAN fora de seus países membros. Opomo-nos à adesão de qualquer país à OTAN. Somos a favor de qualquer país que deixe a OTAN, e da dissolução da aliança. A segurança futura dos países europeus, particularmente dos países mais pobres, deve ser baseada em um quadro amplo e não conflituoso.
Em toda a Europa Ocidental, são esperados aumentos nos orçamentos militares. A Alemanha, em particular, está operando uma virada histórica em termos de seus compromissos militares. Os países europeus da OTAN continuam hesitando entre a integração clássica, liderada pelos EUA, e uma integração européia mais autônoma (a Alemanha e a Holanda já integraram seus batalhões de tanques e fuzileiros, mais unidades conjuntas, e estão planejadas aquisições conjuntas e apoio logístico). Aa duas opções têm ambições imperialistas; a abordagem liderada pela Europa provavelmente significaria apenas um redirecionamento para o estrangeiro próximo e um menor envolvimento nas forças expedicionárias globais lideradas pelos EUA.
Não vemos contradição entre o apelo à redução das despesas militares nos países da OTAN e o fornecimento de armas à Ucrânia. Na verdade, a doação de armas à Ucrânia sem aumentar os orçamentos militares nos países da OTAN contribuiria para a redução do estoque de armas da OTAN. Naturalmente, isto só terá um efeito limitado, já que os países da OTAN estão fornecendo à Ucrânia a maior parte das séries de armas mais antigas, particularmente as armas da era soviética ainda em uso ou em armazenamento pelos membros da OTAN no leste da UE. Nos países europeus da OTAN, há também um crescente apoio popular ao reforço e construção de bases militares, e à instalação das mais avançadas tecnologias de guerra dos Estados Unidos. Alguns membros da OTAN no leste da UE propõem doar seus próprios armamentos da era soviética à Ucrânia, em troca de armas mais modernas dos membros mais ricos da OTAN mais a oeste. A maioria das antigas repúblicas soviéticas e países satélites da Europa estão agora na OTAN. Muitos desses países têm fronteira com a Rússia, Ucrânia e/ou Belarus, e uma memória relativamente recente da agressão e ocupação soviética/russa. O atual conflito demonstrou sentimentos compreensíveis de insegurança, encorajados pelas autoridades e pela grande mídia.
É provável que os governos de alguns países europeus, que atualmente são neutros, se candidatem à adesão à Organização, e há um crescente apoio público para isso. Os países neutros da Europa Ocidental seriam provavelmente bem-vindos à OTAN, assim como os países dos Balcãs, onde a Rússia não tem reivindicações territoriais. Haverá uma pressão contínua sobre os neutros da UE (Suécia, Finlândia, Irlanda, Áustria e Malta) para participar da manutenção conjunta da paz, prevenção de conflitos e outras cooperações civil-militares com os membros da UE da OTAN na Política Comum de Segurança e Defesa (PSDC). É provável que o escopo da CSDP seja ampliado, atraindo cada vez mais os neutros para uma aliança de fato dominada pelos membros da OTAN.
As únicas ex-repúblicas soviéticas e países satélites na Europa que não aderiram à OTAN são a Moldávia e a Ucrânia. A OTAN pode continuar a fazer falsas promessas de futura adesão a esses países, mas o atual conflito confirmou a recusa da OTAN em expandir-se ainda mais para o espaço da ex-URSS. Entretanto, o apoio militar da OTAN provavelmente será aumentado para esses países e para outros aliados ocidentais na ex-URSS, notadamente a Geórgia, que tem sua própria história recente de conflito, invasão e ocupação pelas forças russas e aliados locais. É provável que as populações locais prefiram a perspectiva de adesão à OTAN, na ausência de acordos de segurança alternativos confiáveis.
Opomo-nos a todo destacamento de tropas russas fora das fronteiras russas
Opomo-nos a todo o destacamento internacional de forças policiais entre os países membros da Organização do Tratado de Segurança Coletiva (CSTO). Somos a favor da dissolução da CSTO.
Se a Rússia for parcial ou largamente vitoriosa nesta guerra, será cada vez mais provável que Moscou ameace ou use a força em suas relações com a Belarússia, e com as antigas repúblicas soviéticas no sul do Cáucaso e na Ásia Central. A CSTO tem um foco policial, mas poderia ser expandido. Entretanto, apenas Belarússia e Armênia dependem militar e economicamente da Rússia; outros estados da CSTO podem ser tentados a diversificar suas alianças, particularmente em relação à China. Uma derrota russa provavelmente aceleraria este processo. Enquanto os mercados de bens e de trabalho russos continuam importantes para muitos desses países, os produtores de petróleo e gás como Azerbaijão, Cazaquistão, Uzbequistão e Turcomenistão têm mais opções para o desenvolvimento econômico.
A eliminação de armas nucleares, biológicas e químicas é mais importante do que nunca
A Rússia, os EUA, a França e o Reino Unido devem reiterar seu compromisso de não utilizar armas nucleares pela primeira vez. Diante do atual impasse militar, Putin subiu repetidamente a aposta estratégica ao brandir a ameaça nuclear e depois disparar um míssil hipersônico de médio alcance contra um alvo próximo à fronteira com a Polônia. Ambos os lados acusaram o outro de planejar ataques químicos ou biológicos. Vemos que, em vez de tornar a guerra impossível (a doutrina do "equilíbrio de poder" e a preocupação com a "destruição mutuamente assegurada"), a posse de armas nucleares é realmente usada para permitir a guerra convencional no coração da Europa, sob o abrigo do guarda-chuva atômico do agressor. O movimento pacifista há muito defende que somente o desarmamento nuclear poderia nos livrar desta ameaça. Putin provou que estávamos certos. Mas atenção: todas as potências que possuem armas nucleares buscam torná-las politicamente aceitáveis e, uma e outra vez, avançam com conceitos para o uso tático de armas nucleares menores e mais aceitáveis.
Teses sobre solidariedade com a Ucrânia
Pela libertação nacional! Os ucranianos têm o direito de viver em paz!
Todos nós vimos as bandeiras carregadas pelos ucranianos na diáspora em manifestações de paz: "Se os russos pararem de lutar, não haverá guerra; se os ucranianos pararem de lutar, não haverá Ucrânia". Quanto mais forte for a resistência ucraniana, e maior a capacidade dos ucranianos progressistas de participar e moldar essa luta, melhor será a paz, e melhor será a sociedade ucraniana depois.
Os de fora não devem clamar pela paz a qualquer preço, enquanto os ucranianos apoiam maciçamente a resistência militar contínua. Neste contexto, a paz a qualquer preço significa maximizar os ganhos russos às custas dos ucranianos.
É provável que a Ucrânia ofereça um compromisso constitucional de neutralidade e reitere sua recusa existente de bases estrangeiras permanentes (a única potência estrangeira que mantém tropas permanentemente na Ucrânia é a Rússia, que já tem forças estacionadas em partes do Donbass e da Ucrânia há vários anos). A Rússia exigiu que à Ucrânia fossem permanentemente negadas algumas categorias de armas mais pesadas ou ofensivas. A questão, então, é: que garantias de segurança terá a Ucrânia na nova paz? A Rússia e o Ocidente prometeram respeitar as fronteiras da Ucrânia quando este país renunciou a todas as suas armas nucleares (o único país que já o fez). O valor dessas promessas é agora tristemente claro para todos. Presumivelmente a Ucrânia buscará algum tipo de mandato da ONU ou da OSCE. O maior obstáculo a tal acordo será a oposição russa e a contínua ameaça de intervenção russa, particularmente se a Rússia mantiver suas colônias de fato no Donbass.
Denunciamos os crimes de guerra cometidos pelo exército russo na Ucrânia
Além da invasão injustificada, a Rússia atacou civis, e atacou a infra-estrutura civil, como hospitais. A Rússia impediu a saída de civis das cidades sitiadas, ao mesmo tempo em que ameaçou os civis com tribunais militares se eles não partissem. O fato de líderes ocidentais estarem denunciando crimes de guerra russos não significa que devamos ficar em silêncio! Ao contrário, denunciamos todos os crimes de guerra e crimes contra a humanidade, independentemente do ator responsável. Denunciamos a hipocrisia das potências ocidentais que denunciam Moscou, invocando a legalidade internacional e grandes princípios humanitários que elas mesmas têm repetidamente violado.
Os vitoriosos desta guerra provavelmente estabelecerão algum tipo de tribunal. Nossa preferência é por tribunais independentes em uma Ucrânia democrática, com uma perspectiva de restituição e reconciliação entre ucranianos, e entre os cidadãos da Ucrânia e os cidadãos da Rússia.
Os direitos das minorias na Ucrânia devem ser reconhecidos. Mas a defesa deste direito não deve alimentar o discurso de Putin, que afirma intervir para defender os ucranianos de língua russa ameaçados de genocídio.
A questão do retorno à igualdade lingüística legal e o uso das diversas línguas do país na educação, administração e mídia, inclusive no Donbas e na Crimeia, não pode ser resolvida sob a ocupação russa. Uma preocupação genuína com as minorias na Ucrânia também deve incorporar medidas para proteger as minorias ucraniana e tártara na Crimeia, mais de um quarto da população, que perderam praticamente todos os direitos lingüísticos e culturais desde a invasão russa e a incorporação unilateral daquele território na Federação Russa.
A Rússia tem espalhado com sucesso propaganda a respeito da situação dos falantes russos na região de Donbass, levando à confusão de muita gente de esquerda ocidental e, em alguns casos, seu apoio às demandas russas. Devemos deixar claro que as autoproclamadas repúblicas populares na região de Donbas são entidades apoiadas pela Rússia, dirigidas por uma aliança de enviados russos, máfias locais e aventureiros de extrema-direita. Há uma enorme repressão social, política e cultural, pior do que em qualquer outro lugar do continente europeu e que atravessa a Federação Russa. A Rússia reconheceu estes "Estados", sem definir suas fronteiras. Pode-se supor que as tropas russas imporão falsos referendos nas regiões vizinhas e gradualmente as integrarão no projeto colonial da "Nova Rússia". Neste contexto, exigir a autodeterminação imediata dos falantes de russo nestas regiões é dar apoio efetivo à colonização russa da Ucrânia e à consolidação de administrações coloniais extremamente reacionárias. A esquerda ucraniana, que inclui muitos ativistas do Donbas, pede o reforço dos direitos dos ucranianos de língua russa como parte de um novo arranjo democrático após a expulsão das forças invasoras.
Como apontam nossos amigos do Movimento Social da Ucrânia, o discurso de Putin converge perversamente com o discurso dos ultranacionalistas de língua ucraniana, que sempre consideraram os ucranianos de língua russa como sendo de lealdade duvidosa.
Rejeitar o veneno de todo "choque de civilizações"!
A grande maioria dos ucranianos de língua russa está resistindo aos invasores. Mesmo nas cidades recentemente ocupadas pelo exército russo, civis desarmados demonstram sua rejeição à ocupação em grandes e pacíficas manifestações. Os ucranianos de língua russa continuam a cair como vítimas da guerra russa, se encontram vítimas de bombardeios ou se encontram nas estradas do exílio. Reconhecendo a fidelidade esmagadora dos russófonos, o governo ucraniano desbloqueou recentemente as mídias sociais russas e incentivou os cidadãos a se envolverem diretamente com sua família e amigos na Rússia. Uma vitória parcial ou total da Ucrânia pode fornecer a base para a reintrodução do idioma russo na administração pública, na educação e na mídia pública. Por outro lado, uma humilhação ucraniana pode encorajar a extrema-direita a visar novamente os ucranianos de língua russa como um elemento desleal e não confiável.
Dentro da Rússia, e entre os falantes de russo em outros países, o imperialismo russo também é promovido como uma cruzada cultural e política para restaurar o domínio étnico/linguístico/cultural russo nas regiões que antes faziam parte dos impérios russo ou soviético. Um elemento disso é a negação da identidade ucraniana (a Ucrânia não tem uma história significativa separada da da Rússia, a língua ucraniana é um dialeto do russo, a cultura ucraniana é uma variante folclórica da cultura russa, etc.). Partes da esquerda ocidental têm sido vulneráveis a esta grande propaganda russa, talvez porque seu conhecimento regional se limite ao estudo do componente russo da revolução no império russo e do componente russo da resistência anti-estalinista na URSS. Talvez também devido ao baixo status da cultura ucraniana, no Ocidente, refletindo sua marginalização como o país mais pobre do continente, e a concentração de migrantes ucranianos nos setores mais instáveis e pior remunerados da economia da Europa Ocidental. Qualquer que seja a explicação, o fracasso da maioria da esquerda ocidental em se envolver com pensadores e ativistas ucranianos é uma fonte contínua de espanto e consternação para nós.
Há também um ressurgimento das reivindicações ocidentais de superioridade "civilizacional", em contraste com o "orientalismo" e a barbárie russa. Neste discurso ocidental, que tem raízes profundas e reacionárias, "Europa" é sinônimo de civilização e progresso, e qualquer pessoa do leste ou do sul só é admitida à civilização e ao progresso na medida em que demonstra lealdade aos valores "ocidentais".
Apoiamos a solidariedade política, financeira e material com as forças da esquerda e os movimentos sociais independentes na Ucrânia.
Ao fornecer solidariedade de esquerda à resistência do povo ucraniano, estamos ajudando a esquerda ucraniana a se fortalecer o melhor possível, em vez de deixar o campo aberto aos neoliberais e à extrema-direita. Defendemos a solidariedade prática e concreta de povo para povo. Não podemos ficar satisfeitos com uma simples posição política ou declarações de princípio, ou com uma crítica ao nosso próprio governo.
A solidariedade é necessária em ambos os lados da linha de frente. Nós não impomos a solidariedade, nós a oferecemos. Assumimos a liderança da resistência ucraniana e dos movimentos antiguerra no país agressor. Isso significa, em primeiro lugar, escutar, em segundo lugar, pensar e depois agir.
Não devemos nos associar aos numerosos apelos da esquerda ocidental pela paz às custas dos ucranianos. Algumas dessas iniciativas são bem intencionadas. Mas elas continuam sendo propostas arrogantes, elaboradas e promovidas por ocidentais, sobre os ucranianos, sem os ucranianos.
As forças de esquerda na Ucrânia estão totalmente engajadas em todos os aspectos da luta de libertação. Os apoiadores de alguns grupos se juntaram às forças de defesa militar ou civil, mas a escala destas iniciativas ainda é pequena. A esquerda tem desenvolvido várias iniciativas humanitárias que merecem nosso apoio. Os progressistas ucranianos continuam a se organizar, pressionar e publicar para demandas civis e políticas, e resistem a todas as tentativas de impor reformas reacionárias usando a guerra como pretexto. Há também ativistas de esquerda na diáspora ucraniana, desempenhando um papel importante no movimento de paz e nas iniciativas de ajuda aos refugiados.
A esquerda russa, os movimentos feministas e de paz enfrentam uma repressão crescente, mas continuam seus esforços. Eles são apoiados por uma crescente mobilização dos progressistas russos na diáspora. Em guerras anteriores, as famílias de soldados mortos desempenharam um papel importante na conscientização pública e no protesto contra o militarismo, ao lado de estudantes e outras comunidades ativistas.
A esquerda em Belarússia é numericamente fraca, mas continua seus esforços pela democratização e justiça social. Existem redes subterrâneas que incentivam e facilitam a deserção e a emigração de jovens chamados para o serviço militar, bem como relatórios não confirmados de sabotagem de operações logísticas.Os partidos de esquerda na Europa Central (antigos países satélites da URSS, hoje membros da União Européia) atuam cada vez mais em solidariedade política com o Movimento Social (SR) na Ucrânia, retransmitem suas propostas e até se retiram dos fóruns de esquerda como o Internacional Progressista, que evitam tomar posição sobre a libertação da Ucrânia.
Vários grupos progressistas na Ucrânia começaram a arrecadar fundos. Associações progressistas na Holanda, Alemanha e outros lugares organizam campanhas de arrecadação de fundos para iniciativas progressistas e humanitárias na Ucrânia.
Em termos de apoio material, os sindicatos na França, por exemplo, estão se preparando para enviar um comboio de trabalhadores para mostrar solidariedade e prestar ajuda.
Rejeitamos os planos imperialistas russos e ocidentais para a Ucrânia. Tropas russas fora! Os bens, serviços e trabalhadores ucranianos devem ter acesso aos mercados ocidentais, sem qualquer obrigação para a Ucrânia de abrir seus próprios mercados. A dívida da Ucrânia deve ser cancelada. Fundos de quaisquer sanções ocidentais devem ser transferidos para as autoridades ucranianas.
Os esforços de Moscou para a integração econômica capitalista da ex-URSS sob o domínio russo estagnaram nos últimos anos. Em resposta às anteriores sanções ocidentais, Putin impôs uma mudança na estratégia de longo prazo da Rússia, desligando-se dos circuitos econômicos ocidentais e das instituições dominadas pelo Ocidente, aumentando a capacidade agrícola e industrial interna através da substituição de importações e do investimento intensivo em setores estratégicos. Putin quer reverter a integração econômica da Ucrânia na União Européia como um território periférico, e a privatização planejada de terras ucranianas nas mãos de empresas ocidentais. Em vez disso, ele resolveu que a reintegração forçada da Ucrânia, a segunda maior economia da ex-URSS, mas agora o país mais pobre da Europa, cimentará o domínio imperial russo sobre seu "quase estrangeiro" para outra geração.
Sua ambição é integrar as planícies férteis e os centros industriais da Ucrânia oriental no espaço econômico russo, fortalecendo o papel dominante de Moscou na produção de uma ampla gama de produtos agrícolas e de mineração, bem como sua capacidade industrial e sua competitividade. Após a anexação da Crimeia, esta invasão visa expandir o acesso da Rússia ao Mar Negro, a única rota marítima navegável durante todo o ano no limite europeu da Rússia.
Para este projeto, a Rússia de Putin precisa "somente" do leste e do sul da Ucrânia. Sem o fértil solo negro e a indústria do leste e sem sua costa, o que subsistir do estado ucraniano seria empobrecido, privado de recursos e à mercê de todos os seus vizinhos. Os estrategistas conservadores em Moscou já lançaram a idéia de oferecer territórios da Polônia, Hungria e Romênia no oeste da Ucrânia, reabrindo uma caixa de Pandora de tensões entre os vários países e nações européias.
A Ucrânia provavelmente entrará em falência após este conflito, e sua economia será perturbada e degradada, particularmente se a Rússia mantiver o controle dos territórios no Leste e no Sul do país.
O imperialismo ocidental buscará o controle sobre qualquer território ucraniano que a Rússia não ocupar, com base nos acordos de parceria neoliberais existentes e desiguais da UE com os países vizinhos.
Pierre Rousset, Mark Johnson