Henrique Fernandes de Magalhães
A ciência brasileira encontra-se em um momento bastante crítico, e não é de hoje. Esse processo de desmonte vem sendo implementado a pleno vapor como um projeto político desde a destituição da então presidenta Dilma Roussef em 2016, abrindo portas para a ascensão da extrema-direita no país. A partir de então, a oferta de bolsas de estudo tem caído drasticamente, fazendo com que inúmeros projetos sejam paralisados e, com isso, estudos de grande relevância fiquem impossibilitados de ser concluídos. Mas não para por aí.
Instituições historicamente comprometidas com a construção de valores éticos e políticos em prol da democracia, da liberdade de pensamento e do respeito à diversidade, as universidades e centros de pesquisa se tornaram o principal alvo da onda de extrema-direita, fortemente alicerçada no fascismo, que assola não somente o Brasil, mas diversos países no mundo. Estamos considerando aqui o fascismo como um conjunto de pressupostos ideológicos, e não como uma manifestação política que ficou relegada a um determinado momento histórico. Os ataques direcionados à ciência combinam informações falsas baseadas em crenças desprovidas de qualquer evidência, as populares fake news, têm como objetivo evidente a desmoralização das universidades e centros de pesquisa em geral como centro produtores de conhecimento e de transformação social, e culminam com o negacionismo científico.
O negacionismo, em termos pragmáticos, é a opção de refutar (ou relativizar) uma realidade como maneira de fugir de uma verdade incômoda ou inconveniente. Em outras palavras, é negar o óbvio, tudo aquilo que é empiricamente verificável. Trazendo a discussão para a ciência, cabe um questionamento: porque uma evidência empiricamente comprovada e consensual incomodaria a ponto de ela precisar ser refutada e/ ou relativizada? Partindo do pressuposto de que o conhecimento científico pode ser uma importante ferramenta fomentadora de transformação social por meio de formação de opinião e de políticas públicas (há inúmeros exemplos para comprovar isso), parece-nos óbvio afirmar que se existe negacionismo científico é porque a ciência é enxergada como uma ferramenta política por parte daqueles que a negam (ou a relativizam). Em suma: enfraquecer a ciência é um elemento consideravelmente relevante da implementação em curso de um projeto político fascista. A ciência tem se reerguer e, para isso, os cientistas têm que tomar partido e assumirem a linha de frente dessa luta.
Precisamos desconstruir o paradigma de que ciência e política são dimensões inconciliáveis e/ ou excludentes. Trata-se de um dualismo artificial e falso. Pensando no termo “política” sob um espectro mais amplo, a ciência é essencialmente política desde a sua concepção teórico-prática, uma vez ela necessita de financiamento público para sair do papel. A ciência e a formação de cientistas só existem porque há um investimento por parte da sociedade por meio do pagamento de impostos. Daí, nada mais justo do que pensar que quem investe espera algum tipo de retorno. Partindo desse pressuposto, é lógico inferir que a ciência tem um dever moral de dar um retorno à sociedade, em forma de informações úteis e de soluções práticas para os seus problemas em todas as suas esferas (ambientais, econômicas, por exemplo). Se um cientista vai a campo coletar informações para a sua pesquisa, inserindo-se num determinado contexto local e entrevistando pessoas, por exemplo, ele já está assumindo um papel político. Se o desfecho de sua pesquisa terá (ou não) uma implicação política mais efetiva, trata-se de uma outra discussão. Quando isso acontece, os resultados costumam ser positivos.
Na perspectiva de Paulo Freire, todo educador (compreendendo aqui um cientista como um formador de opinião e, portanto, um educador) é potencialmente um militante, uma vez que ele é um despertador de sensos críticos, e a opinião e o senso crítico são instrumentos de militância e transformação social. Pensando o termo “militância” num sentido mais amplo, militante não é somente aquele(a) que atua na linha de frente dos movimentos, pisando no terreno físico do campo de batalha. Militância também se faz em bastidores, produzindo ideias, formando opiniões. Logo, produzir conhecimento também é uma forma de fazer militância. O despertar dessa consciência por parte dos cientistas pode ser um divisor de águas.
Esse cenário de emergente crise sanitária e humanitária que enfrentamos atualmente, causada pela pandemia do novo coronavírus (Covid-19), cujas projeções de ocorrência tanto em escala espacial como temporal ainda são incertas, a necessidade da ciência se posicionar enquanto ferramenta de luta contra o autoritarismo, o negacionismo e todas as formas de opressão é ainda maior. A combinação de um cenário pandêmico com a iminência de um regime autoritário já está nos custando muito caro, e esse valor possivelmente será ainda maior. Não há ciência imparcial, parafraseando Paulo Freire. Dessa forma, a ciência deve assumir um lado, o lado do qual ela também faz parte: o dos oprimidos pelo fascismo.
Henrique Fernandes de Magalhães é biólogo (92.718/08-D), doutorando em Etnobiologia e Conservação da Natureza (UFRPE), professor da Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB) e militante ecossocialista (PSOL-PE).