Henrique Magalhães para o Fórum da Natureza, em 09 de junho de 2021.
O Estado Brasileiro, conforme rege a Constituição da República Federativa do Brasil em seus artigos 1 e 225 (Brasil, 1988), infere que a dignidade humana é condicionada à existência de um meio ambiente equilibrado. Isso significa compreender que todo e qualquer empreendimento a ser desenvolvido visando retorno financeiro deve respeitar os limites do metabolismo da natureza, uma vez que o nível de impacto poderá ser irreversível, caso a interferência humana seja feita de forma desregrada. Nesse sentido, o Licenciamento Ambiental representa uma conquista importante da política ambiental brasileira. Trata-se de instrumento de gestão da Administração Pública que visa exercer o controle necessário sobre as atividades humanas que interferem nas condições ambientais, prezando pela sustentabilidade do meio ambiente, nos seus aspectos físicos, socioculturais e econômicos.
O Licenciamento Ambiental está legalmente embasado em três marcos principais. São eles: a Lei 6.938/81, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente e traz um conjunto de normas para a preservação ambiental (Brasil, 1981); as Resoluções 001/86 e 237/97 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), que estabelecem procedimentos para o licenciamento ambiental (Brasil, 1986, 1997); e a Lei Complementar 140/11, que estabelece normas de cooperação entre a esfera Federal, Estadual e Municipal na defesa do meio ambiente (Brasil, 2011).
Qualquer empreendimento ou atividade que utilize recursos naturais e/ ou que represente uma ameaça potencial de poluição e/ ou degradação ao meio ambiente tem a sua localização, instalação, ampliação e operação condicionada ao Licenciamento Ambiental, seja pelos órgãos ambientais estaduais, ou pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), no caso de grandes empreendimentos, com o potencial de afetar mais de um estado. Como exemplo desse último caso, podemos mencionar empreendimentos de geração de energia (como hidrelétricas e atividades do setor de petróleo e gás na plataforma continental) e o agronegócio, ponto a partir do qual seguiremos daqui por diante.
O crime de grilagem acompanha o avanço do capitalismo agrário brasileiro desde o início do Século XX (Martins, 1986). De fato, há um grande interesse do agronegócio brasileiro em transformar seu capital latifundiário imobilizado em um ativo financeiro lucrativo, e tal prática é efetivada muito mais pela expansão da área apropriada do que pelo aumento da produtividade em si (McMichael, 2012). Nesse contexto, práticas criminosas – como incêndios, desmatamentos e expulsão de populações locais de seus próprios territórios – são consequências diretas da falta de compromisso do modelo produtivista capitalista com a vida em detrimento do lucro. Em suma, podemos afirmar, sem medo de errar ou exagerar, que o desmonte da política ambiental brasileira é um projeto político de cunho neoliberal e fascista, meticulosamente articulado a partir da publicização do argumento falacioso de que índios e quilombolas são inimigos do desenvolvimento nacional, do aparelhamento dos órgãos de fiscalização e proteção ambiental por militares, do negacionismo científico, do corte no orçamento e do enfraquecimento do poder de fiscalização dos órgãos ambientais, da saída de acordos internacionais como o Acordo de Paris, e da agressão à ONG’s preservacionistas e à países que financiavam o Fundo Amazônia.
Um estudo recente desenvolvido por um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais em colaboração com pesquisadores internacionais, publicado em julho de 2020 pela revista Science, apontou uma correlação entre o crescimento exponencial do agronegócio brasileiro e a expansão de áreas associadas às atividades ilegais como a mineração e o desmatamento (Rajão et al., 2020). Essas áreas, por sua vez, estão localizadas em regiões megadiversas (que apresentam alta biodiversidade associada a uma elevada diversidade sociocultural) ocupadas por populações humanas historicamente invisibilizadas/ marginalizadas pelo Estado Brasileiro, como indígenas, quilombolas, ribeirinhos e pequenos agricultores. Essa constatação remete a pelo menos dois pontos, sobre os quais discorreremos a seguir.
Primeiramente, a natureza nunca foi intocada. Muito pelo contrário: populações humanas nativas se formaram em consonância com o seu meio natural. Com isso, desenvolveram uma série de mecanismos de uso e manejo dos recursos naturais, de forma a não somente não impactar a biodiversidade natural, como a potencializa-la, como aponta, por exemplo, um estudo publicado pela revista Science em março de 2017, no qual um grupo de pesquisadores constataram que áreas historicamente mais ocupadas por civilizações pré-colombianas na Floresta Amazônica são aquelas que apresentam uma maior biodiversidade associada (Levis et al., 2017). Em segundo lugar, e já fazendo um link com o primeiro ponto, a expansão histórica do agronegócio brasileiro reforça o argumento de que nossas políticas públicas socioambientais são estruturalmente racistas, uma vez que reforçam o estigma e a marginalização de populações humanas mais periféricas e vulneráveis. Notamos, pois, um quadro de apartheid social produzido pelo modelo de desenvolvimento hegemônico brasileiro, no qual parte das pessoas são exploradas a serviço do lucro e/ ou apropriadas como objetos meramente descartáveis.
O mesmo estudo mencionado anteriormente (Rajão et al., 2020), também trouxe evidências de que os produtos oriundos do agronegócio brasileiro correm sério risco de serem rejeitados pelo mercado internacional devido à incapacidade do Estado Brasileiro de conter o avanço dessas atividades ilegais, especialmente do desmatamento, em seu território. Em suma, o mesmo agronegócio que depende diretamente da expansão de atividades ilegais para o seu desenvolvimento está ameaçado de sofrer sanções internacionais devido exatamente à sua falta de alinhamento às políticas públicas ambientais brasileiras e, também, internacionais.
Parece muito óbvio o porquê do atual ocupante do cargo de Presidente da República Federativa do Brasil, Jair Bolsonaro, ter assumido na Cúpula do Clima, realizada nos últimos dias 22 e 23 de abril de 2021, o compromisso de zerar o desmatamento ilegal no Brasil até 2030. Como ele fará isso? Legalizando o “desmatamento ilegal”. Ou, em outras palavras, “liberando geral para a boiada passar”. É exatamente aí que residem os interesses que justificam os esforços para a aprovação do Projeto de Lei 3729/04.
Mas, na prática, o que representa exatamente a PL 3729/04? Representa o aumento da disputa sobre os bens comuns da natureza e, consequentemente, da destruição socioambiental em massa, em detrimento dos interesses de grandes setores empresariais, como grandes empreendimentos, mineradoras e, principalmente, o agronegócio. Para isso, a proposta é exatamente flexibilizar indiscriminadamente as regras para a liberação de grandes obras. Dentre as principais medidas absurdas e anticonstitucionais da PL 3729/04, podemos destacar, por exemplo: a dispensa de licenciamento de 13 tipos de atividades que comprovadamente geram impactos diretos ao meio ambiente, incluindo a agropecuária intensiva, mesmo que o empreendimento e a propriedade possuam pendências ambientais; a regra do licenciamento no país passaria a ser a Licença por Adesão e Compromisso (chamada, também, de “licença autodeclaratória”), emitida automaticamente sem qualquer análise prévia pelo órgão ambiental, passa a ser a regra do licenciamento no país, o que na prática significa que o licenciamento passaria a ser exceção ao invés de regra; a restrição grave da participação popular no processo de licenciamento, inclusive das pessoas impactadas por empreendimentos; a restrição à participação dos principais órgãos socioambientais, como o ICMBio e o IPHAN; e a ausência de responsabilidade socioambiental dos bancos e instituições que financiam os grandes empreendimentos.
Em suma, o PL 3729/04 se silencia em relação àquilo que deveria avançar, e deturpa e ataca aquilo que é considerado um obstáculo ao desenvolvimento econômico na visão dos grandes empreendedores. As graves violações de direitos humanos que ocorrem concomitantemente à implementação de grandes empreendimentos serão ainda mais contundentes, e os processos de desterritorialização dos povos da floresta e dos campos serão ainda mais violentos, com implicações profundas para quem também vive nas cidades. As florestas, a biodiversidade, os processos ecológicos e o equilíbrio climático correm mais risco do que nunca. Em março de 2021, a Amazônia teve 367,61 km2 de sua área devastada, o que corresponde à maior taxa de desmatamento para o mês na história do monitoramento feito pela plataforma Terra Brasilis desde 2015 (INPE). Com a flexibilização proposta pela PL 3729/04, o cenário tende a piorar ainda mais.
Por isso, a proposta do PL 3729/04, a “mãe de todas as boiadas”, deve ser repudiada e denunciada firme e publicamente por todas e todos aqueles que compreendem a dimensão da ameaça que esse projeto genocida/ ecocida representa. O chamado é para aglutinarmos o nosso ódio e indignação a esse sistema nefasto em organização popular, resistência e luta. Esse é o nosso maior desafio e missão. Dessa forma, descolonizaremos nosso imaginário, avançaremos enquanto povo e resistiremos a qualquer “boiada”. A “mãe de todas as boiadas” não passará!
Henrique Magalhães é biólogo, doutorando em Etnobiologia e Conservação da Natureza. É militante ecossocialista da Insurgência Bahia.
Referências
Brasil. Lei Complementar no 140, de 8 de dezembro de 2011. Fixa normas, nos termos dos incisos III, VI e VII do caput e do parágrafo único do art. 23 da Constituição Federal, para a cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios nas ações administrativas decorrentes do exercício da competência comum relativas à proteção das paisagens naturais notáveis, à proteção do meio ambiente, ao combate à poluição em qualquer de suas formas e à preservação das florestas, da fauna e da flora; e altera a Lei no 6.938, de 31 de agosto de 1981. Presidência da República: Casa Civil: Subchefia para Assuntos Jurídicos, Brasília (DF), 8 dez. 2011.
Brasil. Conselho Nacional do Meio Ambiente. Resolução no 237, de 22 de dezembro de 1997. Regulamenta os aspectos de licenciamento ambiental estabelecidos na Política Nacional do Meio Ambiente. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 22 dez. 1997.
Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
Brasil. Conselho Nacional do Meio Ambiente. Resolução no 001, de 23 de janeiro de 1986. Dispõe sobre critérios básicos e diretrizes gerais para o Relatório de Impacto Ambiental – RIMA. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 17 fev. 1986.
Brasil. Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providencias. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 02 set. 1981.
Levis, C. et al. Persistent effects of pre-Columbian plant domestication on Amazonian forest composition. Science, v. 355, n. 6328, p. 925-931, 2017. DOI: 10.1126/science.aal0157.
Martins, J. S. O cativeiro da terra. São Paulo: Hucitec, 1986.
McMichael, P. The land grab and corporate food regime restructuring. The Journal of Peasant Studies, v. 39, n. 3-4, p. 681-701, 2012.
Rajão, R. et al. The rotten apples of Brazil’s agrobusiness: Brazil’s inability to tackle illegal deforestation puts the future of its agribusiness at risk. Science, v. 369, n. 6501, p. 246-248, 2020. DOI: 10.1126/science.aba6646.
Originalmente publicado em: Fórum da Natureza, em 09 de junho de 2021.