No país onde mais morrem enfermeiros no mundo, Mônica Calazans, primeira vacinada, é retrato da categoria: mulheres (85%) e negras (53%). Enfrentam o esgotamento, salários baixos e falta de equipamentos. Sequer têm piso salarial…
Iara de Oliveira Lopes, Alva Helena de Almeida, Cássia Soares Baldini, Celia Sivalli Campos, Débora Del Guerra, Livia Bezerra Rodrigues, Marina Peduzzi, Natália Caroline Pecin Gonçalves1, Outras palavras, 29 de janeiro de 2021
Após 10 meses de pandemia no país, da estressante experiência de enfrentamento do aumento de casos e de internações por covid-19 e da cruel e irreparável perda de milhares de vidas, a escolha da enfermeira Mônica Calazans para ser a primeira cidadã brasileira a ser vacinada, está sendo motivo de comemoração, especialmente entre os profissionais de enfermagem.
A escolha foi precisa, Mônica representa simbolicamente as trabalhadoras2 da enfermagem, auxiliares, técnicas e enfermeiras, que compõem 53% da força de trabalho do sistema de saúde e produzem cerca de 60% das ações desenvolvidas. Essas categorias são majoritariamente compostas por mulheres (85%), e metade (53%) é negra.
Mônica é uma mulher negra, de 54 anos, que trabalhou no nível médio da enfermagem por 26 anos e graduou-se aos 47 anos. Superou diversas dificuldades, como a baixa remuneração de profissionais de nível médio, que têm menor autonomia no trabalho; a tripla carga de trabalho – graduação, trabalho e família — e ingressar no mercado de trabalho como enfermeira. Além disso, a homenageada, que faz parte de grupo de risco, atua em unidade de terapia intensiva de referência para tratamento da covid-19. Por que essa trabalhadora não foi remanejada para área de menor risco?
O reconhecimento simbólico, embora merecido, não imprime mudanças nas condições de trabalho da enfermagem.
Apesar de décadas de reivindicações, a enfermagem não tem piso salarial e a categoria é mal remunerada. O salário médio é de dois salários mínimos para auxiliares, três para técnicas e quatro para enfermeiras. Porém, o salário inicial de enfermeiras contratadas temporariamente para atuar na pandemia é ainda menor, o que determina a inserção em mais de um vínculo trabalhista, para compor a renda salarial.
Dados do Conselho Federal de Enfermagem de 20 de janeiro de 2021 mostram inaceitáveis estatísticas, que resultam das condições de trabalho e vida de profissionais de enfermagem no país. No Brasil, a enfermagem é a categoria que mais adoeceu e morreu por covid-19 entre os profissionais da saúde, com proporcionalidade de óbitos que acompanha a distribuição quantitativa das profissionais na área; ou seja, maior número de óbitos entre auxiliares e técnicas do que entre enfermeiras. Desde o início da pandemia, o estado de São Paulo responde pelo maior número de mortes (86), com taxa de letalidade de 2,84%, maior do que a taxa de letalidade média entre trabalhadores de enfermagem no país, que é de 1,96%. O Brasil, com 525 mortes desde o início da pandemia, responde por um terço do total das mortes de profissionais de enfermagem do mundo.
A vacina contra a covid-19 promete minimizar o sofrimento e o número de mortes, mas se a vacina já existe, a vacinação só é possível com o trabalho da equipe de enfermagem, que atua desde o planejamento até a aplicação do imunobiológico. A perspectiva promissora trazida pela proteção da vacina encontra trabalhadoras de enfermagem exaustas e adoecidas, física e mentalmente, pela luta já travada até aqui, tanto na Atenção Básica como na especializada e nos hospitais. É amedrontadora a expectativa de iniciar uma campanha dessa magnitude sem condições adequadas, no que se refere ao dimensionamento dos profissionais, à provisão de equipamentos de proteção individual e coletiva e à segurança dessas trabalhadoras.
Desde o início da implementação do Programa Nacional de Imunização no Brasil, há pelo menos 46 anos, o trabalho da enfermagem brasileira é o que viabiliza as ações de imunização para milhões de brasileiros de diversas gerações. É possível antever que o crônico subdimensionamento da enfermagem e as difíceis condições de trabalho serão agravados, pelo não planejamento de contratação de mais profissionais e de locais adequados, que garantam a biossegurança de profissionais e de usuários, e a segurança física das trabalhadoras envolvidas na campanha.
As Unidades Básicas de Saúde (UBSs) são responsáveis por ações essenciais dos vários programas ministeriais para a Atenção Básica, como pré-natal, monitoramento do crescimento e desenvolvimento infantil, cuidados a indivíduos com doenças crônicas e atendimento da demanda espontânea, além da vacinação de rotina e da vigilância em saúde. A pandemia de covid-19 multiplicou as demandas para as UBSs, agregando às ações de vigilância em saúde o diagnóstico e o acompanhamento dos casos de covid-19. Solicitações da gestão central, que devem ser respondidas prontamente, por vezes de impacto epidemiológico questionável e que colocam profissionais em situações de risco, tornam o trabalho ainda mais desgastante. Dessa forma, a campanha de vacinação contra a covid-19 encontrará as UBSs operando para além da capacidade dos serviços e as trabalhadoras esgotadas.
A escolha de uma enfermeira para tomar a primeira dose da vacina contra covid-19 no Brasil tem a aparência de reconhecimento do valor do trabalho da enfermagem. No entanto, esse ato simbólico não se efetiva em melhorias nas condições de trabalho, avanços na implementação de direitos sociais e na urgente discussão sobre políticas de valorização salarial para a enfermagem, o que concretamente efetivaria o reconhecimento do valor desse trabalho.
A recorrente associação de trabalhadores de saúde com heróis, durante a pandemia, é outra manifestação de reconhecimento simbólico. Esse recurso ideológico serve para intensificar a responsabilização dos próprios trabalhadores por suas condições de trabalho, acarretando a interiorização da pressão e ampliando os desgastes aos quais já estão submetidos3.
Notas
1 As autoras são integrantes do Coletivo pelo Fortalecimento da Enfermagem e do SUS
2 Adotamos o gênero feminino neste texto uma vez que a enfermagem é majoritariamente constituída por mulheres.
3 Carta Em defesa das Trabalhadoras de Enfermagem do SUS – para assinar acesse: https://forms.gle/wh3p3NTttnZf1rFU8