Mohammed Elhajji, Latinoamerica 21, 31 de maio de 2021
Idioma fronteiriço, o portunhol é tanto um meio de hibridização de culturas e identidades, quanto de integração social e econômica. Sua herança milenar e seu potencial de vanguarda fazem do portunhol um reflexo fiel de nosso lugar no mundo. No tempo e no espaço.
Se pode definir o portunhol como uma mescla informal de elementos linguísticos tanto do português quanto do espanhol. Uma composição que proporciona um ambiente comunicativo amplo e maleável, e não um quadro unificado, munido de regras claras e definitivas. Idioma vivo e em constante mutação, seus falantes alternam os registros lexicais e regras sintáticas em função do contexto social vivido e o conteúdo a ser transmitido ou debatido.
A rigor, não se deveria falar em um “portunhol” singular e padronizado, mas antes, numa pluralidade de “portunholes”, diversos, regionais, contextuais e circunstanciais. A pronúncia, as expressões, metáforas e outras figuras de linguagem podem mudar consideravelmente em função da origem nacional, étnica e regional dos interlocutores, seu conhecimento relativo dos dois idiomas originais e da frequência de sua prática do falar híbrido.
Um código comum
Um idioma é um sistema de signos linguísticos que permite representar a realidade e codificar –ou decodificar– os dados informativos desta mesma realidade. A sua principal finalidade é a troca de informações, por meio de sinais gráficos ou vocais, entre indivíduos do mesmo grupo humano num contexto social e histórico determinado. Ou seja, não há como descrever o mundo que nos cerca e comunicar suas características, de modo compreensível, sem o uso de um código linguístico comum.
A linguagem, no entanto, não se limita a transmitir informações de modo neutro, automático ou impessoal. Uma língua contém e reflete a visão de mundo, as expectativas e os temores do povo que a utiliza. Expressões metafóricas como “a coisa está preta” para demonstrar pessimismo ou “isso é coisa de índio” para descrever algo desordenado, por exemplo, oferecem indícios simbólicos de origem cultural e psicológica das bases eurocêntricas e racistas do discurso social que rege a mente colonial brasileira.
Além disso, toda língua se adapta e evolui em função do ambiente natural, social, cultural e político no qual ela surge e se desenvolve. A língua tem uma história e uma origem que atestam as transformações morfológicas e sintáticas por ela experimentadas. O espanhol e o português, por exemplo, compartilharam durante milhares de anos raízes comuns antes de bifurcar, há poucos séculos, em duas linhagens diferentes, mas ainda muito próximas.
Línguas e fronteiras
Existe, hoje, algo em torno de 7.000 línguas faladas no mundo: apenas 230 na Europa, contra mais de 2.000 na África, igualmente mais de 2.000 na Ásia e mais de 1.300 na Oceania. Nas Américas são faladas mais de 1.000 línguas; eram 1.700 nos anos 1950. Trata-se, aqui, da totalidade dos idiomas falados, não necessariamente escritos ou reconhecidos como línguas oficiais.
Nas Américas, a maioria absoluta dessas línguas pertence aos povos indígenas, contra cinco línguas europeias (espanhol, inglês, português, francês e neerlandês) e uma dezena de creoles.
Os 440 milhões habitantes da América do Sul se dividem, em partes quase iguais, entre o português (no Brasil) e o espanhol (nos demais países). O que não significa que as áreas de influência e uso de cada uma das duas línguas sejam delimitadas seguindo as divisas administrativas e seu traçado nos mapas escolares
Pelo contrário: quando se trata de práticas culturais, como é o caso da língua, as fronteiras não se revelam apenas mais porosas do que se imagina, mas demonstram todo seu potencial de veicular subjetividades, imaginários e visões de mundo. Um ecossistema social, cultural e econômico que só podia favorecer a mestiçagem das línguas faladas e a consolidação da prática diária do portunhol.
Lembremos que as fronteiras terrestres do Brasil têm uma extensão de quase 17.000 km, que o conectam a todos os países da América do Sul – menos o Equador e o Chile. Dos 5.565 municípios que compõem o território brasileiro, 588 (mais de 10%) são fronteiriços e 33 são classificados como cidades gêmeas. Ou seja, são municípios atravessados por uma ou mais linhas de fronteira, onde geralmente podem ser observadas uma forte mobilidade humana, trocas e dinâmicas integrativas.
Em termos populacionais, esse espaço transfronteiriço totaliza mais de 2 milhões de pessoas – apenas do lado brasileiro. Se somarmos essa quantidade à população do outro lado das fronteiras, junto com os fluxos mercantis, turísticos, migratórios e estudantis, talvez o conjunto dos falantes do portunhol na região se aproxime dos três milhões.
O idioma que reaproxima
Numa perspectiva propriamente linguística, o portunhol pode constituir uma “interlíngua” (um estágio intermediário no processo de aprendizagem de uma nova língua), um dialeto (como é o caso da variante riverense decorrente da antiga presença luso-brasileira em território uruguaio) ou, ainda, uma simples “língua de contato” destinada a remediar a falta de domínio do mesmo idioma por ambos os interlocutores.
O portunhol, nesse sentido, não é nem único nem inédito na paisagem linguística mundial. O contato entre línguas diferentes, sua influência mútua e o surgimento de uma configuração que possibilita a intercompreensão dos povos que compartilham o mesmo espaço social parece ter sido recorrente no passado distante e próximo da Humanidade e continua sendo até hoje. O suaíli ou o maltês, por exemplo, constituem uma ilustração histórica da formação de novas línguas a partir de origens diferentes. Já o spanglish norte-americano e o yanito, seu equivalente europeu falado em Gibraltar, são concorrentes contemporâneos de nosso portunhol regional.
A grande diferença, todavia, é que ao contrário dos exemplos acima citados, o portunhol se origina em dois idiomas “irmãos”, oriundos do mesmo ramo linguístico e que compartilham um longo passado comum. Aliás, se o spanglish pode ser considerado como um idioma inédito e original, a forma linguística do portunhol existe, na verdade, desde há muito tempo e ainda pode ser conferida na atualidade e vivacidade do galego.
Ou seja, ao mesmo tempo que expressa a realidade presente de nossa região e aponta para seu futuro social, cultural e econômico, o portunhol não deixa de reiterar as raízes linguísticas comuns das populações sul-americanas. Assim, o portunhol não apenas aproxima os povos da região, mas também os reaproxima -de novo- em torno de um arquétipo linguístico que surpreende por sua capacidade de se reinventar.
Há de esperar que à medida que a integração econômica, social e cultural de nossa região avance, o portunhol irá se reforçar. E vice-versa.
Mohammed ElHajji é professor e Doutor em Comunicação e Cultura da Univ. Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com pós-doutorado na UNISINOS (Mídia e Migrações). Especializado em migrações transnacionais, identidade, cultura, etnia e alteridade.