António Sousa Ribeiro, Buala, 4 de julho de 2020
O universo mediático alemão tem sido agitado nos últimos meses por uma controvérsia que parece não ter encontrado grande repercussão fora da Alemanha, mas merece atenção pelo seu carácter sintomático. A história conta-se em poucas palavras. De origem camaronesa, professor da Universidade de Witwatersrand, Achille Mbembe é autor de obras bem conhecidas e extremamente influentes no âmbito da mais recente reflexão pós-colonial, como Crítica da Razão Negra ou Políticas da Inimizade. O seu conceito de “necropolítica”, isto é, do uso do poder social e político para decidir quem pode ser potencialmente exposto ao risco de morte por formas de exclusão e de condenação a condições de vida precárias, entrou decididamente no vocabulário da teoria contemporânea. A sua obra tem sido amplamente discutida na Europa, incluindo na Alemanha, onde lhe foi atribuído, em 2015, o importante Prémio Irmãos Scholl, entre outros prémios prestigiados como o Prémio Ernst Bloch.
A questão surgiu na sequência do convite a Mbembe para proferir a conferência inaugural da “Ruhrtriennale”, festival de música e arte da região do Ruhr. O festival, por força da pandemia, foi, entretanto, cancelado, o que não impediu que prosseguisse a polémica ocasionada pelo convite e despoletada por uma carta aberta de Lorenz Deutsch, deputado do FDP (Partido Democrático Liberal), em 23 de Março de 2020, à responsável pelo festival, Stefanie Carp, acusando Mbembe de anti-semitismo, com base em duas citações fora do contexto da obra Política da Inimizade. Com a mesma base precária, Felix Klein, comissário do governo federal alemão para a questão do anti-semitismo, veio corroborar a acusação e emprestar a sua autoridade àquilo que veio a tornar-se uma feroz campanha de difamação, na qual, pouco depois, interveio também o Conselho Central dos Judeus na Alemanha, reiterando a mesma acusação.
Onde está afinal o “anti-semitismo” de Mbembe? Na obra citada, debruçando-se sobre as formas contemporâneas de vigilância e as políticas de segregação, um tema fundamental na sua obra, o autor dá o exemplo da política dos colonatos israelitas e da segregação dos territórios palestinianos. O facto de, embora deixando clara a diferença de escala e de contexto, recordar o Holocausto como modelo máximo das lógicas de segregação e exclusão da modernidade ocidental, estabelecendo uma comparação entre o genocídio nazi e a política de Apartheid, só veio reforçar o clamor. A acusação foi reforçada através da associação de Mbembe ao movimento BDS - Boycott, Divestment and Sanctions (no Estado da Renânia do Norte-Vestefália, uma lei do parlamento estadual proíbe qualquer instituição pública do estado de ceder instalações a pessoas ou grupos envolvidos no movimento BDS), apesar de o facto de ele não ter nunca manifestado o seu apoio expresso a este movimento ser incontroverso.
O filósofo camaronês não ficou sozinho, pelo contrário, recebeu o apoio de vozes autorizadas, nomeadamente dos/as signatários/as de um “Apelo à solidariedade com Achille Mbembe”, divulgado em 1 de Maio de 2020, no qual, entre outros aspectos, é expressamente condenado todo o “uso indevido do conceito de anti-semitismo”. Historiadores e intelectuais de primeira linha, especialistas reputados do Holocausto e do colonialismo, como Aleida e Jan Assmann, Wolfgang Benz, Andreas Eckert, Omer Bartov, Moshe Zimmermann, Michael Rothberg ou Dirk Moses, entre muitos outros, assinaram este apelo, que constitui um modelo de intervenção intelectual na sua função mais nobre e necessária, a de manter o campo da discussão pública limpo de cegueiras ideológicas e aberto ao respeito democrático pelos direitos humanos. Também um grupo de destacados intelectuais judeus tomou posição pública através de uma carta aberta de solidariedade com Mbembe, exigindo a demissão do comissário Felix Klein.
Não é meu propósito descrever em pormenor a polémica, entretanto terminada, sem que os responsáveis pela perseguição a Mbembe e os seus apoiantes em nenhum momento tenham julgado necessário retractar-se. Destacarei apenas três aspectos, estreitamente relacionados, bem representativos de tendências que têm vindo a reforçar-se e que exigem vigilância crítica.
A catalogação de toda a crítica ao Estado de Israel como manifestação de anti-semitismo. É verdade que a definição de anti-semitismo estabelecida pela International Holocaust Remembrance Alliance (IHRA), na sua declaração de Budapeste de 2016, adoptada pelo governo federal alemão, em 2017, e pelo Conselho de Reitores alemão, em 2019, declara que “a crítica a Israel idêntica à que pode ser feita em relação a qualquer país” está excluída da definição (diferentemente de tomar Israel como alvo “como colectividade judaica”). No entanto, essa declaração potenciou um alargamento do conceito que tem vindo a legitimar a estigmatização de toda a crítica às práticas de violência colonial do Estado de Israel.
O dogma da incomparabilidade do Holocausto. Há muito boas razões para defender a singularidade absoluta do genocídio nazi. Mas é, justamente, essa singularidade que confere ao Holocausto um significado paradigmático e não só legitima como exige a comparação com outros processos de violência genocida. Essa comparação, nos termos do conceito de “memória multidirecional” cunhado por Michael Rothberg, de modo nenhum pode ser equiparada a uma relativação e, muito menos, desvalorização do significado do Holocausto. Também aqui a declaração do United States Holocaust Memorial Museum de 24 de Junho de 2019 a condenar o uso de analogias com o Holocausto - como a simples expressão “campos de concentração” - produz efeitos perversos, como foi, desde logo, sublinhado na carta aberta ao director do Museu publicada em 1 de Julho de 2019 no New York Times e assinada, entre muitos outros por Omer Bartov, Andrea Orzoff e Timothy Snyder. Reivindicando o estatuto não apenas de professores e investigadores, mas também de “cidadãos globais”, os/as signatários/as não hesitam em afirmar que uma posição como a assumida pelo Museu “torna praticamente impossível aprender com o passado”.
O silêncio sobre o colonialismo. Na resposta aos seus críticos publicada no semanário Die Zeit em 22 de Abril de 2020, Mbembe explica as razões pelas quais lhe é impossível deixar de estabelecer uma relação entre colonialismo e Holocausto. É este, aliás, o manifesto motivo de escândalo. Na verdade, apesar de a investigação mais recente ter demonstrado à saciedade os muitos fios que unem o genocídio nazi ao processo dos colonialismos europeus, o amplo consenso existente, nomeadamente, na sociedade alemã, sobre o significado do Holocausto está longe de ter sido estabelecido relativamente à memória do colonialismo (1). A declaração do Museu do Holocausto acima mencionada, esquece, por exemplo, por completo, que a palavra “Konzentrationslager”, campo de concentração, não é de criação nazi, antes surge no contexto das práticas genocidas alemãs na repressão ao levantamento dos Nama e dos Herero no Sudoeste Africano alemão em 1906. Mbembe insiste, com inteira justeza, em que as práticas modernas de segregação e exclusão através do estabelecimento de diferenciações raciais ou outras assentes no exercício do poder e da violência são de raiz colonial. Do ponto de vista de uma condenação intransigente do colonialismo, a denúncia das actuais práticas do Estado de Israel relativamente ao povo palestiniano é uma consequência lógica. E condenar todas as formas de colonialismo não corresponde ao assumir de uma posição ideológica, é, pura e simplesmente, um imperativo moral.
(1) MEMOIRS é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro Comunitário de Investigação & Inovação Horizonte 2020 da União Europeia (n.º 648624) e está sediado no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.