Nós o povo negro, olhamos de dentro pra fora, de fora pra dentro. O nosso processo de conscientização é no centro e é na margem. Pois, é nesse lugar que nossas existências são consolidadas”, bell hooks.
“Viemos para a rua porque foram nos matar em casa”, Wesley Teixeira, no ato do Rio, dia 31/5.
Amplas e aguerridas mobilizações contra a violência policial racista explodiram há pouco mais de
uma semana nos Estados Unidos – depois que correram o mundo as imagens gravadas do assassinato do segurança negro George Floyd por quatro policiais branco de Minneapolis (Minesotta). Já na segunda semana de desafio aberto à “ordem” das polícias, partidos do stablishment e ao governo federal ultradireitista de Trump, a comunidade negra se insurgiu e arrastou detrás de si, como nunca antes na História do Império, jovens e trabalhadores brancos e latinos, além de sindicatos, mundo artístico e intelectual. Fazendo ressurgir a bandeira Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), os protestos ganharam extensão e proporções de massa, chegando às portas da Casa Branca.
O levante liderado pelo povo negro norte-americano é marcado pela ação direta, em muitos casos espontânea, numa resposta potente ao tratamento segregacionista, violento e negligente que os negros e negras vêm recebendo no país desde a formação daquele estado nacional, nascido escravagista, ou seja, construído sobre a base da riqueza acumulada graças ao genocídios dos indígenas e ao suor e sangue negros. À opressão secular, à pobreza, ao desemprego e à discriminação histórica no sistema judiciário, policial e prisional, vieram se somar a pandemia, que mata mais nas comunidades negras, e o aumento do desemprego e miséria entre a classe trabalhadora.
Na mesma semana em que teve início a explosão afro-americana, aqui em São Gonçalo, região metropolitana o Rio de Janeiro, a Polícia Federal matou João Pedro, menino negro de 14 anos, morador do complexo do Salgueiro. João foi morto pelo Estado Brasileiro com um tiro de fuzil dentro de sua própria casa, enquanto praticava o isolamento social junto de seus familiares. Assim como o trágico episódio com George Floyd nos EUA, o assassinato de João Pedro não foi uma novidade para o povo negro no Brasil. Essa morte estúpida se somou à seguidas execuções de jovens negros das periferias, mesmo durante a pandemia. A situação levou os movimentos negro e de favelas, que até então estavam totalmente voltados para o trabalho na base, de freio à política de morte do governo Bolsonaro, por meio de ações de solidariedade e auto-organização nas comunidades de moradia, a pensarem uma ação nacional e inédita em seu formato: um ato virtual que contou com a participação de mais de 800 organizações do movimento negro, no dia 26 de maio, denunciou o extermínio da juventude negra.
Àquela altura como agora, Bolsonaro continuava com sua postura genocida frente à Covid-19, negando a gravidade e mesmo a veracidade da epidemia, propagandeando curas milagrosas, sem ministro da Saúde há semanas, incapacitado de gerir a crise sanitária, e aprofundando a crise política. Desde o início das quarentenas, setores bolsonaristas saíram às ruas, ainda que em pequeno número, para, no grito, pedir intervenção militar, ameaçar juízes, adversários políticos, o STF e Congresso Nacional.
Nos últimos 10 dias, as ameaças bolsonaristas tomaram mais corpo, com a participação do próprio Bolsonaro em atos na frente do Planalto, com a instalação de uma milícia fascista (os 300) no DF e com o ato simbólico referenciado na Klu-Kux-Kan, capitaneado por Sara Winter. O conjunto dessa obra aumentou a indignação de muitos brasileiros, como de algumas torcidas organizadas e gupos antifascistas. A paulistana Gaviões da Fiel já havia feito ato na Avenida Paulista, de onde removeu os bolsonaristas, no dia 9 de maio.
O impacto do novo coronavírus
A pandemia de Covid-19 continua revelando e agravando as desigualdades e vulnerabilidades vividas por amplas parcelas da população, entre as quais se destacam, globalmente, as mulheres, os negros, os imigrante e refugiados. No Estados Unidos, essas disparidades têm um forte corte racial. Pesquisa do APM Research Lab apontou que, de cada 100 mil negros, cerca de 50 morrem da doença nos Estados Unidos. Os números para outras etnias são consideravelmente menores: 20,7 brancos por 100 mil; para latinos, são 22,9; e, para asiáticos, são 22,7. No Brasil, pesquisadores da PUC-Rio divulgaram em estudo que pretos e pardos sem escolaridade morrem quatro vezes mais pelo novo coronavírus do que brancos com nível superior (80,35% contra 19,65%). Considerando a mesma faixa de escolaridade, pretos e pardos apresentam proporção de óbitos 37% maior, em média, à dos brancos.
O impacto potencializado da pandemia, da recessão econômica, do desemprego, da informalidade e da violência de todo tipo formam um pacote que incide diretamente em vidas pretas, de quilombolas e de povos originários. A vulnerabilidade se revela ampliada no aumento maior do desemprego entre essas comunidades, da violência doméstica, da violência policial, dos problemas de saúde mental derivados dos isolamento social; nos ataques que comunidades indígenas têm sofrido de madeireiros e mineradores; no abandono, pelo Estado brasileiro, das populações tradicionais, como quilombolas, ribeirinhos e indígenas, em relação à proteção e planejamento de políticas públicas para elas.
Os Estados nacionais nos EUA como no Brasil executam políticas de extermínio do povo afrodescendente, por meio da captura e desumanização dos corpos negros, da aniquilação de vidas e histórias por meio de seus sistemas jurídicos-penais e aparelhos policiais. Assim, George Floyd, João Pedro, João Victor, Eric Garner, Ágatha Félix, Claudia Silva, Evaldo Rosa, os nove jovens de Paraisópolis, os caídos na chacina do Cabula, na de Messejana e Marielle Franco evidenciam, entre outras centenas de casos, que, além da morte física, ainda se tenta criminalizar a memória, apagar as trajetórias desses homens e mulheres. A disputa pela dignidade das vidas negras continua inclusive após as suas mortes, quando famílias defendem e narram suas memórias contra o rolo compressor das mídias racistas.
Luta antifascista e combate ao racismo
É sempre necessário situar o genocídio histórico dos povos negros e indígenas como projeto estruturante do capitalismo, isto é, o racismo como elemento constituinte essencial das relações sociais em nosso país. Toda hora é hora de resgatar a história de resistências a essa ordem. No entanto, num momento de ascensão de ideias fascistas, é ainda mais importante trazer o combate ao racismo para o centro da análise e da política, para que a esquerda socialista possa compreender o tamanho do desafio que tem à frente.
Aquilo que chamamos “país” é uma construção social e histórica resultante de 388 de escravidão, ou seja, do sequestro sistemático, comercialização, estupro, tortura e assassinato em massa de povos negros africanos. Essa enorme cicatriz é palpável em todos os âmbitos da vida social e em particular nas instituições brasileiras. Essa violência histórica não ficou sem resposta: a História do Brasil é uma história feita com sangue indígena e negro derramados na Balaiada, na Cabanagem, na Revolta dos Malês, em Palmares, na Revolta da Chibata, nos muitos quilombos, na resistência indígena em todo território.
Precisamos também trabalhar com um diagnóstico mais preciso do projeto neofascista do bolsonarismo no Brasil. Além do pseudo-nacionalismo exacerbado, apego ao militarismo, autoritarismo, ódio à participação social, oposição ao debate de ideias, invenção permanente de inimigos e perseguição aos diferentes, o neofascismo brasileiro defende um problema ultraneoliberal, de abertura e entrega de bens e patrimônios aos capitais globais e a retirada dos direitos dos trabalhadores. Destacamos que neofascismo brasileiro se apoia, para execução plena de seu projeto, na já antiga necropolítica de “segurança pública” nas favelas e periferias – como demonstram a ações de Wilson Witzel (ex-aliado do presidente que, mesmo disputando espaço político na direita com ex-mito, continua mandando matar pessoas negras como inimigos de guerra).
Tanto a luta pelas liberdades democráticas quanto o antifascismo, portanto, são bandeiras que precisam receber conteúdos a partir dos sujeitos e organizações que as hasteiam. Esses sentidos precisam ser disputados radicalmente. A democracia no Brasil nunca foi plena para as pessoas negras. Pessoas negras e periféricas têm sido marginalizadas e mortas, histórica e violentamente excluídas as decisões institucionais. Defender “instituições democráticas” no abstrato, sem lembrar que elas são ocupadas apenas por pessoas brancas, é incorreto. A luta pelas liberdades democráticas no Brasil não será democrática de verdade se não incluir a garantia de paridade de pessoas negras e de mulheres na política. (Denunciar a supremacia branca na política é responsabilidade de todos, incluídos/as companheiros/as brancos e brancas, que assumam a luta pela construção desses horizontes.)
Assim, num momento em que mobilizações prometem crescer no país, é crucial denunciar o genocídio do povo negro e o racismo como engrenagem fundamental da máquina de moer gente do capitalismo brasileiro. O antirracismo é cerne da luta antifascista e pela democracia. Um sentido acrítico de democracia fortaleceria apenas o projeto burguês liberal, que se estrutura em cima de corpos negros, lgbts e trabalhadores explorados e exterminados, mantendo os privilégios dos de cima.
Por que começamos a voltar às ruas?
À medida que cresce o repúdio e o questionamento ao governo e, como reação dele, suas ameaças neofascistas, cresce e sobe de tom o debate – na oposição – sobre se é momento ou não de mobilizações de rua. A discussão é legítima, uma vez que estamos, em várias metrópoles do país (e em particular em suas periferias), num momento extremamente letal da Covid-19. Depois do domingo 30 de maio, quando realizaram-se o ato das torcidas na Avenida Paulista, SP, e o ato do movimento negro no Rio, grandes figuras políticas e culturais ligadas ao PT, PDT, Rede e outros partidos têm lançado nas redes apelos dramáticos contra sair às ruas, tanto porque seria perigoso do ponto de vista do contágio pelo coronavírus, como porque poderia ser lido como “provocação” ao neofascismo.
A esses companheiros de combate ao neofascismo, o movimento negro está passando a mensagem de que grande parte dos negros e negras do Brasil não tem há muito tempo a opção de “ficar em casa”, fazer quarentena – seja porque somos obrigados a trabalhar, seja porque nossas moradias não têm espaço para confinamento (às vezes nem água), seja porque estamos sem renda, com fome e precisamos nos virar, seja porque policiais nos vêm matar em casa. Seria extremamente útil para o atual momento, em que a unidade antifascista é tão necessária, que a esquerda ampla (e a socialista em particular) ouvisse o movimento negro, as organizações periféricas de luta nos territórios, lideradas em sua grande parte por mulheres negras mães, as organizações como as torcidas organizadas antifascistas.
Ficar em casa nos mata. Mata com ou sem isolamento social. O racismo mata. Mata e se aprofunda com uma política de ódio levada adiante pelo bolsonarismo. Não secundarizamos o isolamento social e nem somos a favor da flexibilização. Não há contradição entre a luta contra a Covid-19 e a tomada cuidadosa das ruas, o que é também preservar as nossas vidas. Nosso chamado é que, quem puder, e com todas as providências contra o vírus (distanciamento entre pessoas, máscara, escudos e álcool) deve se somar ao enfrentamento contra o fascismo e o racismo nos próximos dias. Quem não pode participar, faz parte do grupo de risco ou convive com quem faz, colabore nas redes com a denúncia do genocídio do povo negro brasileiro.
Como disse nosso camarada Wesley no ato do Rio de Janeiro, dia 30/5, “fomos pra rua porque eles foram nos matar em casa”.