George Monbiot, The Guardian / Outras Palavras, 30 de julho de 2020
Em algum lugar do mundo, que não consta em nenhum mapa, mas que está tentadoramente perto, há uma terra prometida chamada Normal, para a qual algum dia poderemos voltar. Esta é a geografia mágica que certos políticos nos ensinam, como Boris Johnson com sua “significativa volta à normalidade“. É a história que contamos para nós mesmos — sem importar se a contradizemos logo em seguida, no próximo pensamento.
Existem razões práticas para acreditar que o Normal é um país imaginário ao qual nunca poderemos voltar. O vírus não desapareceu — e provavelmente continuará voltando em ondas. Mas vamos focar em outra questão: se essa terra existisse, será que gostaríamos de morar lá?
As pesquisas sugerem fortemente que não. Uma enquete realizada pela BritainThinks quinze dias atrás, descobriu que apenas 12% das pessoas gostariam que a vida fosse “exatamente como era antes”. Outra pesquisa, realizada no final de junho, encomendada pela rede Bright Horizons, sugere que apenas 13% das pessoas desejam voltar a trabalhar da mesma forma que antes da quarentena. Na mesma semana, um estudo da YouGov revelou que apenas 6% quer de volta o mesmo tipo de economia que tínhamos antes da pandemia. Outro estudo, realizado em abril pelos mesmos pesquisadores, demonstrou que apenas 9% dos entrevistados queriam retornar ao “normal”. É raro ter resultados fortes e consistentes como esses em quaisquer outras questões relevantes..
É claro que todos gostaríamos de deixar a pandemia para trás, junto com seus devastadores impactos na saúde física e mental, o recrudescimento da solidão, o fechamento das escolas e o colapso do emprego. Mas isso não significa que queiramos voltar ao mundo bizarro e assustador que os governos definem como normal. O nosso planeta não era nenhuma terra encantada — era bem mais um lugar que acumulava várias crises letais muito antes da pandemia. Além de todas as nossas disfunções políticas e econômicas, a normalidade também precipitou a situação mais estranha e profunda que a humanidade já enfrentou: o colapso de nossos sistemas de vida.
No mês passado, desde o confinamento de nossas casas, vimos colunas de fumaça subirem desde o Ártico, onde as temperaturas atingiram a assustadora marca de 38ºC. Imagens apocalípticas como essa estão se tornando o pano de fundo de nossas vidas. Percorremos imagens do fogo consumindo a Austrália, a Califórnia, o Brasil, a Indonésia, e as normalizamos sem perceber. Em um brilhante ensaio, do início deste ano, o escritor Mark O’Connell descreve esse processo como “o lento atrofiamento de nossa imaginação moral”. Estamos nos familiarizando com a crise da nossa existência.
Quando se retoma a lógica de sempre, o mesmo ocorre com a poluição do ar — que mata anualmente mais pessoas do que o Covid-19 e aumenta os impactos do vírus. O colapso climático e a poluição do ar são dois aspectos de uma disbiose maior. Disbiose significa a devastação e desequilíbrio dos ecossistemas. O termo é usado pelos médicos para descrever o colapso de nossos biomas intestinais, mas é igualmente aplicável a todos os sistemas vivos: florestas tropicais, recifes de coral, rios e solo. Ele vem se desencadeando numa velocidade estonteante, devido ao efeito cumulativo da tal “normalidade” — que implica uma expansão perpétua do consumo.
Este mês, descobrimos que 10 bilhões de dólares em metais preciosos, como ouro e platina, são despejados em aterros todos os anos — embutidos em dezenas de milhões de toneladas de materiais menores, no formato de lixo eletrônico. A produção mundial de lixo eletrônico está aumentando 4% ao ano. E esse crescimento é impulsionado por outra norma terrível: a obsolescência programada. Nossos aparelhos são projetados para quebrar; são planejados, deliberadamente, para não ter conserto. Essa é uma das razões pelas quais um smartphone comum, que contém materiais preciosos extraídos com alto custo ambiental, dura apenas entre dois e três anos; e uma impressora doméstica durará, em média, cinco horas e quatro minutos antes de ser descartada
O mundo vivo, e as pessoas que ele carrega, não conseguem sustentar esse nível de consumo, mas a vida normal depende dele. O efeito cascata dessa disbiose nos leva ao que alguns cientistas alertam que pode ser um colapso sistêmico global.
Nesse quesito, os resultados das pesquisas também são claros: não queremos voltar a essa loucura. Uma pesquisa da YouGov sugere que oito em cada dez pessoas esperam que o Estado priorize a saúde e o bem-estar acima do crescimento econômico durante a pandemia. Seis em cada dez gostariam que isso continuasse assim quando (ou se) o vírus diminuir. Uma pesquisa da Ipsos trouxe um resultado semelhante: 58% dos britânicos almejam uma recuperação econômica verde, contra 31% que discordam. Como em todas essas enquetes, a Grã-Bretanha fica entre os últimos da lista. De um modo geral, quanto mais pobre a nação, maior o peso que seu povo atribui às questões ambientais. Na China, na mesma pesquisa, as proporções são de 80% e 16%, respectivamente; e, na Índia, de 81% e 13%. Quanto mais consumimos, mais nossa imaginação moral se atrofia.
Mas os governos estão determinados em nos levar de volta à hipernormalidade, independentemente de nossos desejos. Nesta semana, o secretário do meio ambiente do Reino Unido, George Eustice, sinalizou que pretende acabar com o sistema de análises ambientais. A proposta do governo de portos “livres”, nos quais impostos e regulamentações seriam suspensos, não só possibilita fraudes e lavagem de dinheiro, como também expõe as áreas úmidas e os pântanos em volta, junto com a rica vida selvagem que eles abrigam, a destruição e poluição. O acordo comercial que o governo pretende fechar com os EUA pode anular nossa soberania parlamentar e extinguir nossos padrões ambientais — sem nenhum consentimento público.
Da mesma forma como nunca existiu um ser humano normal, nunca existiu um tempo normal. A normalidade é um conceito utilizado para limitar nossas imaginações morais. Não há um normal ao qual possamos retornar, nem desejar retornar. Vivemos tempos inusitados. E eles demandam uma resposta igualmente inusitada.
Tradução de Simone Paz.