Gabriel Brito, Correio da Cidadania. Agosto de 2023.
Após a morte do soldado da Rota Patrick Bastos Reis por membros do narcotráfico da cidade do Guarujá, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP) desencadeou a Operação Escudo, que até o momento causou 16 mortes e 182 prisões. A operação tem todos os traços de terrorismo de estado e já se sabe que pessoas alheias ao crime organizado foram executadas sem nenhum pudor. Com isso, o movimento negro de São Paulo fez um protesto na frente da SSP com cerca de 500 pessoas e o Ministério Público deu início às investigações da atuação policial, reiteradamente aclamada por Tarcisio Gomes de Freitas e Guilherme Derrite, governador e secretário da pasta. Para comentar mais esse capítulo da “guerra às drogas” no Brasil o Correio entrevistou Simone Nascimento, do Movimento Negro Unificado (MNU) e codeputada da Bancada Feminista do PSOL.
“A operação era justificada para prender os suspeitos pela morte do policial da Rota. Eles foram presos, devem responder investigação, conforme a lei, e depois não se apresentou nenhuma justificativa para o prosseguimento da investigação. Mas nada justifica a ida ao território de forma bélica, opressora, a invasão em casas, as mortes, as prisões. Agora sabemos que nem todos os policiais envolvidos na operação usaram câmeras. É uma operação que apresenta muitas falhas e violações de direitos humanos. Precisa ser imediatamente investigada pelo Ministério Público. E a posição do governador de dar carta branca é muito irresponsável”, sintetizou.
As famílias das áreas varridas pela operação policial também protestaram nas ruas da Baixada Santista e relatam um conteúdo de intimidações. Os administradores, como de hábito da ultradireita do país, acusam os críticos de aplicarem “narrativas”, ao passo que desconsideram as denúncias dos habitantes das favelas sobre as atitudes violentas e ilegais dos agentes policiais. Ao mesmo tempo, Rio de Janeiro e Bahia também registram operações policiais militares extremamente violentas, com dezenas de mortes. Na visão de Simone Nascimento, um conjunto de fatores que exige uma mudança de paradigma na concepção de segurança pública, uma vez que, a despeito da retórica de segurança, nada mais é do que a limpeza social racista que marca a relação do Estado brasileiro com suas maiorias sociais.
“As operações em outros estados reforçam a necessidade de outro projeto de segurança pública. Independentemente de quais são os governos de turno, o braço armado do Estado continua provocando violência nos territórios favelados e periféricos. O modelo de policiamento militar, de ostensividade, essa pecha de ‘bandido bom é bandido morto’, mesmo sem o instrumento jurídico da pena de morte, muito menos da execução extrajudicial, reforça o quanto precisamos repudiar essa política e provocar uma mudança urgente de modelo.
Confira a entrevista completa com Simone Nascimento.
Correio da Cidadania: Como foi o protesto na Secretaria de Segurança Pública nesta quinta? Há alguma interlocução com representantes do governo?
Simone Nascimento: Foi um protesto muito necessário pra expressar a indignação de diversas pessoas e grupos da sociedade civil com os rumos que essa operação tem tomado, tanto pelo número de prisões e invasões de casa como mortes e abusos em geral.
O protesto não chamou atenção porque o prédio da Secretaria de Segurança Pública (SSP) estava cercado por grades e um efetivo policial muito alto, como se fosse uma demonstração da impossibilidade de questionamento da sociedade, de se chegar perto do prédio e ter uma interlocução com o governo. Foi um ato importante e a recepção ostensiva mostra que o governo não quer dialogar.
Correio da Cidadania: O que comentar da operação escudo e seu resultado apresentado até aqui, com pelo menos 16 mortes e 128 prisões?
Simone Nascimento: Estamos muitos preocupados com a operação porque além de provocar toda essa quantidade de mortes e prisões deve continuar até o fim do mês. Era justificada para prender os suspeitos pela morte do policial da Rota, em julho. Eles foram presos, devem responder investigação, conforme a lei, e depois não se apresentou nenhuma justificativa para o prosseguimento da investigação.
Mas nada justifica a ida ao território de forma bélica, opressora, a invasão em casas, as mortes, as prisões. Agora sabemos que nem todos os policiais envolvidos na operação usaram câmeras. É uma operação que apresenta muitas falhas e violações de direitos humanos. Precisa ser imediatamente investigada pelo Ministério Público. E a posição do governador de dar carta branca é muito irresponsável.
Correio da Cidadania: Qual a responsabilidade de Guilherme Derriti? O que pensa de suas alegações, frequentemente expostas em rede social, de que a operação está “asfixiando o crime organizado”?
Simone Nascimento: Derrite é o mandante da operação. Ele utiliza essa narrativa, mas na verdade, com ausência de inteligência, tem apenas provocado um cenário de muita fragilidade nos territórios que convivem com o dia a dia das operações
Correio da Cidadania: Como avalia a ação ter sido realizada sem uso de câmeras nas fardas policiais? Por trás da cortina, não podemos estar diante de uma situação de perda de controle das autoridades políticas sobre a Rota?
Simone Nascimento: Estamos diante de um projeto de segurança pública que visa o extermínio e violação de direitos humanos. Não vejo essa perda de controle. Derrite é ex-policial da Rota, construiu a operação e enviou efetivo de mais de 300 policiais. É uma política de Estado assinada por ele e pelo governador, como assumiram em coletiva de imprensa.
É uma situação de controle social, uma política pública bélica que prioriza a morte, o extermínio, a prisão em massa no lugar da investigação e da inteligência.
Correio da Cidadania: Que debates espera ver aparecerem na sociedade a partir desta ação violenta do estado, que também acontece de forma similar em Rio e Bahia? O que falar do nosso modelo de policiamento?
Simone Nascimento: As operações em outros estados reforçam a necessidade de outro projeto de segurança pública. Independentemente de quais são os governos de turno, o braço armado do Estado continua provocando violência nos territórios favelados e periféricos. O modelo de policiamento militar, de ostensividade, essa pecha de “bandido bom é bandido morto”, mesmo sem o instrumento jurídico da pena de morte, muito menos da execução extrajudicial, reforça o quanto precisamos repudiar essa política e provocar uma mudança urgente de modelo.
Correio da Cidadania: A guerra às drogas continua a ser a retórica oficial para justificar operações extremamente violentas. Na semana passada, o STF avançou na descriminalização do consumo de maconha ao avalizar quantidades mínimas para consumo próprio, ainda que o comércio siga ilegal. Como você conecta os dois acontecimentos? O que espera também do governo Lula em relação a essas questões?
Simone Nascimento: Exatamente. A guerra às drogas segue como retórica e narrativa pra justificar ações que visam matar pessoas suspeitas, ou entrar ostensivamente em territórios, desconsiderar normas básicas porque em certos territórios as casas podem ser invadidas e as pessoas podem viver com medo, sob a suposta finalidade de ‘asfixiar o crime organizado’. É importante o avanço da descriminalização da maconha, nesse sentido.
Em São Paulo, vemos a pesquisa da Agência Pública que comparou Boletins de Ocorrência de brancos e negros e viu uma maioria de pessoas negras presas por portes menores de maconha que pessoas brancas, não presas. A guerra às drogas reforça um sistema que prioriza o aprisionamento e o genocídio da população negra. E a política de segurança pública destina a essa população um sistema de ausência de direitos.
Esperamos que o governo Lula possa se posicionar e falar sobre outro projeto de segurança pública.
Gabriel Brito é jornalista, repórter do site Outra Saúde e editor do Correio da Cidadania.