Massacres, assassinatos, policiais atirando em civis. A Colômbia, país do realismo mágico, parece ter se tornado o novo centro da violência na América Latina. A pandemia da violência policial e paramilitar se alastra pelo continente.
Democracia abierta, 24 de setembro de 2020
9 de setembro de 2020, 00h45: "Me dê uma multa". Estas foram as últimas palavras de Javier Ordóñez, um advogado de 45 anos.
Os fatos, de acordo com seu amigo Wilmer Salazar, que estava com Javier naquela madrugada em Bogotá, Colômbia, se deram da seguinte maneira:
Em 8 de setembro, por volta da meia-noite, Javier Ordóñez, Wilder Salazar e Juan David Uribe deixaram o apartamento de Ordóñez para comprar bebida alcoólica, como muitos colombianos fazem quando se reúnem. Dirigiram-se a um parque próximo onde foram abordados por uma viatura policial com dois policiais. Ordóñez trocou umas palavras com os uniformizados e Wilder sugeriu que voltassem para casa para ouvir música. Foi o que fizeram.
Foram caminhando, lentamente. Quando já estavam perto do edifício, a mesma viatura surgiu por trás. Ao passar, diz Salazar, um dos policiais disse à Ordóñez: "Dessa você não vai se salvar, não vai ter multa nenhuma". Ordóñez virou e disse: "Qual é o seu problema?" Naquele momento, e sem dizer uma palavra, um dos policiais saiu do veículo, pistola taser em mãos, e atirou contra Ordóñez pela primeira vez. Salazar ouviu claramente o tiro. Ordóñez caiu no chão e outro policial foi até ele para imobilizá-lo. Depois disso, Ordóñez recebeu pelo menos mais oito tiros, embora já estivesse imobilizado. No chão, eles rasgaram sua camisa e bateram em seu rosto. Ele agora recebia as correntes elétricas da pistola de choque diretamente sobre o corpo, sem a proteção das roupas. Ordóñez implorou repetidamente: "Parem, por favor, parem", mas os choques continuaram.
Outros policiais chegaram ao local e algemaram Salazar e Ordóñez, enquanto Uribe registrava tudo em seu celular. Eles são levados a um posto policial, conhecidos como Comandos de Ação Imediata (CAI), em VillaLuz, onde deixaram Salazar em um canto enquanto continuaram a agredir Ordóñez verbal e fisicamente. Eles o jogaram aos pés de seu amigo, onde Ordóñez permaneceu na posição fetal. Os policiais aproximavam-se apenas para agredi-lo mais. Mais policiais chegaram e, embora vissem Ordóñez quase inconsciente e com dificuldade para respirar, nada fizeram. Um amigo de Salazar apareceu no CAI para perguntar por ele e os policiais lhe disseram que ele não estava lá. Ele entra em pânico. Um pouco mais tarde, Uribe chegou ao CAI e, embora lhe disseram a mesma coisa, ele entrou à força e os viu. Uribe correu até Ordóñez para socorrê-lo, mas não pôde fazer nada. Uribe chamou uma ambulância levaram Ordóñez à clínica María del Lago. Não demoraram em chegar. Os médicos e enfermeiros rapidamente encaminharam Ordóñez, completamente desnorteados, ao pronto-socorro. Pouco depois, um médico saiu e disse a Salazar que sentia muito, mas que não puderam ajudar seu amigo.
Já eram mais de 1h de 10 de setembro, uma noite que será registrada como o estopim dos protestos mais sombrios contra a brutalidade policial que a região já viu.
Nesse mesmo dia, a notícia se espalha como um incêndio. O vídeo gravado por Uribe, que mostra um policial atirarando diversas vezes com a pistola taser contra o corpo de Ordóñez que, já imobilizado, implora para que parem, viraliza nas redes sociais. Os protestos começam nesse mesmo dia e, com eles, o horror.
Protestos em massa
Milhares de pessoas saíram às ruas de Bogotá para protestar contra a brutalidade policial que cercou a notícia da morte de Ordóñez. Pelo menos 12 civis foram mortos entre 10 e 12 de setembro. Dez deles tinham menos de 30 anos. Outros civis também morreram, embora não fizessem parte das manifestações e estavam apenas de passagem de volta do trabalho.
Seu suposto envolvimento na morte de Ordóñez se soma a outros excessos policiais, tais como depredar murais em memória de vítimas, como no caso de Julieth Martinez.
Em 21 de setembro, houve 22 protestos em Bogotá. Todos pacíficos e a polícia foi proibida de portar armas de fogo.
Embora tenha havido muita comoção com os fogos ateados contra os CAIs e a depredação do espaço público, a grande questão para o governo é: quem protege os colombianos?
Javier Ordóñez morreu em um CAI na madrugada de 10 de setembro de 2020. A versão policial, datada de segunda-feira, 21 de setembro, afirma que Ordóñez se bateu contra as paredes do CAI, o que ocasionou os ferimentos fatais. O vídeo de Uribe, os testemunhos de seus amigos e os relatórios médicos, no entanto, dizem o contrário.
"Paciente admitido sem sinais vitais, pupilas dilatadas e com sinais de morte, lividez dorsal (...)", lê o laudo médico de Javier Humberto Ordóñez Bermúdez.
Javier foi morto. Os suspeitos são dois policiais, dois homens uniformizados encarregados de proteger o bem-estar dos cidadãos de Bogotá. Parece que Javier foi morto por quem tinha um trabalho: protegê-lo.
O que esquecemos
A morte de Javier Ordóñez é uma tragédia. Outra de muitas que a Colômbia lamenta este ano. Embora o olhar do país e do mundo esteja voltado para os abusos policiais, há outro abuso que não pode passar despercebido: a Colômbia, país que assinou um Acordo de Paz em 2016, é hoje palco de massacres novamente. Massacres que, semana após semana, continuam a criar pânico nas zonas rurais sem que ninguém faça nada a respeito.
Segundo a última lista do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento e a Paz (Indepaz), ocorreram 61 massacres até agora em 2020 no país.
Nesses 61 massacres, 246 pessoas morreram. O departamento (estado) com maior número de massacres é Antioquia, com 14, seguido por Cauca e Nariño, com 9 cada.
Diante disso, como no caso de Ordóñez, é chocante a inação do governo e o desdém com que tratam uma questão que até mesmo as Nações Unidas qualificaram de "arrepiante".
Em agosto, o presidente da Colômbia Iván Duque referiu-se aos massacres como homicídios coletivos, negando assim a violência dos acontecimentos.
Embora o abuso policial que se espalha pelas ruas da capital seja grave, o que acontece nas zonas rurais também é grave. Se somarmos a isso o fato de mais de 215 líderes sociais terem sido assassinados só neste ano, a situação é gravíssima. Se, além disso, incluirmos a contagem dos ex-combatentes das FARC-EP assassinados, 43 em 2020, os números são característicos de um país em guerra, de um filme de terror.
A verdade é que a violência parece ter se tornado moeda de troca na Colômbia, e tanto os governos locais quanto o nacional parecem não querer notar. As questões, porém, permanecem as mesmas: quem manda a polícia atirar para matar? Quem é responsável pelos líderes sociais assassinados? Quem está massacrando os colombianos nas zonas rurais? Quem protege os colombianos?
A responsabilidade cabe ao governo. Mas a resposta ainda está a ser definida.