45% da população feminina está privada de autonomia sobre sua própria saúde, o uso de anticoncepcionais e até mesmo quando e como manter relações com seu parceiro, segundo o novo relatório anual do Fundo de População da ONU. É a primeira vez que essas dimensões de gênero são mensuradas
Alejandra Agudo, El Pais Brasil, 14 de abril de 2021
Ninguém explicou a Yuniy López, hondurenha e mãe de 10 crianças, que ela poderia utilizar métodos anticoncepcionais para decidir se queria ter filhos, quantos e quando. “É difícil para a saúde da gente mesmo. Não quero que ninguém passe pelo mesmo que eu”, afirma. “O teste mais doloroso é ter um bebê pequenininho e de repente já vir outro a caminho; você não tem nada para comprar do que ele vai precisar. Não desejo isso para nenhuma mãe. Os filhos precisam ser planejados; quando são muitos, não dá para lhes dar o que precisam, se dá o que se pode”, diz ela, que se tornou voluntária em seu país do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA, na sigla em inglês). Segundo López, há lugares aonde a informação sobre planejamento familiar “nunca chegou”.
Como aconteceu com López, ainda hoje milhões de mulheres não podem tomar as decisões mais essenciais sobre seus corpos. Quase metade delas (45%) diz não ter opção de escolher se quer ou não manter relações sexuais com seu parceiro, nem usar anticoncepcionais ou procurar atendimento médico. São três escolhas que elas deveriam poder fazer livremente, conforme determina o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 5.6 da ONU. Esta é a principal conclusão do relatório anual do UNFPA, intitulado Meu corpo me pertence, com base em informações de 57 países (a maioria na África subsaariana) para os quais há dados completos mensurando essas três dimensões.
“Isto deveria indignar a todos nós. Basicamente, centenas de milhões de mulheres e meninas não são donas dos seus próprios corpos. Suas vidas estão governadas por outros”, diz Natalia Kanem, diretora-executiva do organismo, por e-mail. Para Jaume Nadal, representante da UNFPA na Ucrânia, o problema é que a maioria dos Estados diz garantir legalmente o direito das mulheres a decidirem sobre seus corpos. “Há uma lacuna enorme disso com a realidade que elas experimentam”, lamenta em uma conversa por telefone.
O relatório se baseia em dois indicadores dos ODS que ajudam a rastrear o progresso em direção à meta de garantir a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos de todos até 2030, algo com que se comprometeram todos os Governos, como recorda Kanem. “É a primeira vez que medimos o poder das mulheres para tomar decisões autônomas sobre o sexo e a reprodução, e até que ponto as leis e políticas permitem ou dificultam essa tomada de decisões individuais”. Nadal acrescenta: “A autonomia pessoal é parte do feminismo sempre; agora temos uma forma de medi-la com os ODS; é importante que se faça isso e haja um acompanhamento por parte dos países.”
Os dados globais são esclarecedores. Kanem destaca alguns: “Apenas 71% dos países garantem acesso ao atendimento à maternidade; só 75% garantem legalmente o pleno acesso à anticoncepção; e só cerca de 56% têm leis e políticas que apoiam a educação integral em questões de sexualidade. E como apenas cerca de 13% dos países têm um orçamento específico para reunir e analisar estatísticas de gênero, questões como a violência de gênero e o trabalho não remunerado com cuidados frequentemente permanecem invisíveis, sem serem contados nem abordados.”
“E agora, por causa da pandemia, mais mulheres estão expostas à violência de gênero e ao não exercício de seus direitos”, observa Nadal. Na Ucrânia, onde ele trabalha, o número de mulheres que procuram ajuda cresceu 50%. “A verdade é que estamos vendo retrocessos, e os avanços que vinham acontecendo não eram rápidos”, lamenta. Por isso, diz, este relatório é um apelo aos governos para que eliminem essa lacuna entre o que dizem suas leis e a realidade. Um exemplo claro é a mutilação genital feminina, proibida em muitos países onde continua sendo uma prática generalizada. “As reduções são muito discretas; erradicá-la levará séculos no ritmo atual”, acrescenta.
Mais de 200 milhões de meninas e mulheres vivem com as consequências da amputação, e pelo menos quatro milhões de meninas correm o risco de serem submetidas a ela a cada ano, segundo o UNFPA. A crise da covid-19 poderia piorar esta estatística a ponto de a pandemia “dar lugar a dois milhões de casos que, do contrário, seriam evitados”, eliminando assim um terço dos progressos que haviam sido feitos em direção à meta 5.3 dos ODS, que propõe eliminar a mutilação genital feminina até 2030.
A mutilação genital, junto com o casamento forçado e infantil e o estupro marital, são os “exemplos mais crus da relação entre as normas de gênero desiguais e a erosão da capacidade de uma mulher ou menina de tomar decisões autônomas na vida”, escrevem os autores do documento de 164 páginas.
“Não é fácil ser otimista perante as conclusões do relatório: 45% das mulheres têm negado o direito a dizer sim ou não ao sexo, ter acesso a atendimento médico ou escolher o momento adequado para ter um filho. E o que já estava mal agora ficou pior com a covid-19. A pandemia provocou um aumento vertiginoso da violência sexual, mais gestações não desejadas e novas barreiras para o atendimento médico, junto com a perda de empregos e de educação. Em contextos humanitários, famílias cada vez mais desesperadas casam suas filhas pequenas só para sobreviver”, analisa Kanem.
Mas nem tudo são más notícias. O UNFPA estima que mais de 12 milhões de mulheres enfrentaram interrupções nos serviços de planejamento familiar durante o último ano, o que provocou aproximadamente 1,4 milhões de gestações indesejadas. Poderia ter sido muito pior. No começo da pandemia, o organismo advertiu que seis meses de interrupção poderiam deixar 47 milhões de mulheres em países de renda baixa e média sem acesso a métodos anticoncepcionais modernos. “Felizmente, a comunidade internacional se mobilizou para manter em funcionamento as cadeias de suprimento, e os prestadores de serviços inovaram e se adaptaram”, salienta a especialista.
“O ponto central é que, sem avanços na autonomia corporal das mulheres e meninas, nenhum dos outros Objetivos de Desenvolvimento Sustentável será cumprido, nem os direitos humanos”, sentencia Nadal. Mas o relatório não se limita a dar um puxão de orelhas nos Governos. Também faz propostas. “A educação é fundamental para que [as mulheres] possam exercer seus direitos de forma livre e informada, e também é necessário obter mais envolvimento dos profissionais da saúde para detectar e evitar certas violações”, enumera Nadal. Mas sobretudo é importante, na opinião dele, resolver as incoerências nas leis existentes. “Em alguns países, a idade mínima do consentimento legal para manter relações sexuais é de 14 anos, entretanto se limita o acesso aos anticoncepcionais aos 18, e a educação sexual não é parte do currículo. As garotas ficam expostas a um enorme risco; não se pode privá-las do uso de métodos de planejamento familiar”, detalha o especialista.
A tarefa de exigir das autoridades que cumpram seus compromissos com a igualdade de gênero não é exclusiva do movimento feminista ou de entidades como o UNFPA, opina Kanem. “Todas as pessoas podem contribuir mantendo a pressão sobre os governos para que ajam e responsabilizando os líderes para que cumpram suas obrigações. Também necessitamos de mais aliados masculinos. Os homens devem estar dispostos a se afastar dos papéis dominantes que privilegiam seu poder e suas opções em detrimento das mulheres. Os adolescentes homens precisam receber noções muito mais positivas sobre o que constitui a dignidade durante uma época da vida em que as normas de gênero nocivas começam a se cristalizar. A educação integral para a sexualidade adequada à idade para meninos e meninas inculca os valores de respeito, igualdade e consentimento”, conclui.