França e Áustria argumentam que o pacto prejudica os objetivos climáticos da UE, pois irá agravar o processo de desmatamento na região amazônica. Bruxelas analisa saídas para destravar a ratificação do acordo.
Lluís Pellicer, El País Brasil, 12 de março de 2021
A União Europeia (UE) precisou de quase duas décadas de negociações para selar com os países do Mercosul o maior tratado comercial jamais alcançado. E, apesar da solenidade de sua assinatura, sua aplicação ainda não está garantida. As relutâncias de um grupo de sócios, liderados pela Áustria e a França, ameaçam fazer o acordo descarrilar, por considerarem que o pacto contraria os objetivos climáticos da UE. Bruxelas, que não quer perder sua posição estratégica na América do Sul, abordou nesta quinta-feira com os 27 sócios do bloco as possíveis saídas para essa crise, que fontes comunitárias veem como insolúvel antes das eleições francesas de 2022.
A cúpula da UE manteve nesta quinta uma reunião informal com os secretários de Comércio dos 27 membros para tentar tirar do ponto-morto o processo de ratificação do acordo com os países do Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai), no que será o maior acordo comercial já assinado pela UE, pois dá às empresas europeias um acesso livre a um mercado de 260 milhões de consumidores. A reunião ocorreu depois do golpe que a Áustria desferiu contra as esperanças da atual presidência da UE ―que neste semestre cabe a Portugal― de impulsionar esse assunto.
O Governo austríaco, uma coalizão do Partido Popular e dos Verdes, transmitiu nesta semana a Lisboa sua decisão de rejeitar o acordo por considerar que ele agravará o processo de desmatamento da Amazônia. A Áustria se somava assim à tese da França, que em meados de 2020 se baseou em um estudo de especialistas, com a mesma conclusão, para exigir do Mercosul mais garantias de cumprimento de todas as exigências sanitárias e ambientais.
Segundo fontes diplomáticas, durante a reunião também surgiram restrições por parte dos Países Baixos, Irlanda e Bélgica, cujas autoridades da região da Valônia já se pronunciaram contra o pacto. A Alemanha se manifestou favorável, numa posição que continua sendo liderada por Portugal, Espanha, e países nórdicos, especialmente a Suécia.
Bruxelas quer encontrar uma via que evite a derrapagem do acordo, o que serviria esse enorme mercado de bandeja para a China, uma potência que há muito tempo bate na porta da região. O vice-presidente-executivo e responsável por Comércio do bloco, Valdis Dombrovskis, afirmou recentemente ao EL PAÍS que a UE está “em contato com as autoridades do Mercosul para discutir sobre os compromissos adicionais que podem ser adotados para aliviar essas preocupações”. A Comissão pensava em uma declaração política que acompanhasse o tratado, na qual os quatro países do Mercosul se comprometeriam a redobrar seus esforços de cumprir o Acordo de Paris, que prevê uma redução generalizada das emissões de gases do efeito estufa.
A Áustria, porém, não pretende facilitar as coisas, e antes da reunião desta quinta se antecipou aos possíveis cenários que Bruxelas cogita. “Nossa rejeição também se refere a possíveis tentativas de concluir uma decisão mediante uma declaração conjunta ou um protocolo anexo ao acordo”, afirmava a carta remetida de Viena ao primeiro-ministro português, António Costa.
A posição austríaca levou Bruxelas a pôr sobre a mesa todas as opções possíveis, embora fontes comunitárias descartem a reabertura do acordo, alcançado após 20 anos de árduas negociações. Além disso, esse documento em que trabalham várias direções gerais deve poder ser aceito pelos países do Mercosul, que começam a se impacientar com a espera. Em uma entrevista ao Financial Times, o ministro de Relações Exteriores de Portugal, Augusto Santos Silva, advertiu de que o atual estancamento do processo de ratificação ameaça a “credibilidade” da UE como sócio comercial.
Desde sua assinatura, em junho de 2019, o acordo de associação foi alvo de uma intensa campanha contrária por parte das organizações ambientalistas. Elas acreditam que o pacto só servirá para favorecer a lesiva política do presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, contra a Amazônia. Desde então, a UE e o Mercosul observaram a real dimensão da onda verde que tomou as ruas e as eleições da Europa. Entretanto, alguns sócios acreditam que há países agitando a bandeira ambientalista para esconder a do protecionismo.
Na reunião desta quinta, alguns sócios também mencionaram os efeitos que o pacto pode ter sobre seu setor pecuarista. Nisso, entretanto, a Comissão Europeia (Poder Executivo da UE) tem suas razões bem amarradas. O pacto reduz as tarifas para uma quantidade de até 99.000 toneladas de carne bovina. A UE atualmente importa cerca de 200.000 toneladas, por isso a Comissão acredita que essa oferta não significaria um aumento das vendas. Além disso, o Executivo comunitário recorda que a maior parte do gado importado não procede do Brasil.
A China bate à porta
A assinatura do acordo de 2019 permitiu que Bruxelas se apresentasse como um bastião do livre comércio em um mundo ameaçado pelas políticas protecionistas de Donald Trump. Agora, entretanto, a UE teme que os países do Mercosul possam lhe dar as costas e procurar outros sócios. “A China e o Reino Unido estão batendo à porta do Mercosul. Não é possível que as lógicas nacionais ponham em dúvida as necessidades geoestratégicas da Europa do futuro”, afirma o eurodeputado espanhol Jordi Cañas, do partido Cidadãos e coordenador para a América Latina do grupo parlamentar Renovar a Europa.
Já a eurodeputada socialista Inmaculada Rodríguez-Piñero, integrante da comissão de Comércio, considera que os 27 países da UE deveriam impulsionar a ratificação neste semestre. “Ela pode ser acompanhada de mais garantias sobre melhoras em matéria de sustentabilidade, desmatamento, direitos dos povos indígenas e compromissos em matéria trabalhista. Mas é um acordo importante para a UE e para o Mercosul, porque contribui para a sua integração”, argumenta a parlamentar espanhola, que também menciona a disposição da China de cravar os dentes na região.
Bruxelas acredita, além disso, que o Brasil será mais respeitoso com o Acordo de Paris dentro do Mercosul do que fora. Entretanto, fontes comunitárias temem que todos esses esforços sejam em vão por causa do calendário: há eleições iminentes nos Países Baixos, pleitos regionais na França em junho deste ano, e federais na Alemanha em setembro. E, para arrematar, a eleição presidencial francesa de maio de 2022, com Emmanuel Macron sendo pressionado pela expansão do movimento ambientalista e uma extrema direita que continua se valendo de bordões protecionistas para tentar ganhar terreno do presidente. Fontes comunitárias acham que o acordo será difícil enquanto essa situação não se resolver. E também Bolsonaro deve disputar a reeleição em 2022.
Bruxelas cogita esquivar os parlamentos nacionais
A UE assinou o acordo comercial com o Mercosul em junho de 2019 e, posteriormente, o pacto político e de cooperação em junho de 2020. Depois de 20 anos de negociação, o processo formal é longo. Mas a UE quer reduzir prazos. O acordo está agora em fase de revisão jurídica e posteriormente terá de ser traduzido em todas as línguas da União. A partir daí se apresenta o dilema de como prosseguir.
Fontes comunitárias explicam que, caso surja um acordo sobre as garantias a serem dadas pelos países do Mercosul, o pacto poderia passar ao Conselho Europeu em duas fases: primeiro, o acordo comercial; depois, o político e de cooperação. Essa via permitiria que o pacto comercial fosse aprovado por maioria qualificada, e não por unanimidade, pois Bruxelas acredita que existe uma maioria de países favoráveis a isso. O texto depois deveria passar pelo Parlamento Europeu, onde esse documento enfrenta a rejeição dos blocos Verdes e A Esquerda, que aglutina partidos à esquerda dos socialistas.
Entretanto, a Áustria também advertiu sobre a possibilidade de dividir o acordo. Se o acordo for levado na íntegra ao Conselho, a situação seria muito mais complexa. Fontes comunitárias dizem que os Estados membros consideram que o âmbito político e de cooperação lhes pertence e exigiriam um voto unânime, o que no momento levaria à rejeição do texto.
Mas, além disso, essa manobra exigiria que o documento fosse posteriormente ratificado por todos os Parlamentos nacionais, o que no passado já colocou outros tratados comerciais em apuros. Em 2016, por exemplo, o Parlamento regional da Valônia (Bélgica) pôs em xeque o acordo comercial com o Canadá, ao qual só acabou dando luz verde após obter concessões.