Julia Almeida, em Fundação Rosa Luxemburgo. Dezembro de 2023. Adaptado.
Milei e Bolsonaro mobilizaram o sentimento de indignação relacionado à perda da qualidade de vida na Argentina e no Brasil. Este artigo compara o fenômeno do crescimento da extrema direita nesses países. E discute as tendências que se apresentam para o futuro dessas experiências, cujas agendas econômicas e sociais não conseguem responder às expectativas fomentadas em sua própria base.
Uma análise preliminar do voto na Argentina e no Brasil indica que, apesar de importantes diferenças de base social, Javier Milei e Jair Bolsonaro conseguiram mobilizar um sentimento de indignação relacionado à perda da qualidade de vida nesses países. Em comum, as campanhas se destacaram com uma agenda neoconservadora de valores, além do discurso de ódio estimulado por meio das redes sociais, com o uso de tecnologias de engajamento de rede e fake news.
Este artigo apresenta algumas hipóteses com base em comparações do fenômeno do crescimento da extrema direita no Brasil e na Argentina. Vamos utilizar três referenciais distintos:
1º) o perfil dos eleitores de Milei e Bolsonaro no 2º turno das eleições da Argentina 2023 e Brasil 2018 e 2022;
2º) adesão a pautas conservadoras dos eleitores dessas candidaturas em 2023 e 2022; e
3º) dados do perfil da base social mais engajada, considerando a participação em atos políticos relacionada a essas figuras, em 2023.
Por fim, discutimos quais tendências se apresentam para o futuro dessas experiências de extrema direita cujas agendas econômicas e sociais não conseguem responder às expectativas fomentadas em sua própria base.
MAIORIAS SOCIAIS
Javier Milei formou maioria social e chegou à vitória nas eleições argentinas em 2023, ampliando sua base eleitoral por meio do apoio do Juntos pela Mudança (principal bloco de oposição do país, terceiro colocado no primeiro turno). Ao somarmos os votos que Milei e Patricia Bulrrich tiveram no primeiro turno identificamos cerca de 14.100 milhões de votos, valor muito próximo do total de votos que Milei teve no 2º turno (14.400 milhões). Esses números demonstram o quanto o sentimento de mudança esteve presente nas eleições argentinas, que se caracterizaram pelo rechaço ao candidato governista, em razão da crise econômica dos últimos anos.
No caso brasileiro, Bolsonaro conseguiu conformar maioria social em 2018, quando obteve uma vitória com uma vantagem similar à de Milei sobre seu adversário. No caso de 2022, de pronto se faz necessário recordar duas diferenças (que serão objeto de análise mais adiante) significativas em relação à Milei e 2018. O Bolsonaro de 2022 tinha sido governo e enfrentava um concorrente bastante popular que não foi afastado do pleito (como ocorreu em 2018).
O contexto da assunção da extrema direita Argentina e brasileira não foi o mesmo. Em primeiro lugar, do ponto de vista político, a eleição de Bolsonaro em 2018 se deu após um golpe parlamentar (destituindo a presidenta Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores) e a prisão de Lula. Em 2018, Bolsonaro possivelmente não venceria Lula, que figurava em primeiro lugar em todas as pesquisas na época. Sua eleição já se realiza no rebaixamento político-institucional, numa perspectiva autoritária em que a maioria social é alterada pela prisão de Lula.
Já Milei vem como uma candidatura oxigenada, jovem e pulsante. Seu caldo político é o fracasso econômico do governo de Alberto Fernández e de seu possível sucessor, Sérgio Massa. Milei é, portanto, produto da crise imediata do Kirchnerismo (que já havia perdido as eleições para o ultraneoliberal Mauricio Macri em 2015, do mesmo partido de Bullrich).
Mas há diferenças relevantes no campo social. A base mobilizada e os principais grupos sociais no entorno de Milei e Bolsonaro não são os mesmos. Enquanto Milei mobiliza pelo voto e pelo engajamento político setores mais jovens e pobres; Bolsonaro se relaciona melhor eleitoral e socialmente com setores mais velhos e de classe média. Ambos são populares enquanto possuem adesão de massas e são expressões de partes importantes da população em geral.
No entanto, as diferenças que esses setores apresentam nas suas características socioeconômicas não são observadas na defesa de agenda política que empunham, a saber, neoconservadorismo e neoliberalismo. Ao contrário, percebemos uma adesão praticamente idêntica no que tange a esses elementos (em especial da base mais engajada da extrema direita nesses países).
Isso indica algo da construção da extrema direita mundial. Primeiro, sinaliza uma capacidade de articulação política impressionante e de um movimento que consegue exprimir uma mesma agenda ao nível mundial. Em segundo lugar, isso também indica que embora sejam produtos de uma situação econômica mundial de crise, pós 2008, os interesses econômicos da extrema direita não correspondem necessariamente às expectativas dos setores que aderem a sua agenda econômica. Ou seja, há um certo deslocamento entre o discurso econômico produzido por esse setor e efetivamente quem irá se beneficiar dele. E aqui, nos parece um ponto-chave. Quem ganha e quem perde com a ascensão da extrema direita?
Milei se elege como um candidato popular, a maioria dos mais pobres votou nele. Ele precisará, portanto, dar uma resposta para seu eleitorado. O problema é que sua agenda não é distributiva, mas concentradora. Sua alternativa é acabar com vários mecanismos de distribuição de renda da sociedade argentina para conter a inflação. Por isso, ele enfrentará uma encruzilhada que poderá mudar o perfil de seu eleitorado ou causar sua ruína.
A sua base extremamente jovem também revela uma crise geracional na Argentina. Ele mobiliza o setor mais afetado pela crise econômica, com a precarização do trabalho e que não imagina alternativa de futuro. Essa crise geracional também é uma tendência no capitalismo global, tendo em vista um processo de aumento da desigualdade e precarização do trabalho.
Esse ponto é um dilema para as extremas direitas no governo como, em regra, suas pautas econômicas tendem à concentração de renda (combatendo elementos distributivos pelo avanço da política neoliberal); sua força passa a estar basicamente no ódio a algum setor da política (antipetismo, anti-kircherismo), na pauta neoconservadora e/ou na pauta da tensão autoritária institucional.
Mas, quando na gestão pública, há uma força motriz que esses políticos de extrema direita acabam perdendo, que é a capacidade de disputar a indignação da maioria da população. Por isso, tendem a intensificar o discurso mais radical, político e ideológico, constituindo um núcleo mais conservador e mais engajado do que quando se elegeram. Isso aconteceu com Trump, aconteceu com Bolsonaro.
Milei não, necessariamente, trilhará o mesmo caminho de seus antecessores mais relevantes, mas enfrentará a mesma encruzilhada e com contornos mais agravados (sua base mais popular e uma economia em crise e com poucos recursos). Se repetir a mesma receita, não se reelege. Esse é o problema da extrema direita em relação à dinâmica da democracia liberal, o crivo das eleições é de difícil reedição. Os ensaios de golpe de Trump com o Capitólio e de Bolsonaro com as invasões de 8 de janeiro já apontam nesse sentido. Por isso, é possível a abertura de um segundo ciclo da extrema direita mundial, com a intensificação de uma agenda autoritária institucional.