Joana Salém, Observatório Internacional, 12 de julho de 2021
Antes de classificar a revolta popular ocorrida no domingo 11/07 em diferentes partes de Cuba como uma “revolução colorida” ou como uma jogada imperialista, é necessário olhar atentamente aos problemas internos do país e as contradições atuais da revolução.Com a pandemia, o PIB cubano caiu 11% e o turismo paralisou. As divisas trazidas pelos turistas secaram. Estas eram responsáveis por irrigar uma parte importante da vida econômica da população. Diante da escassez de divisas, o governo resolveu antecipar uma reforma monetária e cambial que unifica as duas moedas emitidas pelo Estado e reforma a estrutura da renda nacional. O pacote foi chamado Tarea Ordenamiento e decretado em dezembro de 2020. Apesar das boas intenções, a medida gerou novos desequilíbrios e distorções difíceis de corrigir, que impactam bruscamente a vida cotidiana. A revolta popular de ontem (11/07) reflete insatisfações de duas naturezas: econômica e política. Antes de rotulá-las, é fundamental entendê-las.
INSATISFAÇÃO ECONÔMICA – A pandemia gerou escassez material em Cuba. A unificação monetária alterou as possibilidades de consumo dos cubanos de maneira brusca. A reforma monetária aumenta tarifas e salários, exigindo uma liquidez de moeda em circulação que parece não existir no país. Existem pressões inflacionárias descontroladas e um mercado paralelo em crescimento, com aumento do contrabando de divisas. A vida cotidiana dos cubanos piorou muito em 2020 e em 2021. Embora emergencial, a Tarea Ordenamiento não soluciona problemas imediatos e cria novos desajustes. É uma transição complexa, que afeta todas as esferas da vida econômica cubana de uma só vez e que requer paciência popular. Essa paciência talvez não exista.
INSATISFAÇÃO POLÍTICA – Existe uma crise do poder popular em Cuba. Para além das eleições bianuais, que tem alta participação da sociedade, os canais de representação popular – organismos locais do Partido Comunista, CDRs, a Federação de Mulheres Cubanas, a CTC-Revolucionária, órgãos da juventude, etc – se burocratizaram e engessaram. Hoje representam muito mais o Estado perante povo do que o povo perante o Estado. Não absorvem as contradições da sociedade cubana e não criam mecanismos revolucionários de escuta e decisão popular como antigamente. Cubanos de esquerda estão alertando para a necessidade de recriação de novas formas do poder popular há algum tempo.
RAIVA – Consequentemente, a insatisfação econômica generalizada não encontra canais políticos de expressão, pois não existem organismos vivos e contraditórios que materializem o poder popular. O mal-estar cubano está circulando nas redes sociais há bastante tempo, dando recados contundentes de um problema profundo. A raiva explodiu ontem, com carros virados e gritos de “abaixo a ditadura”. Não foi por falta de aviso prévio (principalmente dados pelo Manifesto 27N, cujos mais de 300 signatários reivindicam um lugar crítico dentro da Constituição Cubana socialista). Os cubanos insatisfeitos não devem ser rotulados automaticamente como “manipulados”, “liberais” ou “contrarrevolucionários”. Isso é o que o imperialismo mais deseja: a cisão entre Estado e parte da sociedade, aprofundada por uma rotulação apressada do governo contra os manifestantes.
IMPERIALISMO – O bloqueio é sem dúvida um dos mais importantes fatores da crise econômica. Mas não o único. Os EUA e os cubano-americanos de Miami estão se aproveitando da revolta de ontem para fazer suas agitações golpistas de sempre, com métodos de guerra híbrida. Contudo, o peso do imperialismo para derrubar o governo cubano nessa conjuntura, que é determinante, não pode cegar a análise dos problemas internos. A revolução cubana é longeva por conta da sustentação popular interna. É preciso curar as fissuras internas, não jogá-las na vala comum do imperialismo.
EM RESUMO: Os partidários do imperialismo querem que o governo dê as costas e ofenda aos cubanos das ruas, pois assim estes não terão outra alternativa a não ser organizar sua energia para o lado contrário à revolução. O melhor seria fazer exatamente o oposto. Escutar e entender a raiva popular, criar mecanismos emergenciais de solução dos problemas econômicos cotidianos e abrir espaços novos de expressão e decisão da sociedade sobre os caminhos da revolução.