Se observarmos o que acontece nos bastidores das três grandes potências que lutam pela hegemonia mundial, veremos como a prioridade das lógicas geopolíticas e das lutas interestatais sufocam os espaços dos movimentos antissistêmicos e até as críticas aos poderes instituídos.
Raúl Zibechi, La Jornada / IHU-Unisinos, 11 de fevereiro de 2022. A tradução é de Cepat.
Se observarmos o que acontece nos bastidores das três grandes potências que lutam pela hegemonia mundial (Estados Unidos, China e Rússia), veremos como a prioridade das lógicas geopolíticas e das lutas interestatais sufocam os espaços dos movimentos antissistêmicos e até as críticas aos poderes instituídos.
Cada vez que cresce a tensão entre as nações, as classes dominantes insistem em controlar suas sociedades, pois a intensificação do conflito social pode enfraquecer suas aspirações globais. No momento, assistimos ao controle cada vez mais sufocante de qualquer ação social, por meio da repressão direta, da cooptação ou de uma combinação de ambos.
Na China, o poder do Partido Comunista e um Estado autoritário esmagam qualquer movimento de resistência, em uma nação onde o governo controla rigidamente a sociedade civil. Não há sindicalismo independente do Estado, nem movimentos sociais como os que conhecemos em outros períodos da história chinesa, nem a possibilidade de expressar abertamente críticas às autoridades.
De acordo com a rádio estatal Radio Internacional, cerca de 1.650 pessoas morrem diariamente na China em consequência do excesso de trabalho, o que significa 600 mil mortes por ano. Feministas chinesas são perseguidas e presas por distribuir propaganda, em uma sociedade onde o poder é paranoico com tudo que não pode controlar.
Em excelente texto publicado pelo jornal espanhol El Salto, Rafael Poch de Feliu estima que tanto na Rússia como nas ex-repúblicas soviéticas asiáticas predominam as oligarquias que administram regimes autocráticos. A suspeita do Kremlin diante do menor protesto social se deve, em sua opinião, ao medo de uma revolta social e antioligárquica na Rússia, algo que acontecerá mais cedo ou mais tarde.
Em países onde não há sociedade civil autônoma e as pessoas são excluídas de qualquer participação, sem alto-falantes para expressar legalmente sua discordância, há uma tendência para uma atitude de demolição, ao invés de reforma ou alteração da ordem estabelecida. Acusar os manifestantes de serem agentes estrangeiros é um velho álibi usada pelas direitas em nossas terras contra toda oposição vinda de baixo.
Nos Estados Unidos, a repressão brutal contra as mobilizações de baixo (como aconteceu com os protestos após o assassinato de George Floyd pelo aparato policial) se combina com a cooptação mais sutil dos líderes do movimento, para ampliar as bases sociais do poder e enfraquecer as lutas.
Em seu Relatório sobre os Direitos Humanos nos Estados Unidos de 2020, a Anistia Internacional afirma que pelo menos mil pessoas foram mortas a tiros pela polícia. O relatório acrescenta que ocorreram inúmeras violações flagrantes de direitos humanos contra aqueles que protestavam contra os assassinatos ilegais de pessoas negras e clamavam por uma reforma policial sistêmica.
Além disso, denuncia que nos Estados que liberaram o porte de armas de fogo, houve casos de civis armados que enfrentaram manifestantes, resultando em pelo menos quatro mortes. As descrições que a Anistia e alguns meios de comunicação fazem da violência policial são muito semelhantes às que são registradas diariamente em alguns países da América Latina, como Colômbia e Brasil.
Na reunião que a vice-presidente Kamala Harris teve com a presidenta hondurenha Xiomara Castro há poucos dias, a primeira insistiu na importância do combate à violência sexual, de gênero e doméstica, e que este trabalho é um dos pilares fundamentais da estratégia para abordar as causas profundas da migração na América Central.
Não há como negar que são criativos: agora o império exporta o feminismo, enquanto chovem relatos de violência contra as mulheres nas Forças Armadas. Deborah Snyder, coronel retirada da Marinha, disse à France 24 que 80% das mulheres soldados foram vítimas de agressão sexual.
Os Estados Unidos e a direita promovem revoluções coloridas para promover mudanças de regime, apelando para o feminismo e o ambientalismo, aproveitando o descontentamento social para derrubar governos que não se afinam com eles.
De modo simétrico, as esquerdas no governo acusam aqueles que os criticam de fazer o jogo da direita, como fazem no Brasil com o movimento de junho de 2013 que lutou contra a desigualdade. Não esqueçamos que o Exército Revolucionário Popular atirou em Roque Dalton por estar a serviço da CIA, ou seja, por discordar da linha da direção.
Estes são tempos sombrios para a luta dos que estão abaixo. Não vamos nos desesperar; a história nos ensina, como fez em 1914, que as fúrias estatistas desaparecem quando toda a indecência dos Estados e suas forças repressivas emergem.