Antropóloga Letícia Cesarino observa que as pessoas são “cada vez menos capazes de ver causalidades sociais” enquanto Bolsonaro exacerba o “individualismo brasileiro” ao negar a pandemia e colocar em dúvida vacinação coletiva.
Rede Brasil Atual conversa com Letícia Cesarino, 21 de dezembro de 2020
O chamado “populismo digital” que contribuiu para a ascensão do então candidato Jair Bolsonaro, em 2018, à presidência da República, é também o que explica parte da manutenção da aprovação de seu governo. Para a antropóloga Letícia Cesarino, que pesquisa as redes de apoio ao presidente, a construção discursiva por meio das mídias digitais alude a uma suposta equivalência entre líder e o povo contra uma elite, vista como inimiga da nação, dicotomia muito empregada por representantes da direita radical. A narrativa se rearranjou neste segundo ano de governo, mas manteve alguns padrões que se tornaram mais evidentes durante a pandemia do novo coronavírus.
Entre eles, a estratégia de responsabilizar outros por eventuais problemas de atuação. “São os ‘inimigos’: é a China, os governadores, o STF (Supremo Tribunal Federal), o Congresso. Bolsonaro está sempre delegando a outros os efeitos negativos que poderiam ser atribuídos a ele. Acredito que isso explica em parte o apoio que ele ainda tem”, afirma a pesquisadora.
Em entrevista a Glauco Faria, no Jornal Brasil Atual, Letícia avalia que o mandatário consegue “muito bem navegar em um contexto de caos informacional”. Segundo ela, Bolsonaro “está sempre se alimentando da ambiguidade e da desinformação”. “Um dia ele fala uma coisa, no outro ele fala outra”, comenta. Uma postura “errática” que vem sendo reforçada como forma de comunicação sobre a maior crise sanitária causada pela covid-19. “Em um ambiente desse tipo”, adverte Letícia, “é muito difícil estabelecer causalidades claras. Ao não conseguir estabelecê-las, a gente também não consegue atribuir a responsabilização a ele diretamente pelas mortes.”
Materialidade dos ‘inimigos’
A antropóloga destaca que a eficácia desse tipo de comunicação política utilizada por Bolsonaro está no que o cientista político Ernesto Laclau, teórico do populismo, chamou de “caráter vago dessas ideias” que são propagadas. Isso explica, de acordo com ela, o ataque da base bolsonarista a qualquer possibilidade de isolamento social. Nessa lógica de “inimigo variante”, ora prefeitos e governadores ou o STF, as medidas de prevenção ao novo coronavírus também se materializam como “inimigas do governo”.
“Você lança ideias vagas e as pessoas vão preenchendo com aquilo que faz mais sentido para elas. Por exemplo, o isolamento social traz algum inconveniente, ou porque não pode trabalhar, está com saudade da família, quer ir na igreja e não pode. Ele (Bolsonaro) martela esse discurso de que as pessoas podiam estar ‘livres'”, observa a pesquisadora, acrescentando que o combate ao isolamento social “sustenta um dos grandes argumentos” do governo.
“De que o Estado atrapalha nossa vida, que ele está para atrapalhar, intervir. Bolsonaro às vezes coloca isso em termos de uma ditadura, em que as medidas sanitárias seriam uma agressão à liberdade individual das pessoas. Isso é algo que culturalmente observamos e que tem sido bastante caro às pessoas”, pontua.
Liberdade individual x coletividade
A repetição desse argumento já se dá, por exemplo, com relação à vacina. O que revela, para Letícia, que o individualismo do brasileiro, algo já impregnado na cultura do país, vem sendo trabalhado de forma mais intensa pelo presidente da República. Tanto pela carga neoliberal, de defesa de redução do Estado, como pela “carga do passado desigual do Brasil”.
“O passado em que se acha normal que o Estado não faça nada para as pessoas. Que elas têm que voltar a trabalhar porque não têm outra opção. O Brasil tem todo um histórico de abandono de parte da população pelo Estado. É muito impressionante do meu ponto de vista e das pesquisas que tenho feito como de fato muitos brasileiros não esperam nada do Estado. Eles nem cogitam que o Estado deveria apoiar de forma mais decisiva e constante para fazerem o isolamento social e ficar em casa. Então são dois lados, o individualismo, esse desejo de liberdade individual, e junto uma desconfiança em relação ao Estado enquanto entidade coletiva que organiza a nossa sociedade.”
A antropóloga considera que as pessoas são “cada vez menos capazes de ver causalidades sociais”. “O próprio fato de as pessoas acharem que a vacina é uma opção individual demonstra um desconhecimento completo de como a própria lógica científica da vacina funciona. Não adianta algumas pessoas tomarem e outras não. A imunidade da vacina só pode ser coletiva, isso para qualquer vacina, não só a da covid-19. Mas é impressionante como esse nível social de causalidade não faz mais sentido para as pessoas, infelizmente.”
Dever do Estado É relativizado
A dubiedade em relação ao papel do Estado também justifica a indiferença de parte da população à relação do número de mortos pela covid-19. Essa “incapacidade de cogitar que poderia ter havido uma solução coletiva, organizada pelo Estado brasileiro, principalmente pelo governo federal”, como afere a pesquisadora, carrega ainda um certo “fatalismo” que Bolsonaro alimenta como “estratégia de comunicação”.
“Fazer o que, o vírus existe, ele está aí, não tem muito o que a gente possa fazer”, diz Letícia, referindo-se à retórica do presidente que rechaça o papel que deveria ser do Estado, de cuidar e proteger as pessoas. Bolsonaro adota um discurso oposto, quase “patriótico”, de que é preciso enfrentar o vírus com “coragem”, sem se “esconder em casa”. Ignorando as mais de 186 mil vidas perdidas na pandemia.
“Ele alimenta esse fatalismo que já é parte da herança da história brasileira junto a muitos segmentos da população, principalmente aqueles os quais o Estado nunca cuidou, pessoas que nunca viram essa entidade coletiva e não confiaram nela para cuidar delas e de suas famílias. É uma pena que ele alimente isso ao invés de tentar reverter, que era o que deveria fazer”, lamenta a antropóloga.