Há cem anos, a teoria da relatividade desencadeou uma polêmica soviética sobre a relação entre marxismo e ciência. O físico Boris Hessen recusou a visão tradicionalista e, a partir da dialética materialista, defendeu a abertura à nova física de Einstein. Foi uma das primeiras vítimas dos expurgos estalinistas. Russo, comunista, de origem judaica, Boris Hessen foi físico, filósofo e historiador da ciência. Foi uma das primeiras vítimas dos processos de Moscou, a purga estalinista que, além dos principais dirigentes da revolução soviética, eliminou grandes figuras intelectuais do país.
O volume “Einstein e Lenine em Moscovo - polémicas filosóficas da ciência soviética” (edição Parsifal), agora lançado, compila textos do cientista traduzidos por Rui Borges, que assina um ensaio introdutório. Rui Borges é doutorado em Física e tem um percurso académico que passou por universidades no Reino Unido, Irlanda e Brasil. Publicou em 2015 o ensaio “Boris Hessen, o cientista subversivo” (edição Ela por Ela).
Jorge Costa entrevista Rui Borges, Esquerda.net, 10 de julho de 2021
No seu livro apresenta a obra de Boris Hessen como estando em grande medida esquecida. Como se cruzou com ela?
Sempre me intrigou o que se teria passado no campo da física russa durante a revolução, um período de grande ebulição intelectual, no campo da literatura, das artes, etc. Ao longo do século XX, a física russa obteve grandes sucessos, três prémios Nobel em áreas fundamentais da física. Mas não se sabe grande coisa sobre o que se passou nesse período, para lá de toda aquela tragédia associada a Lisenko e ao seu papel na biologia e na agricultura soviéticas. Em leituras, cruzei-me certa vez com uma referência a Boris Hessen e ao seu artigo sobre Newton. Depois, foi puxar o fio à meada...
Nessa situação revolucionária, como é que os cientistas russos receberam a teoria da relatividade de Einstein?
Em toda a Rússia não haveria mais de cem cientistas dedicados à física quando se dá a revolução. Mas era um grupo com muitas relações internacionais e contacto com colegas no ocidente, que participava na elaboração teórica. A teoria da relatividade foi recebida com muito entusiasmo por uma nova geração de físicos formados já depois de 1917 - é o caso de Lev Landau, mais tarde prémio Nobel.
Por outro lado, houve também contestação da teoria. Aliás, por todo o mundo houve quem procurasse manter-se fiel ao passado, à física de Newton, etc. Em Portugal, foi o caso do geógrafo e aviador Gago Coutinho, que contestou a teoria da relatividade até à sua morte, em 1959. No ambiente muito politizado da Rússia pós-revolução, essa contestação teve contornos próprios. Este livro conta isso: como, no próprio Partido Comunista, este debate se torna importante. O físico Arkady Timiriazev mobilizou-se obsessivamente para tentar que o Partido Comunista rejeitasse oficialmente a teoria da relatividade.
Ao rejeitarem a teoria da relatividade e a mecânica quântica, alguns desses cientistas atribuíram-lhes a responsabilidade por uma “crise da ciência” resultante da corrosão das certezas anteriormente existentes. Essa crise levaria a um regresso a visões místicas ou religiosas. Esse recuo aconteceu mesmo ou foi apenas um argumento para atacar a teoria?
Ambos os campos deste debate falavam de uma “crise das ciências”, da qual tinham entendimentos diferentes. Boris Hessen não aplica esse termo aos resultados da ciência. Ele tinha uma postura pragmática: se a ciência nos revela algo inesperado e que contradiz as nossas intuições, o que há a fazer é verificar se está correto e, se estiver, aprender a viver com isso. Do outro lado, não havia este tipo de abertura e pretendia-se a pura rejeição da teoria. Considerava-se a teoria da relatividade uma abstração, uma tentativa de matematização da realidade que não corresponderia a nada de concreto. Propunham-se conservar a física do século XVIII e aprofundá-la.
Na Alemanha, físicos tão importantes como Lenard e Stark - ambos prémios Nobel, ambos filiados no partido nazi -, rejeitavam a teoria da relatividade: ela corresponderia, na sua tendência para a matematização e a abstração, ao “espírito judaico”. E necessário era desenvolver uma física “ariana” virada para a preparação da guerra. Mais tarde, na URSS, encontramos argumentos muito semelhantes aos dos físicos nazis, a consideração de que a física tinha de visar apenas objetivos práticos - neste caso, servir a concretização do Plano Quinquenal. Quando havia um esforço de industrialização para fazer, andar a falar de contrações do espaço e do tempo seria totalmente irrelevante.
Em diversas partes do mundo, a começar pelos Estados Unidos, o desenvolvimento científico está fortemente condicionado por dogmatismos religiosos. Esse confronto dos anos 1920 ajuda-nos a compreender estes regressos atuais a um certo anti-materialismo?
O ensino do criacionismo em alguns estados norte-americanos, colocado a par da teoria da evolução, mostra a influência de minorias ultra-reacionárias. Mas o que mais me preocupa é uma certa desilusão com a ciência que ganha terreno em setores mais vastos da sociedade. Essa desilusão resulta de, nas últimas décadas, se estar a defraudar a promessa de que o progresso da ciência corresponderia a um progresso na vida das pessoas. Creio que vem daí um certo ceticismo, desconfiança e apetência por teorias da conspiração, etc. Pelo contrário, há cem anos, na URSS como no ocidente, havia um grande otimismo sobre o progresso da ciência e os seus efeitos. Hoje isso não é tão líquido.
Voltemos aos anos 1920. Na Rússia também há quem reconheça a teoria de Einstein e proponha a partir dela todo um debate acerca da relação entre ciências naturais e marxismo. Boris Hessen é um desses físicos. Como é que a dialética marxista foi convocada ao debate sobre a teoria da relatividade?
Marx e Engels fazem parte de uma longa tradição intelectual de grande interesse pelos debates da ciência. Marx correspondeu-se com Darwin; Engels, sobretudo, acompanhou de perto a evolução científica e teve obra sobre filosofia da ciência - o livro “Dialética da Natureza(link is external)” só ficou inacabado porque Engels se dedicou, após a morte de Karl Marx, à edição de “O Capital”. Mais tarde, o próprio Lénine escreve sobre filosofia da ciência - o livro “Materialismo e Empiriocriticismo(link is external)” (1909). Há mesmo um curioso debate sobre ciência no partido bolchevique, debate que aliás leva a uma cisão no partido! É curioso que um debate sobre a estrutura da matéria e sobre o que é o universo pudesse levar a uma cisão, mas isso aconteceu… Boris Hessen insere-se nessa tradição, que preferia analisar os desenvolvimentos da ciência, assumir que o mundo não é o que parece (a ciência seria desnecessária) e integrar os resultados da ciência numa visão materialista do mundo.
Nos anos 20, um estudioso de Hegel, o filósofo Abram Deborin, reuniu um grupo dedicado ao estudo da dialética e das suas leis - unidade e conflito de opostos, a transformação da quantidade em qualidade, etc. Essa estrutura filosófica preparou aquele grupo para compreender que a ciência pode descobrir coisas muito estranhas e que isso não coloca em causa a essência do materialismo: o universo existe, a realidade material é exterior e independente da nossa consciência, das nossas ideias.
Na física de Newton, espaço e tempo são entidades separadas. O espaço é uma espécie de aquário onde está a matéria; o tempo é uma grandeza física totalmente independente de tudo o resto. Einstein vem demonstrar que o espaço e o tempo não são grandezas separadas, antes constituem um objeto único, a que ele chama espaço-tempo. A dialética de Hegel e Marx preparava as pessoas para essa evolução de conceitos. Neste caso, a evolução de dois conceitos inicialmente independentes e contrapostos que, mediante o estudo, se fundem num novo conceito, único, que supera os anteriores.
Com isto eles não estavam a confirmar a teoria da relatividade, sobre a qual tinham posições cautelosas e pragmáticas. Diziam apenas que a teoria não era, de todo, incompatível com a dialética materialista de Marx e Engels. E quem achasse que a teoria da relatividade estava errada, não resolveria o problema com artigos no Pravda. Tinha que estudar física, fazer experiências e provar que a teoria estava errada. Se não o conseguisse, tinha de a aceitar e aceitar que o mundo é assim. A validação da teoria da relatividade não podia ser uma decisão do partido!
Estamos nos anos da paulatina ofensiva de Estaline, antes ainda da consumação da sua contrarevolução com os processos de Moscovo e a eliminação física dos próprios dirigentes da revolução de outubro. Por enquanto é a “luta em duas frentes”, contra a chamada oposição de direita (Bukharin) e a oposição de esquerda (Trotsky). Até que ponto é que a polémica sobre a relação entre marxismo e ciência é contaminada pela luta política no PCUS?
Até 1929, este era um debate genuíno sobre questões de filosofia da ciência. As tentativas de colá-lo à disputa política são posteriores. O primeiro Plano Quinquenal iniciou-se em 1928 e Estaline começa a sua campanha para que todo o universo académico, técnico e científico seja envolvido diretamente na concretização do Plano. Só nessa fase surge a proximidade entre o debate científico e político, com a entrada em cena daqueles jovens que se apresentam como “bolchevizadores” da filosofia soviética. Relatividade e mecânica quântica são, para eles, coisas irrelevantes; quem está interessado na construção do socialismo não discute o espaço-tempo, discute a industrialização. É assim que o debate é envenenado e terminado.
É também verdade que no campo em que se incluía Boris Hessen, havia muita gente ligada às oposições. Para se ter uma ideia: nove dos dez autores de “A luta em duas frentes na filosofia”, texto de 1930 (um dos últimos desta polémica e que traduzi para este livro), foram assassinados em 1936 logo no início dos processos de Moscovo. Entre eles, Hessen. O filósofo Deborin é o único que se salva, depois de uma humilhante autocrítica em que denunciou como erros tudo o que tinha dito e feito até então. Mas há muito que a controvérsia já não podia ser muito explícita. O primeiro texto de Boris Hessen sai em 1927, que é já o ano em que Trotsky, Kamenev e Zinoviev são excluídos do Comité Central.
Durante décadas, este debate ficou submerso sob a vulgata estalinista. O próprio materialismo dialético como filosofia acabou por ser associado à ditadura e ao totalitarismo. O que perdura dele?
Este debate foi esquecido, os seus protagonistas foram liquidados e, enquanto existiu a URSS, o estudo daquela época não foi feito. Só depois, alguns académicos russos voltaram a estudar este período. Curiosamente, nos anos 60, o governo norte-americano (que queria conhecer o seu inimigo) enviou alguns académicos para fazerem pesquisa nos arquivos científicos em Moscovo, no âmbito de protocolos de colaboração entre universidades. Disso resultaram alguns comentários aos debates dos anos 20, mas os textos originais só agora estão a ser republicados. Excetuando a conferência “As raízes económicas e sociais dos Principia de Newton”, publicado em inglês logo em 1931, todos os outros textos eram praticamente desconhecidos.
O ressurgimento do interesse por este debate liga-se a duas ideias. Uma é a que contraria a concepção da ciência como atividade pura, que na sua bolha não é contaminada pelo que se passa na sociedade. Esta leitura estuda a ciência apenas à luz dos seus desenvolvimentos internos: o senhor X avançou a teoria tal, que foi corrigida neste ponto pelo senhor Y, etc. O que Hessen diz em Londres é que a ciência é uma atividade que faz parte do processo social e, como tal, está sujeita ao que se passa na sociedade e é influenciada por questões históricas, económicas, políticas, culturais. Esta discussão está longe de estar terminada, mas foi lançada por aquele ensaio, um texto que mudou o paradigma da filosofia das ciências.
A outra ideia é a do “emergentismo”, o estudo das propriedades emergentes, um campo de estudo muito atual em várias ciências e, em particular, na física. Quando temos um sistema constituído por muitos elementos, muitos indivíduos, muitas parcelas, surgem, da interação dessas parcelas, propriedades novas que não existiam nas parcelas em si. Em linguagem corrente, “o todo é maior que a soma das partes”. Isto nada tem de místico e hoje é cada vez mais aceite que é realmente assim que a natureza funciona, por níveis de complexidade.
Este debate foi feito com muito rigor e vivacidade naquela altura e hoje continua, em oposição ao “reducionismo”, a ideia de que podemos compreender uma realidade complexa se a reduzirmos às suas componentes e as estudarmos. Ora, isso não basta para compreender um sistema complexo. Eu posso encontrar as propriedades características de um neurónio com métodos da biologia celular, da bioquímica, e perceber trocas químicas com exterior, como circulam impulsos elétricos, etc. Mas se eu juntar muitos milhões de neurónios e fizer um cérebro (isto soa algo frankensteiniano!) surge uma série de coisas que não existem no neurónio. Por exemplo, a consciência, os sentimentos, a sensibilidade. Não são propriedades transcendentes, mas sim surgidas da complexidade das interações entre todas estas células. E é por isso que a psicologia nos permitirá compreender coisas a um nível que a bioquímica não permite atingir.
Há cem anos, esta discussão era muito precoce - a questão das propriedades emergentes só se tornou campo de discussão e atividade científica por volta dos anos 1970, meio século depois dos debates russos sobre os fenómenos da vida à luz das leis da dialética. Alguns dos artigos que incluí no livro abordam a termodinâmica ou a mecânica estatística precisamente desta perspetiva. Eles não falavam de propriedades emergentes, mas sim da transformação da quantidade em qualidade, o que é exatamente a mesma coisa. A discussão atual talvez possa ser enriquecida pelo conhecimento dos textos de Boris Hessen e do grupo de que fez parte.
Jorge Costa é deputado e dirigente do Bloco de Esquerda. Jornalista.