Os estereótipos da Guerra Fria limitaram a compreensão da política europeia do pós-guerra. Dos dois lados da cortina de ferro, a libertação do nazismo libertou um espírito de democracia radical que poderia ter conduzido a um caminho diferente. Não fora a intervenção das super-potências.
Gerd-Rainer Horn, Esquerda.net, 16 de janeiro de 2021
Socialism Across the Iron Curtain é um livro importante. Esta monografia de Jan De Graaf questiona a forma habitual como os historiadores tradicionais retrataram um momento crucial na história europeia do século XX.
O trabalho de De Graaf cobre o período pós-libertação de 1944 a 1948, focando-se na evolução dos partidos socialistas (ou social-democratas) nestes anos conturbados. Cobre quatro países em particular, dois em cada um dos lados da divisão da Guerra Fria – França, Itália, Polónia Checoslováquia – e oferece uma reavaliação há muito devida de duas narrativas generalizadas.
Uma ortodoxia enganosa
Os historiadores habitualmente apresentam os partidos socialistas da Europa como tendo sofrido uma evolução mais ou menos linear desde o tempo de August Bebel até ao de Tony Blair. Esta perspetiva representa a social-democracia, originalmente um produto de lutas sociais amargamente travadas nos finais do século XIX, como uma família política que se foi moderando gradual mas continuamente.
De acordo com este ponto de vista, os partidos socialistas entraram pela primeira vez em governos de coligação com forças mais conservadoras numa escala generalizada no decurso da Iª Guerra Mundial. Depois desta, o período entre guerras assistiu a uma adoção da sua parte de um sentido crescente de “responsabilidade nacional”. A maior parte das secções da Internacional Socialista passaram de ser oponentes do status sócio-político, influenciadas pelo marxismo, a defensoras cada vez mais entusiastas deste mesmo sistema. Trocaram a batalha pela revolução social pela procura de meras reformas sociais dentro das limitações do paradigma dominante.
Obras de referência da análise histórica e das ciências sociais – De Graaf refere-se com frequência a Dietrich Orlow e Sheri Berman como defensores proeminentes desta linha – identificam o período que se abriu com a derrota do império Nazi em 1945 como um momento no qual a social-democracia moderou ainda mais a sua personalidade política. Isto implicava dar apoio total aos projetos da elite que pretendiam preservar o capitalismo – apesar de com um rosto mais humano – em vez de substitui-lo por algo completamente diferente.
A segunda narrativa desafiada por De Graaf considera a divisão da Guerra Fria decisiva para moldar a política europeia depois de 1945. Os retratos das tradições políticas em tais estados europeus habitualmente consideram evidente que o fosso emergente entre os dois blocos determinava quase tudo.
Para os partidos socialistas, isto significava que as organizações de leste europeu ligadas à esfera da Internacional Socialista evoluíram para se tornarem apoiantes da linha de Moscovo sobre a Guerra Fria, enquanto os movimentos da Europa Ocidental aderiram às presumíveis vantagens da “liberdade e democracia” e finalmente ao Plano Marshall dos EUA.
Transcendendo a Cortina de Ferro
Jan de Graaf ataca os dois mitos historiográficos através de uma análise comparativa transnacional extremamente rica das ações e debates nos meios socialistas destes quatro países escolhidos. Descobre que as tentativas de “aplicar modelos universais à história do socialismo europeu do pós-guerra” constitui uma interpretação errada motivada ideologicamente da realidade histórica.
Os partidos socialistas abrigavam propensões radicais numa fase muito mais tardia do que as visões convencionais indicariam e a divisão entre as tendências moderadas e radicais não podem ser mapeadas de acordo com o cisma da Guerra Fria entre leste e ocidente.
Como De Graaf conclui na página final do seu livro:
“Se quisermos compreender verdadeiramente o socialismo europeu do pós-guerra e, por extensão, a Europa do pós-guerra, temos de transcender a Cortina de Ferro que ainda existe na historiografia.”
De Graaf, aproveitando a sua familiaridade tanto com as línguas ocidentais como com as línguas eslavas, colige uma quantidade impressionante de dados empíricos que mostram que o momento da libertação, entre 1944 e 1948, foi um período de profunda agitação social. Esta foi alimentada pelas desigualdades crescentes e o falhanço dos governos pós-guerra em providenciar padrões de vida decentes depois dos anos de sacrifício e abusos pesados sob a dominação nazi.
Também ganhou força com um espírito de revolta contra as políticas autoritárias, verticais, implementadas em cada um dos quatro países que De Graaf examina. Rebeliões incipientes abertamente enfrentaram as coligações governamentais nos respetivos estados, todas incluindo partidos socialistas:
“Este padrão de trabalhadores militantes de base criticando os seus dirigentes por estarem a falhar em suprir as suas necessidades quotidianas repetir-se-ia sucessivamente durante os meses e anos seguintes. A acusação comum era que os dirigentes políticos e sindicais estavam tão imersos na alta política e na gestão macro-económica, agora que se estavam finalmente a partilhar o poder, que tinham perdido de vista os problemas reais que assolavam as pessoas que eles representavam.”
Para De Graaf, esta situação explosiva deixava os trabalhadores “com a impressão de uma classe dominante preocupada antes de mais em cerrar fileiras sob si própria”. Nestes quatro países, os dirigentes socialistas foram acusados de conluio com o comunismo mas também com as forças políticas e económicas mais conservadoras.
Dois campos socialistas
De Graaf mostra que o socialismo europeu em meados de 1940 estava de facto profundamente dividido quanto ao caminho a seguir. A nível da direção, os partidos socialistas europeus estavam divididos em dois campos amplos. Um campo apostou na tentativa de alargar a atração destes partidos para além dos seus tradicionais meios da classe trabalhadora. Tal abertura para uma aliança com a classe média, apesar de mal definida, ia a par com uma adesão por princípio às regras e regulamentos da democracia parlamentar.
Os dirigentes que pertenciam a este primeiro campo opunham-se firmemente aos apelos a uma forma mais participativa de democracia baseada em instituições democráticas de base ou à democratização da vida económica. Eram ainda mais apegados a uma linha de moderação e de paz com o poder político e económico ao qual os seus partidos iriam brevemente pertencer.
Os apoiantes do segundo campo, por outro lado, continuavam a sublinhar a pertença à classe trabalhadora dos partidos socialistas. Eram mais abertos às instâncias práticas da democracia participativa, amplamente espalhadas no momento da libertação, e não depositavam as suas esperança no quadro dos parlamentos tradicionais e das constituições.
Nenhum dos partidos examinado em detalhe por De Graaf – franceses, italianos, polacos, checoslovacos – se alinhou claramente a qualquer um destes dois campos e todos tinham correntes minoritárias. Mas no geral, como De Graaf demonstra de forma convincente, faz sentido dividir os quatro partidos em dois grupos de dois, que não correspondiam aos blocos emergentes da Guerra Fria. Os franceses e checoslovacos aderiram a um campo mais moderado, os italianos e polacos a um campo mais radical.
De Graaf prossegue localizando a causa desta divisão entre os movimentos que escolheu nas suas experiências contraditórias com a democracia parlamentar. Esta forma política tinha demonstrado o seu valor como garante dos direitos fundamentais, incluindo os direitos dos trabalhadores na França e Checoslováquia do período entre as duas guerras mundiais. Nestes países, o domínio autoritário só ganhou vantagem mesmo no final deste período como resultado da agressão nazi.
Em contraste, os socialistas na Polónia e Itália não tinham razões para depositar as suas esperanças nos parlamentos, nas constituições ou no papel supostamente estabilizador dos partidos e meios sociais da classe média, tendo tido já a experiência do triunfo dos regimes autoritários nos anos 1920, muito antes do início da IIª Guerra Mundial.
Esta é uma observação importante, baseada numa análise próxima e engenhosa de quatro diferentes culturas e tradições políticas nacionais e mostra como os estereótipos da Guerra Fria nos impedem de compreender a dinâmica política da época.
Mas devemos também assinalar alguns lacunas no quadro de De Graaf deste momento da história europeia.
Ele está bem ciente dos vários desafios radicais que emanavam da base para o status quo pós-libertação. Contudo, Socialism Across The Iron Curtain não olha em detalhe para o que está verdadeiramente a acontecer no chão da fábrica ou nessas vastas porções de território libertadas pela resistência e não pelos exércitos aliados.
Um episódio negligenciado
O recente 75º aniversário das celebrações do Dia da Vitória continuou a tradição de sublinhar a proeza militar das forças aliadas – nomeadamente das da Europa Ocidental – e diminuir a contribuição dos movimentos de resistência. O Dia D na Normandia recebeu bem mais atenção do que a libertação da Itália numa campanha que durou quase dois anos ou o segundo desembarque aliada nas costas francesas, em agosto de 1944 na Côte d’Azur. Entretanto, o derramamento de sangue incrível do Exército Vermelho na frente leste foi consistentemente relegado para segundo plano.
Não se pretende negar a contribuição central destas campanhas militares aliadas – incluindo a soviética – para a derrota do nazismo. Mas até o olhar mais superficial para os acontecimentos no terreno em Itália e em França conta-nos uma história suplementar importante que atualmente está largamente esquecida. Poucos cidadãos da França contemporânea, por exemplo, têm consciência que foram as unidades militares da resistência que libertaram efetivamente cerca de metade do território francês – apesar desta ação ter surgido no seguimento de vitórias aliadas noutros lados.
Vastas zonas de França a sul do Loire e ocidente do Ródano nunca viram um soldado aliado, para além do ocasional oficial de ligação lançado de paraquedas para estabelecer contacto com as forças da resistência.
A libertação do sul de França incluiu operações significativas, como o cerco e captura, por parte de oito centenas de membros da resistência, da cidade de Limoges com a sua bem defendida guarnição alemã, sob a liderança de “Limousin Tito,” Georges Guingouin.
Quando o segundo desembarque dos aliados em França começou, os seus comandantes previram que iriam levar três meses a alcançar Grenoble. Contudo, como um dirigente chave da resistência nesta região, Alain Le Ray, recorda: “cobriram a distância em sete dias sem quase nenhum incidente.”
A resistência tinha aberto o caminho para as tropas aliadas chegarem rapidamente ao norte. Com apenas algumas exceções como a própria Grenoble, os maiores centros populacionais na vasta zona entre o Lago Geneva, o Vale do Ródano, e a fronteira italiana foram libertados pela resistência, algumas vezes agindo muito antes das forças aliadas. Houve uma situação muito similar em Itália a norte da Toscana.
Aqui, a resistência também estava firmemente implantada nas áreas urbanas. De todo o norte de Itália até ao oeste de Bolonha, insurreições urbanas cuidadosamente planeadas e batalhas de guerrilha libertaram vilas e cidades, incluindo o chamado triângulo industrial que abarca Milão, Turim e Génova. Quando as tropas dos EUA chegaram a Génova, apenas podiam já expressar a sua admiração entrando num enorme porto da cidade um dia após a sua libertação: “um trabalho maravilhoso!”
Comités de Libertação
A resistência agiu de forma a preencher o vazio de poder deixado pela retirada nazi, implementando corpos representativos de base chamados Comités de Libertação, que ganharam forma em cada vila ou cidade, pequena ou grande, em muitos bairros urbanos, e até em aldeias.
Empreenderam uma reconstrução inicial da vida política, da atividade económica e da infraestrutura social no norte de Itália e em grande parte do sul de França.
Um relatório dos Serviços Estratégicos do US Office – o precursor da CIA – descreveu a cena em Florença:
Quando os exércitos aliados chegaram a Florença, encontraram, pela primeira vez numa grande cidade italiana, uma organização administrativa quase completa, implementada por determinadas e significativas forças anti-fascistas. Um sistema provisório, trabalhado até ao último detalhe, funcionava já como uma autoridade reconhecida de facto sob os auspícios do Comité de Libertação Nacional da Toscana, que se vê como legítimo representante do governo italiano e aspira a reconhecimento aliado como tal.
Os Comités de Libertação eram os únicos corpos representativos efetivamente existentes no momento da libertação numa área enorme, tendo sido constituídos por uma aliança de forças políticas desde o centro-direita até à esquerda radical.
As estruturas capilares dos Comités de Libertação, locais, regionais e nacionais operavam também dentro de fábricas e outras empresas. Entre outras coisas, deram uma contribuição vital para as reparações físicas que eram necessárias depois dos combates. Além disso, tais Comités de Libertação de fábrica ou empresa faziam o seu trabalho no espírito do controlo operário ou até da auto-organização dos trabalhadores.
Muitas vezes não tinham outra escolha senão fazê-lo, uma vez que os donos ou gestores dos seus lugares de trabalho tinham sido colaboradores entusiastas do nazinsmo que tinham fugido ou que estavam escondidos. Esta densa rede de comités de local de trabalho, trabalhando em conjunto com comités organizados territorialmente, davam uma demonstração prática do potencial de iniciativas da classe trabalhadora que existiu durante algum tempo após a libertação
Em França, centenas de comités de fábrica pontuavam o mapa: tinham uma presença mais forte nas regiões do sul mas não estavam de todo ausentes nas outras regiões. Os comités italianos estavam mais disseminados do que os franceses. Delegados regionais dos caminhos de ferro encontravam-se repetidamente para desenhar um plano de ação para o seu setor. Delegados das maiores empresas de Génova e arredores, um crucial polo industrial e dos transportes, encontravam-se regularmente para determinar o futuro. Estes comités de empresa tinham também forte implantação nos setores de emprego de colarinho branco como a banca e os seguros.
Estruturas de Representação
Esta onda elementar de aspirações democráticas e energias criativas alimentou as críticas radicais da política pós-libertação em França e Itália que Jan De Graaf tão bem descreve. Contudo, o livro de De Graaf não faz justiça às redes de base que criaram a base desta posição.
Apesar do autor, justiça lhe seja feita, aludir aos Comités de Libertação em ambos os países, refere-se-lhes como “dominados pelos comunistas” sem documentar esta asserção. De Graaf também reproduz acriticamente a opinião dos políticos socialistas franceses, que aparentemente acreditavam que “o movimento de conselhos pós-guerra, ao invés de democratizar a vida política e económica, muitas vezes representavam a lei da selva”.
De facto, os Comités de Libertação territoriais atribuíam lugares numa base escrupulosamente igualitária entre todas as organizações locais relevantes. Forças conservadoras habitualmente recebiam uma porção de representação que excedia em muito o seu papel efetivo na resistência.
Os comunistas tiveram uma forte presença nos Comités de Libertação de fábrica, mas geralmente não por terem tentado dominar ou manipular estas estruturas.
Há muitos relatos nos arquivos de ativistas locais desesperados a tentar encontrar alguém para representar o Partido Liberal Italiano, por exemplo – uma organização anti-fascista mas também empenhada na ideologia do mercado livre. Na maior parte das vezes não foram bem sucedidos, uma vez que era difícil encontrar tais defensores do liberalismo económico, até numa fábrica com milhares (às vezes até dezenas de milhares) de trabalhadores de colarinho azul.
De Graaf não entende o papel e função destes comités na política francesa e italiana e acaba por dar notícia destes episódios de democracia de base de uma forma imerecidamente negativa. Isto ajuda a explicar a sua inclinação para o campo moderado do socialismo europeu no momento da libertação.
Claro que é o direito de um autor – e até talvez o seu dever – mostrar as suas cores políticas, mas isto faz-se melhor num campo de jogo equilibrado. Enquanto historiador consciencioso que é, De Graaf reconhece a diversidade de modelos sociais que foram promovidos pelas diferentes tendências do socialismo europeu e o facto de transcenderem a divisão da Guerra Fria. Mas acaba por denegrir os caminhos mais radicais com base em julgamentos pouco fundados e por vezes em inexatidões factuais.
A questão de se os socialistas polacos e italianos eram verdadeiramente convictos defensores dos comités de fábrica é mais ampla e não lhe podemos fazer justiça aqui. A dado ponto, De Graaf cita a avaliação de Peter Heumos, um historiador importante do socialismo do leste europeu, que argumentava que os socialistas checoslovacos estavam longe de serem consistentes no apoio à democracia de base depois da libertação. A minha própria investigação acerca das atitudes dos seus pares italianos espelha as descobertas de Heumos.
Farei uma observação final: no seu esforço para demonstrar o alinhamento dos partidos sosicalistas aos campos moderado e radical que cortam a linha da Guerra Fria, De Graaf por vezes vai longe demais de forma a estabelecer uma compartimentação clara, mas mais uma vez não há aqui espaço suficiente para entrar em detalhes sobre este ponto. Contudo estas críticas não nos devem desviar a atenção do reconhecimento da contribuição vital de Socialism Across the Iron Curtain para a historiografia. É um livro que merece uma leitura cuidadosa e ampla.
Gerd-Rainer Horn é Professor de História na Sciences Po, de Paris, e autor de The Moment of Liberation in Western Europe: Power Struggles and Rebellions, 1943–1948. Texto publicado na revista Jacobin(link is external) enquanto crítica do livro Socialism Across the Iron Curtain: Socialist Parties in East and West and the Reconstruction of Europe after 1945 de Jan De Graaf (Cambridge University Press, 2019).Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.