Stephen R. Shalom entrevista Gilbert Achcar, New Politics / Esquerda.net, 5 de maio de 2021.
Gilbert, publicaste recentemente um artigo muito discutido no The Nation sobre anti-imperialismo.[1] Será que podes começar por dizer porque o escreveste e resumir brevemente os teus argumentos?
Gilbert Achcar: Obrigado, Steve. Escrevi este artigo por causa da grande confusão que existe atualmente na esquerda acerca do significado de “anti-imperialismo.” Acredito que esta confusão é, em primeiro lugar, um resultado da mudança de maré na situação global que se seguiu ao colapso da URSS. Tem havido também uma mudança do tipo de guerra travado no Sul Global. As guerras imperialistas contra os movimentos nacionais de libertação ou os seus regimes já não são o tipo predominante, como o foram nas primeiras décadas depois da Segunda Guerra Mundial. Desde os anos 1990 assistimos a guerras imperialistas contra regimes opressivos como no Iraque, nos Balcãs e no Afeganistão. A situação torna-se ainda mais complicada que o que se tem chamado a Primavera Árabe em 2011. Os poderes imperialistas ocidentais – Barack Obama dos Estados Unidos em primeiro lugar – surgiram como se fossem apoiantes das rebeliões populares contra regimes ditatoriais.
Então, o que significa ser anti-imperialista neste novo ambiente internacional? É esse o tema com que lido neste artigo, resultado do meu longo envolvimento pessoal em tais debates, começando mais crucialmente a partir de 2011 sobre o tema da Líbia e depois sobre a Síria. O meu título original era “O anti-imperialismo deles e o nosso”.[2] Formulei três princípios básicos do que constitui um anti-imperialismo verdadeiramente progressista do meu ponto de vista, princípios que deveriam ser bastante básicos para qualquer pessoa de esquerda, seja qual for a sua orientação ideológica, marxista, anarquistas, ou qualquer outra, desde que adiram ao princípio mais elementar da verdadeira esquerda que é a democracia. Quem concordam com estes princípios pode discutir táctica anti-imperialista. Alguns, porém, descartam-nos. Chamo a estas pessoas “neo-campistas” porque já não se alinham sistematicamente com um Estado específico ou um “campo socialistas” como o faziam os campistas na altura da URSS mas determinam as suas posições negativamente através de uma oposição automática a tudo o que os governos dos EUA ou do Reino Unido façam e simpatia para com quem quer que se oponha a estes dois governos, incluindo regimes despóticos e o imperialismo rival da Rússia. Os neo-campistas são muitas vezes incapazes de debater sem recorrer a invetivas e a calúnias. Concluí o meu artigo com esta observação e, na verdade, assim que saiu, vários neo-campistas se apressaram a confirmá-lo.
Agora, o que são estes três princípios? O primeiro diz respeito àquele princípio democrático mais elementar que já mencionei. Quando se trata de política internacional, ser de esquerda significa, antes de mais, apoiar o direito dos povos à auto-determinação. Isso deveria ser o ponto de partida que define um anti-imperialismo verdadeiramente progressista. Crucialmente, este ponto de partida não é de oposição per se a este ou aquele estado imperialista. É, em vez disso, a defesa do direito dos povos à auto-determinação: é porque os estados imperialistas, por definição, atropelam este direito que devem enfrentar oposição.
O segundo princípio é que o anti-imperialismo requer oposição a todos os estados imperialistas, não apoiar uns contra outros, ou ignorar um e as suas vítimas e focar-se apenas noutro, qualquer que ele seja. Há esquerda, nos países ocidentais, há neo-campistas que apenas se focam nos EUA e no imperialismo britânico, ou no imperialismo ocidental em geral, e ignoram, na melhor das hipóteses ou até mesmo apoiam, outros estados imperialistas como a Rússia. Pode-se encontrar o inverso na Rússia: progressistas que são muito hostis ao que o seu governo faz no estrangeiro e permanecem em silêncio, quando não apoiam, o que governos ocidentais fazem. Quando olhamos para além do ocidento-centrismo de muita da esquerda do ocidente, compreende-se que uma perspetiva anti-imperialista verdadeiramente internacionalista é a que se opõe ao imperialismo seja qual for a sua nacionalidade ou posição geográfica, a Ocidente ou a Leste.
O terceiro princípio diz respeito a casos excecionais. Podem haver circunstâncias excecionais nas quais uma intervenção de um poder imperialista seja crucial para impedir um massacre ou um genocídio ou para impedir que um levantamento democrático popular seja suprimido de forma sangrenta por uma ditadura. Assistimos a casos deste tipo em anos recentes. Mas até nestes casos, os anti-imperialistas devem dissipar quaisquer ilusões e advogar que não haja confiança alguma no país imperialista. E devem exigir que esta intervenção permaneça limitada nas suas formas, vinculada a restrições legais quando existam, que não permitam que o poder imperialista imponha a sua vontade ou determine o curso das ações.
Este terceiro princípio explica porque, nos casos da Líbia e da Síria, apesar de os governos ocidentais fingirem estar do lado da mudança democrática contra o regime ditatorial reacionário, me opus à intervenção direta. A única exceção foi no início da zona de exclusão aérea autorizada pela ONU na Líbia quando, expliquei, de forma a impedir um massacre esperado, não me poderia opor à intervenção na sua fase inicial. Expliquei milhares de vezes que nunca disse que apoiava a intervenção – mas, como sabemos, não há ninguém tão surdo quanto aqueles que não querem ouvir. Apenas disse que não me poderia opor a esta, o que não é o mesmo de dizer que a favorecia, exceto para aqueles que não conhecem a diferença entre abster-se e apoiar ou que preferem ignorá-la deliberadamente porque a sua forma de argumentar é através da distorção dos pontos de vista das pessoas com quem discordam.
A população da segunda maior cidade da Líbia, Benghazi – temendo legitimamente pelas suas vidas, com o regime líbio a movimentar as suas muito superiores forças em direção à cidade e o ditador, Gaddafi, jurando que os ia esmagar – imploraram a proteção das Nações Unidas. Até Moscovo e Pequim não se podiam opor a isto: ambas se abstiveram no Conselho de Segurança da ONU. Mas uma vez acabado o perigo imediato, fui contra a continuação do bombardeamento da NATO, que foi muito além do mandato da ONU. A minha atitude foi a mesma na Síria logo desde o início, ou seja apoiar a entrega de armas defensivas aos insurgentes de forma a proteger a população. Não defenderia a entrega de armas a uma organização como o ISIS, por exemplo, uma vez que é tão opressor como o regime, se não mais ainda, mas certamente apoiei a entrega de armas às forças curdas na Síria ou aquilo que foi o Exército Livre Sírio antes de ser controlado pelos turcos a partir de 2016.
Sou contrário à presença de tropas dos EUA no terreno, até no nordeste da Síria controlado pelos curdos, que é onde estão estacionadas atualmente. Na verdade, sou contrário a todas as cinco ocupações da Síria – por ordem cronológica: Israel, Irão e os seus aliados, Rússia, Turquia e os Estados Unidos. Estes cinco estados têm tropas em território sírio. Oponho-me a todas estas ocupações e apoio o direito do povo sírio a uma auto-determinação democrática, não o direito de um regime assassino de trazer cúmplices para o ajudar a massacrar o seu próprio povo, que é o que alguns neo-campistas apoiam.
Permite-me explorar estes três princípios um pouco mais. Algumas críticas podem dizer algo do género: mas e então as mudanças de regime? Não têm os EUA um programa de mudança de regimes por todo o mundo – na Ucrânia, nos Balcãs, no Mar do Sul da China e na província de Xinjiang? Não dever-nos-íamos opor a esse programa de mudança de regimes?
“Mudança de regime” é uma frase que foi usada pela administração Bush. Tanto quanto sei, não foi usada desde então. A frase usada pela administração Obama face à Primavera Árabe era “transição ordeira”. E isto é muito diferente de uma “mudança de regime” à moda de Bush. Esta última significa ocupação de um país de forma a mudar a sua forma de governo, habitualmente sob o pretexto de trazer a democracia. Isto é típico do domínio de tipo colonial a que nos devemos opor resolutamente – mesmo que fosse no caso de um estado terrivelmente totalitário como o da Coreia do Norte. Mas a “mudança de regime” não foi a linha da administração Obama. Algumas pessoas à esquerda estão uns passos atrás da realidade, sempre a travar a guerra anterior. Os métodos e a doutrina do imperialismo dos EUA mudaram efetivamente à luz do desastre iraquiano, tal como tinham mudado antes disso a seguir ao Vietname.
A “transição ordeira” pode ser vista como a verdadeira doutrina de Obama: significava que nenhum estado existente deveria ser desmantelado. O aparelho de estado deveria ser mantido intacto, em vez de permitir o tipo de desmantelamento que a ocupação dos EUA tinha implementado no Iraque, que passou a ser visto em Washington como a razão principal para o desastre subsequente da ocupação norte-americana. O que Obama favoreceu em todo o Médio Oriente Norte de África foi um compromisso entre o velho regime e a oposição, abrindo o caminho para uma transição que preservasse a continuidade do Estado. Pressionou os militares no Egito em 2011 para este tipo de transição. Tentou dirigir os acontecimentos da Líbia nesta direção mas falhou completamente, uma vez que o estado foi completamente desmantelado. Apoiou a mediação das monarquias do Golfo para obter esse resultado no Iémen. E era isso que advogava para a Síria, declarando abertamente em 2012 que apoiava a “solução iemenita” para este país. O que é esta “solução iemenita”? Foi um compromisso entre o chefe do regime e a oposição mediado pelas monarquias do Golfo: o presidente iemenita demitiu-se, entregou a presidência ao vice-presidente mas continuoou a controlar algumas das principais alavancas do poder no país. Era essa a “solução” que Obama preferia para a Síria.
Agora, qual foi a mais importante intervenção da administração Obama na Síria? Para responder a esta questão, comparemos a sua atitude com a oposição síria com a forma como os Estados Unidos lidaram com os mujahideen que lutaram contra a ocupação soviética no Afeganistão. Washington apoiou-os, junto com o reino saudita e o exército paquistanês. É bem conhecido que os armou com mísseis anti-aéreos Stinger. Compare-se isso com a Síria. Não apenas os Estados Unidos não entregaram tais armas à insurreição síria – mesmo em 2012, quando ainda era dominada pelo que podemos descrever como a oposição democrática. Mas até proibiu todos os seu aliados regionais de entregar tais armas aos insurgentes sírios. A Turquia produz mísseis Stinger sob licença dos EUA, mas não lhe foi permitido entregar nenhum à oposição síria – nem o puderam fazer as monarquias do Golfo. Esta foi a intervenção crucial dos Estados Unidos no conflito sírio. E foi isso que permitiu que o regime de Bashar al-Assad continuasse no poder. Permitiu-lhe manter o monopólio do poder aéreo, que fez com que o seu regime lançasse bombas de barril de helicópteros – um tipo de bombardeamento indiscriminado e devastador. Os helicópteros são um alvo fácil para as armas anti-aéreas e, contudo, quantos helicópteros foram abatidos pela oposição na Síria? Quase nenhum. A razão para esta intervenção dos EUA foi, em primeiro lugar, a oposição de Israel à entrega de mísseis anti-aéreos à oposição síria e, em segundo lugar, o medo de Obama de criar condições para uma derrota das forças do regime sírio que conduzisse ao colapso do Estado da mesma forma que isso aconteceu na Líbia.
Assim, a administração Obama de facto ajudou Bashar al-Assad muito mais do que o fez com a oposição síria. O Irão compreendeu isto a aumentou a sua intervenção na Síria através dos seus aliados a partir de 2013, confiante de que Obama não faria nada sério para o prevenir ou para aumentar qualitativamente o seu apoio à oposição. Obama confirmou isso em 2013 através da forma como recuou na famosa “linha vermelha” traçada no uso de armas químicas pelo regime. Depois, em 2015, a Rússia interveio massivamente. Então, temos dois estados reacionários, o Irão e a Rússia, a intervir no conflito sírio numa escala muito mais massiva do que qualquer poder ocidental. Não há nenhuma forma de conseguir alegar o contrário, a não ser que se distorçam completamente os factos. Junte-se a isto que a principal intervenção armada dos EUA na Síria, que incluiu o uso de tropas no terreno, foi na verdade ao lado da única força de esquerda envolvida no conflito que é o movimento curdo. Isso é algo que o neo-campismo não consegue compreender.
A Rússia é um poder imperialista menor. Alguém pode responder-te: se há um poder imperialista menor e um maior, não fará sentido focar a nossa atenção em parar o poder imperialista maior?
Bem, essa é a lógica do mal menor, objeto de uma longa história de debates. Contudo, consideremos o que significa falar num mal menor. Não um que seja menor em tamanho mas que seja menos perigoso, menos pernicioso, menor “mau” que o outro. Assim, uma força dominante capitalista liberal poderia ser construída como o um mal menor do que a fascista mais fraca. A essa luz, não penso na realidade que a Rússia seja de qualquer maneira um “mal menor” do que os Estados Unidos. A Rússia esmagou o povo checheno no interior do seu próprio território entre 1994 e 2009 de formas que certamente não são menos brutais, se não forem mesmo mais brutais, do que as utilizadas pelos Estados Unidos no Iraque no mesmo período. Ambos foram crimes enormes. Para além disso, o governo russo é muito mais autoritário e anti-democrático do que os EUA. O imperialismo dos EUA pode ser travado através de ação de massas. O imperialismo russo não permite que nenhuma oposição de massas se construa. Há, então, vários pontos que tornam a caracterização da Rússia como “mal menor” vazia de sentido. E mesmo que a economia russa seja uma anã comparada com a dos Estados Unidos, e a China aliás, o exército russo é uma parte muito maior na balança de poderes militares globais do que a economia russa é na economia global e está cada vez mais agressiva na projeção do seu poder fora de fronteiras.
Olhemos para o que a Rússia está a fazer hoje na minha parte do mundo – desculpem-me outra vez por me virar para a minha parte do mundo e por não olhar para tudo da perspetiva de Nova Iorque ou de Londres. O que está a Rússia a fazer hoje em dia no Médio Oriente e no Norte de África? Tem desempenhado e desempenha ainda um papel central no apoio ao regime sírio, uma das ditaduras mais assassinas da região, e é responsável ela própria por uma grande parte da destruição, mortes e carnificinas que ocorreram nesse pobre país. A intervenção russa consistiu principalmente em bombardeamentos aéreos e ataques com mísseis e quando se sabe o que tais bombardeamentos podem fazer – em nome da combater o ISIS, o bombardeamento dos EUA em partes limitadas da Síria trouxe uma terrível devastação, especialmente na cidade de Raqqa – pode-se imaginar o que fez o bombardeamento russo numa escala muito maior, sobre todos os territórios que estavam sob controlo da oposição quando a Rússia começou a sua intervenção direta em 2015, até ao presente.
Desde então, a Rússia também tem estado a intervir na Líbia, junto com o regime egípcio de Abdel Fattah Al-Sisi e os Emirados Árabes Unidos, os estados mais reacionários da região como o reino Saudita. As tropas Wagner russas – que são ainda menos “privadas” do que o seu equivalente dos EUA, a ex-Blackwater – têm estado a intervir na Líbia para apoiar o antigo trunfo da CIA Khalifa Haftar, que tem juntado à sua volta forças que vão desde os restos do antigo regime até salafistas para combater o governo de reconciliação apoiado pelas Nações Unidas. Vladimir Putin também tem sido apoiante total do marechal Sisi no Egito, desde o momento que organizou o seu golpe, muito antes de Trump lhe chamar o seu “ditador favorito”.
Assim, se olharmos para o papel da Rússia na minha parte do mundo não é certamente melhor do que o dos Estados Unidos. Na Síria é definitivamente muito pior: aí, as principais ações dos Estados Unidos, por ordem de importância, foram combater o ISIS, apoiar o movimento curdo para esse fim, apoiar partes da oposição síria, enquanto que a principal ação da Rússia foi combater a oposição síria para apoiar o regime de Assad.
Voltemos ao caso líbio. Como descreverias a oposição a Gaddafi no início do levantamento? Era uma oposição jihadista?
Definitivamente, não. Era um grupo heterogéneo de pessoas com uma vasta gama de orientações ideológicas. Lembremo-nos que Gaddafi chegou ao poder em 1969 e que este levantamento contra o seu poder ocorreu em 2011. São mais de 40 anos no poder! O governo da Líbia era brutalmente repressivo, nenhuma oposição de qualquer tipo era tolerada. Em 2003, mudou completamente de orientação passando a colaborar com Washington na sua “guerra contra o terror”. Nesse contexto, empenhou-se em acordos “extraordinários de entrega” com os governos ocidentais, sob os quais estes entregariam ao governo líbio oposicionistas jihadi que tivessem detido. Entre eles estava uma das figuras que mais tarde iria emergir no levantamento, um homem que processou o governo britânico por o ter entregue ao governo líbio.[3] Assim, havia de facto alguns jihadistas que tinham combatido o governo e eram vistos por Washington e os seus aliados como terroristas. Mas eram apenas uma componente de um vasto conglomerado de oposicionistas que incluía diferentes tipos de pessoas: democratas, liberais, membros da Irmandade Muçulmana e até alguns elementos de esquerda – a mesma mistura que tinha ocupado a praça Tahrir no Cairo, mas com menos domínio de forças islâmicas do que no Egito.
A primeira eleição que ocorreu depois da queda de Gaddafi em 2012 foi caracterizada por uma elevada taxa de participação, uma taxa verdadeira uma vez que as pessoas não eram obrigadas a votar como nas eleições fraudulentas do passado. E a grande surpresa foi que as forças islamitas receberam apenas uma minoria dos votos. A maioria era dominada pelos liberais. Isto prova que o levantamento de 2011 não era dominado por jihadistas. De facto, uma das suas figuras principais era Abdel Fattah Younes, que tinha sido companheiro próximo de Gaddafi desde 1968 e que era visto como o número dois da Líbia. Ficou do lado do levantamento quando a luta começou e foi assassinado poucas semanas mais tarde. A outra figura proeminente, o homem que se tornou presidente do Conselho Nacional de Transição, era o ministro da Justiça, o juiz Mustafa Abdul Jalil, que pode ser descrito como um muçulmano liberal. Mas a oposição era, claro, muito heterogénea. Num levantamento contra uma ditadura muito longa é normal assistirmos a um espetro amplo de correntes de oposição que se unem contra o regime. Isto aconteceu na Líbia, como noutros lados.
Algumas pessoas dizem que a Líbia estava melhor sob Gaddafi, como respondes a isso?
Se as coisas tivessem sido tão boas sob Gaddafi não teria havido um levantamento popular. A alegação de que a Líbia estava melhor sob Gaddafi ignora o facto de que se trata de um país com pouca população e com um elevado rendimento do petróleo e do gás, com um PIB per capita de 12.000 dólares em 2010, com o petróleo e o gás a representarem dois terços da economia e quase a totalidade das exportações – o mais claro indicador do falhanço massivo do regime na tentativa de desenvolver o país. A população líbia deveria estar muito melhor do que estava em 2011 quando o levantamento eclodiu. A Líbia é um país com enormes disparidades regionais. O regime privilegiava algumas partes do país, aquelas dos seus apoios mais leais, e negligenciava outras. Esbanjava muito do rendimento do país em compras loucas de armas (a maior parte delas dos países ocidentais a partir de 2004) e em aventuras militares.
Há algumas pessoas que apresentam números como o PIB per capita, as taxas de literacia, a esperança de vida o Index de Desenvolvimento Humano, para afirmarem que a Líbia estava melhor do que outros países africanos. Mas esta é uma comparação muito especulativa. Porque não comparar a Líbia às monarquias do Golfo que têm populações semelhantemente pequenas e enormes rendimentos do petróleo e do gás? Algumas delas alcançaram melhores números do que a Líbia. Deixem-me ler-vos a parte do relatório de 2011 do Grupo Internacional Crisis intitulada “Explicando a Líbia”:
“Dada a população de uns meros seis milhões, muitos líbios acreditam que o seu país se deveria parecer ao Dubai. Contudo, anos de mau planeamento, desenvolvimento insuficiente e fragmentado e corrupção persistente (somando-se aos efeitos debilitantes das prolongadas sanções internacionais), deixaram partes do país num estado de considerável negligência. O ressentimento que isto causa é particularmente forte nas pessoas do leste do país que, com razão ou sem ela, acreditam que o governo favoreceu outras partes do país e deliberadamente desinvestiu na sua região. Apesar da riqueza da economia do país, muitos líbios têm de ter pelo menos dois trabalhos para sobreviver (um dos quais é habitualmente no setor público no qual os salários da maior parte continuam a ser lamentáveis). A falta de habitação é enorme com a necessidade estimada de mais 540.000 unidades. Do ponto de vista geral da opinião pública, a maior parte das oportunidades económicas que abriram desde 2003... permanecem nas mãos de uma elite limitada. Em particular, foram agarradas pelos próprios filhos de Gaddafi e pela sua família alargada, todos os quais viram as suas vastas fortunas crescer com negócios que vão desde a saúde, à construção, aos hotéis e ao setor da energia. Estas perceções populares foram recentemente reforçadas pela revelação de avaliações diplomáticas ocidentais. De acordo com os telegramas diplomáticos dos EUA relevados pelo WikiLeaks, os filhos de Gaddafi beneficiam rotineiramente da riqueza do país; um destes notava que se tinha tornado “prática comum” o financiamento governamental ser usado para promover empresas controladas pelos seus filhos e indicava que as suas empresas beneficiavam de “financiamento considerável do governo e de apoio político”. Neste sentido, a Líbia tem sido parecida com uma grande panela de pressão prestes a explodir.”[4]
Outro argumento que oiço frequentemente é que se a Nato tivesse feito uma intervenção na Síria, o país teria ficado como a Líbia está hoje. Bem, posso-vos dizer isto: não há um único sírio que não tenha desejado e rezado dia e noite para que o seu país estivesse como a Líbia está hoje. A situação da Líbia não é nada se comparada com o que aconteceu na Síria: a escala dos massacres, a devastação, o deslocamento etc. são incomparavelmente mais horrosos na Síria. Depois de dois anos de uma liberdade política recentemente adquirida, a Líbia caiu numa nova guerra civil que começou em 2014, alimentada por intervenções estrangeiras rivais, mas permaneceu uma guerra de baixa intensidade se comparada com as da Síria e Iémen.
Deixa-me regressar a um dos teus princípios iniciais, aquele sobre o caso excecional quando um massacre está à beira de ocorrer. É um argumento a favor das intervenções humanitárias?
O conceito de “intervenção humanitária” está viciado. Ninguém se oporia a uma intervenção verdadeiramente “humanitária” do tipo de enviar tropas para ajudar depois de um enorme terramoto. Nenhum anti-imperialista se poderia opor a uma tal intervenção porque seria completamente absurdo. Nunca usei a frase “intervenção humanitária” exceto para criticá-las enquanto pretexto hipócrita para intervenções imperialistas. Quando o imperialismo intervém num conflito nunca é por razões humanitárias e nunca mantive qualquer ilusão acerca disso, mas denunciei consistentemente aquilo que Noam Chomsky denominou o “novo humanismo militar”.[5]
Os casos excecionais de que estou a falar ocorrem quando, por razões suas, os poderes imperialistas estão ao lado de um levantamento popular contra um regime despótico, sendo a última ocorrência disto o levantamento contra o golpe militar em Myanmar. Em tais casos, se o movimento popular decidir pegar em armas para se defender de um massacre iminente, apoio o seu direito a obter armas defensivas de onde as possam obter, mesmo se for através de poderes imperialistas. Até apoio pedir aos governo ocidentais que providenciem tais armas. Mas não apoio intervenções diretas, seja através de bombardeamentos, seja através do envio de tropas para o terreno, ainda menos quando isso é feito em violação das leis internacionais. Contudo, se não houver outra alternativa para prevenir um massacre iminente em larga escala, devo abster-me até que a ameaça seja eliminada. Abster-me significa que não me iria manifestar contra a intervenção como um punhado de pessoas fez a 19 de março de 2011 em Nova Iorque e Washington enquanto a população de Benghazi aplaudia alegremente o que entendiam como a sua salvação. Mas também não me manifestaria em apoio à intervenção: em vez disso avisaria aqueles que estão a ser salvos contra quaisquer ilusões acerca das reais intenções e desígnios dos seus salvadores de ocasião
Foi o que fiz em 2011 quando a intervenção começou na Líbia. A cidade de Benghazi estava a ser ameaçada pelo regime, a sua população implorou às Nações Unidas por uma intervenção, o Conselho de Segurança votou uma resolução a autorizar esta intervenção e Moscovo e Pequim consentiram, apesar de se terem abstido em vez de votar sim. Foi isso que expliquei na entrevista que me fizeste em 19 de março[6] e nada mais do que isso. E, contudo, o inferno desceu à terra em alguns círculos da esquerda anti-imperialista norte-americana e do Reino Unido, desde os habituais neo-campistas até alguns radicais que estavam a “aprender a pensar”[7]
Para mim, o lado original deste debate foi que revelou o etnocentrismo ocidental da maior parte dos meus detratores. Simplesmente não se conseguiam meter no lugar do povo de Benghazi ou de qualquer outra parte da região árabe abalada pela onda de choque revolucionária de 2011. viram tudo do ponto de vista da vantagem dos EUA ou do seu caniche britânico e apenas estavam interessados em contrariar o que o seu governo fizesse, independentemente do que estava a acontecer do outro lado. Atacaram-me porque não conseguiram compreender que eu reagia politicamente mais em uníssono com a zona árabe do mundo à qual eu pertenço (quando é diretamente atingida, quero dizer) do que com o Reino Unido onde resido e trabalho – sendo o meu trabalho focado no Médio Oriente e no Norte de África.
Para dar apenas um bom exemplo, em 19 de março de 2011, no mesmo dia que fizemos a nossa entrevista, o Hezbollah libanês – que não é propriamente conhecido por ser um grande amigo dos Estados Unidos – estava a realizar um encontro massivo num subúrbio do sul de Beirute em solidariedade com os povos árabes. Isto foi antes do levantamento sírio ter mudado a sua posição. Aqui está o que o líder do partido, Hassan Nasrallah, disse acerca da Líbia no seu longo discurso:
“Na Líbia, o povo ergueu-se como fez na Tunísia e no Egito. Um grupo de jovens comeu em Benghazi e foram recebidos com balas e matança. O povo veio em seu apoio e a revolução espalhou-se de cidade em cidade, com manifestações e desobediência civil. Enfrentaram balas, aviões e tanques. A guerra foi imposta à revolução popular civil e pacífica... Como todos vimos na televisão, aviões, tanques e canhões e vários lançadores de rockets Katyusha alinharam-se de uma forma que nos lembrou a invasão do Líbano em 1982 e as guerras israelitas.
Esta guerra que é lançada hoje pelo regime de Gaddafi sobre o povo líbio é do mesmo tipo da que foi lançada por Israel contra o Líbano e Gaza... Seja quem for que possa ajudar de qualquer forma este povo insurgente deve fazê-lo para que resistam face à destruição e aos massacres.
Os nossos irmãos revolucionários na Líbia e os nossos povos árabes devem saber que a América e o Ocidente deram ao regime líbio tempo suficiente para esmagar a revolução, muito tempo gasto em conversações e encontros. Mas os líbios permaneceram inquebrantáveis, resistiram e lutaram e embaraçaram o mundo com a sua firmeza e resiliência... A situação na Líbia tornou-se muito complicada com o início da intervenção internacional que pode envolver a Líbia no jogo das nações e requer dos revolucionários que empreguem a sua vigilância e patriotismo nos quais temos elevada confiança”.[8]
Note-se que Nasrallah culpava “a América e o Ocidente não por terem feito a intervenção mas por a terem feito tarde! Ele foi muito menos crítico do que eu tinha sido nesse dia em que me entrevistaste. Pouco depois, quando a ameaça tinha acabado, o que aconteceu depois de alguns dias de intervenção terem destruído a maior parte dos aviões e tanques de Gaddafi, afirmei claramente que era contra a continuação dos bombardeamentos porque já não eram obviamente precisos para salvar a população mas tinham-se tornado apenas uma tentativa da Nato de interferir na situação líbia e controlá-la. Aqui está o que expliquei a 31 de março:
Opor-se às zonas de exclusão aérea não oferecendo quaisquer alternativas plausíveis, como muitos grupos de esquerda sã e verdadeira fizeram com a melhor das intenções não era convincente. Punha a esquerda numa posição fraca aos olhos da opinião pública. Opor-se à zona de exclusão área e demonstrar ausência de preocupação com os civis, como alguns grupos marginais fizeram, era imoral – já para não mencionar a atitude dos que estalinistas reconstruidos ou não-reconstruidos que defendiam Gaddafi como um anti-imperialista progressista e atacavam o levantamento como uma conspiração dos EUA ou da al-Qaeda (enquanto recorriam aos insultos do tipo estalinista ao discutir a posição daqueles que à esquerda simpatizavam com o pedido de proteção do levantamento líbio).
Não nos devíamos opor ao pedido de uma zona de exclusão aérea por parte dos revoltosos. Em vez disso, deveríamos expressar as nossa fortes reservas à resolução 1973 do Conselho de Segurança das Nações Unidas e avisado contra quaisquer tentativas de aproveitá-la como pretexto de forma a implementar agendas imperialistas.
Como disse no dia a seguir à resolução 1973 ter sido adotada, “sem nos mostrarmos contra a zona de exclusão aérea, devemos expressar desconfiança e advogar vigilância total para monitorizar as ações que aqueles estados estão a empreender, garantindo que não vão além do mandato de proteger civis presente na resolução”. O nosso habitual pressuposto contra intervenções militares de estados imperialistas foi ultrapassado pelas circunstâncias de emergência de um massacre iminente, mas estas circunstâncias já não existem no presente e proteger o levantamento pode agora ser alcançado de forma muito melhor fornecendo-lhe armas.”[9]
O outro caso semelhante ao da Líbia em 2011 foi quando a vaga do ISIS em 2014 atravessou a fronteira com o Iraque e se espalhou sobre um vasto território no qual cometeram crimes horríveis, incluindo o genocídio dos Yazidis do Iraque e a tentativa de fazer o mesmo com os curdos tanto no Iraque como na Síria. A cidade sob controlo curdo de Kobani no nordeste da Síria ficou ameaçada pelo ISIS. Washington interveio e começou a bombardear o auto-proclamado “Estado Islâmico”. Deveriam os anti-imperialistas ter marchado em Washington e Londres a cantar: “parem a intervenção dos EUA na Síria”? Os Estados Unidos estavam a lançar armas por via aérea para as forças curdas. Deveriam os anti-imperialistas opor-se a isto? Não acredito. Nesta altura, a necessidade mais urgente era prevenir uma derrota curda que teria aberto o caminho para o ISIS invadir os territórios controlados pelos curdos na Síria, não nos poderíamos opor ao bombardeamento. Assim que o perigo imediato acabou, a continuação do bombardeamento deveria ter enfrentado oposição, junto com a exigência para fornecer as armas necessárias àqueles que combatiam o ISIS, especialmente os curdos e as suas forças aliadas tanto na Síria como no Iraque.
Resumindo, em circunstâncias excecionais quando não há alternativa disponível para prevenir um massacre em larga escla, a intervenção de um poder imperialista pode ser um “mal menor” enquanto for necessário eliminar a ameaça. Armar um levantamento democrático contra um inimigo despótico muito melhor equipado é uma necessidade de uma perspetiva verdadeiramente de esquerda verdadeiramente internacionalista. Os internacionalistas devem exigir dos seus governo, até dos imperialistas, que forneçam armas defensivas ao lado progressista de uma guerra civil (lembremo-nos da guerra civil espanhola![10]). Ao mesmo tempo, devemos defender junto daqueles que pedem tal ajudar que tenham uma desconfiança completa face aos Estados Unidos ou qualquer governo imperialista que seja. E devemos opor-nos a qualquer forma de intervenção que os amarre e subordine a Washington, Moscovo, ou seja quem for.
Mas se eu fosse parte de um grupo que estivesse a enfrentar um massacre e me oferecessem-se ajuda e a ajuda viesse com contrapartidas, podia pensar que estas são podres mas que preferia sucumbir a esta contrapartida podre do que ser massacrado.
E eu percebo isso completamente. Mas o meu papel a partir de fora seria dizer-te: compreendo a tua posição, compreendo que não tens escolhas, mas tenho de te avisar dos verdadeiros objetivos e intenções daqueles que te estão fornecer aquilo que precisas fortememente e exorto-te a fazer o máximo de forma a manter e preservar a tua autonomia completa.
Entrevista publicada na New Politics(link is external). Tradução de Carlos Carujo para o Esquerda.net.
Notas
[1] Gilbert Achcar, “How to Avoid the Anti-Imperialism of Fools,” The Nation, April 6, 2021
[2] Gilbert Achcar, “Their anti-imperialism and ours,” New Politics, April 18, 2021.
[3] Owen Bowcott, “Abdel Hakim Belhaj wins right to sue UK government over his kidnap,” The Guardian, Oct. 30, 2014
[4] ICG, “Making Sense of Libya,” June 6, 2011.
[5] The New Military Humanism: Lessons from Kosovo, Monroe, ME: Common Courage Press, 1999.
[6] Gilbert Achcar, “Libyan Developments,” ZNet, Mar. 19, 2011.
[7] Leon Trotsky, “Learn to Think,” New International, vol. 4, no. 7, July 1938.
[8] http://archive.almanar.com.lb/article.php?id=22453(link is external) (em árabe). Para excertos em inglês ver Stephen R. Shalom, “Nasrallah on Libya,” ZNet, 9 April 2011
[9] Gilbert Achcar, “Barack Obama’s Libya speech and the tasks of anti-imperialists,” Le Monde diplomatique, April 4, 2011.
[10] Andreu Espasa, “Roosevelt and the Spanish Civil War,” The Volunteer, Dec. 15, 2019, https://albavolunteer.org/2019/12/roosevelt-and-the-lessons-from-the-spanish-civil-war/(link is external).
Gilbert Achcar cresceu no Líbano e ensina em Paris, Berlim e Londres. É atualmente professor de Estudos do Desenvolvimento e Relações Internacionais no SOAS da Universidade de Londres. Entre os seus muitos livros incluem-se The Clash of Barbarisms (2002, 2006); Perilous Power: The Middle East and US Foreign Policy, em co-autoria com Noam Chomsky (2007); The Arabs and the Holocaust: The Arab-Israeli War of Narratives (2010); Marxism, Orientalism, Cosmopolitanism (2013); The People Want: A Radical Exploration of the Arab Uprising (2013); e Morbid Symptoms: Relapse in the Arab Uprising (2016).