São Paulo. Rafael Ciscati para Brasil de Direitos, julho de 2022.
“Será que a senhora poderia tirar uma foto com a gente?”. Regina Santos sorriu, um tanto surpresa, diante do pedido do rapaz. Minutos antes, a ativista, coordenadora estadual do Movimento Negro Unificado (MNU) em São Paulo, se sentara no café do Instituto Moreira Salles, na avenida Paulista, para conversar com a reportagem da Brasil de Direitos. O local da entrevista fora escolhido por ela: leitora ávida desde a infância, queria aproveitar o compromisso para visitar a exposição sobre a escritora Carolina Maria de Jesus, então em cartaz. O rapaz que pediu a foto — um jovem professor negro — não estava sozinho. Ao redor dele, cerca de 20 estudantes, entre 15 e 17 anos, se acotovelavam, à espera da resposta de Regina. “É que a gente viu a senhora em Amarelo. A gente tinha que pedir uma foto”, explicou uma das adolescentes, se referindo ao documentário do rapper Emicida. Em um dado momento do filme, o artista homenageia o MNU.
Regina caiu no riso, e topou a foto.
Aos 67 anos, Regina Lúcia dos Santos usa os cabelos muito brancos e curtos. Anda com o auxílio de uma bengala, mas se move com agilidade. Naquela tarde, no começo de abril, estava com a agenda apertada: depois da entrevista e da exposição (que acabou não conseguindo visitar), já tinha programado participação em uma manifestação marcada para acontecer nas escadarias do Theatro Municipal - a pouco mais de 3 quilômetros dali. Conversadeira ( “Eu adoro contar causos”, garante), logo quis saber de onde eram os estudantes que pediram a foto, e trocou números de telefone, para manter contato. Ela diz que ainda não se acostumou com esse tipo de reconhecimento público — ainda que momentos assim se tornem cada vez mais frequentes. “Desde que a gente [ ela e o marido, o ativista Milton Barbosa] participou do documentário, dizem que estou famosinha”, diz, fingindo contrariedade, antes de cair na gargalhada.“É engraçado como uma luta grande dessas, a do movimento negro, ganhou espaço com algo tão simples quanto um documentário. Mas eu não sou famosinha: sou mi-li-tan-te”, afirma, escandindo as sílabas da última palavra, como que para lhe conferir peso.
A militância de que Regina se orgulha começou ainda na adolescência, quando ela reivindicava livros para bibliotecas de escolas públicas. Seguiu durante sua luta contra a ditadura militar, nos anos 1970. E fincou raizes, em definitivo, quando ela ingressou no movimento negro, em 1996. “O MNU foi uma demolição na minha vida. Existem duas Regina: pré-MNU e pós-MNU”, afirma. “Entendi que é impossível construir o mundo que eu quero enquanto houver racismo”.
Criado em 1978, em plena ditadura militar, o Movimento Negro Unificado nasceu em reação a três casos de racismo que marcaram a época: a prisão e o assassinato, pela ditadura, do feirante Robson Silveira da Luz, que fora acusado de roubar frutas; o assassinato do operário Milton Lourenço, morto pela polícia; e a discriminação de quatro jogadores de vôlei negros pelo Clube Regatas do Tietê. O grupo, que passou a reunir dezenas de entidades do movimento negro, realizou uma manifestação diante do Theatro Muncipal de São Paulo — e, a partir dali, passou a organizar as demandas do movimento negro que, por fim, seriam apresentadas durante a elaboração da Constituição Federal de 1988.
De lá para cá, as urgências de Regina — e as do Movimento — mudaram pouco. “Com pequenos ajustes, as pautas do MNU continuam as mesmas desde a sua criação”, afirma. A saber: o combate ao genocídio da população negra, a luta contra a invisibilidade do negro nos meios de comunicação, pelo ensino da história da África nas escolas e contra a tríplice exploração da mulher negra.
A olhares desavisados, essa permanência das reivindicações pode dar a impressão de que o Brasil mudou pouco. Regina garante que não. “Pelo contrário. Avançamos muito”. É verdade que pessoas negras ainda são minoria em espaços de poder, e maioria entre as vítimas da violência policial. Mas, afirma Regina, há um orgulho de ser negro — e de reconhecer-se negro — que não existia nos anos 1970. “O racismo brasileiro é o mais sofisticado e o mais perverso que existe”, diz ela. “Porque um de seus pilares é o apagamento da história. As pessoas não conheciam as contribuições do povo negro para o Brasil. Não tinham motivo para se orgulhar. Mas isso mudou. Olhe ao redor”, disse, passando os olhos pelos adolescentes aglomerados do lado de fora da exposição. Aqui e ali, algumas meninas negras usavam tranças e cabelo black power. “Essas meninas usam cabelos afro belíssimos. Isso não acontecia 20 anos atrás”.
Esse avanço cultural indica que as coisas melhoraram, mas não estão bem. As pessoas sentem orgulho de ser negras mas “há um governo de extrema direita no poder”. E há autoridades políticas que se sentem livres para ser abertamente racistas: um levantamento recente, organizado pela organização Terra de Direitos e pela Coordenação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) constatou que, nos últimos três anos, políticos eleitos, ministros e membros do judiciário proferiram 94 declarações racistas. “Houve um tempo em que os racistas estavam dentro do armário. Eles saíram de lá”, diz Regina.
Na avaliação dela, o Brasil de 2022, com todos os seus problemas e contradições, é reflexo de um caldo de cultura que engrossa há décadas — e que, por fim, entornou. “Vivemos num país de passado escravista que não adotou medidas de reparação à população negra”, diz. “Vivemos uma das mais longevas ditaduras militares do continente, mas não conseguimos passar essa história a limpo. O Brasil não encarou nenhuma de suas barbáries”.
Na opinião dela, se o Brasil quiser avançar — rumo a uma democracia plena, “à democracia que queremos” — o país que somos hoje vai ter de encarar o país que já fomos. “Para avançar, precisamos passar o Brasil a limpo”.
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Regina Lúcia dos Santos nasceu em 1954 numa família de oito irmãos e sob a autoridade de uma mãe “supercatólica”. A religiosidade era motivo de brigas. “Eu sempre fui muito questionadora, e não aceitava bem essa obrigação de ir sempre à igreja”, conta. Gostava mesmo era de ler: Graciliano Ramos, Machado de Assis e qualquer coisa que lhe caísse em mãos. “Costumo dizer que sou metade do que vivi e metade do que li”, afirma. Seu ingresso na militância aconteceu meio que por acidente, e através dos livros: no começo dos anos 1970, quando cursava o final do ensino médio, Regina foi transferida para uma escola que não tinha biblioteca. “Percorri as ruas do bairro recolhendo livros. Eu nem sabia que isso era militância”. A partir dali, emendou uma reivindicação na outra: da briga pela melhoria na qualidade do ensino, ao movimento contra a carestia e, por fim, às passeatas que começavam a acontecer em oposição à ditadura.
A oposição ao regime levou Regina a ingressar na Liberdade e Luta, a Libelu — um braço do movimento estudantil de tendência trotskista. “Perdi as contas de quantas vezes saí de casa, às escondidas, para participar de panfletagem em porta de fábrica”, lembra. “Antes de sair, deixava um bilhete na gaveta de uma cômoda: ‘ se eu não retornar, entrem em contato com a Anistia Internacional,com a Comissão de Direitos Humanos da OAB, e com a Associação Brasileira de Imprensa’. No dia seguinte, quando chegava em segurança, tirava o bilhete dali, para ninguém encontrar”. Na Libelu, Regina tinha um codinome: Violeta
Regina saiu da Libelu pouco depois de ingressar no curso de geografia da Universidade de São Paulo (USP), onde se formou. O grupo foi uma de suas primeiras desilusões. Ligada à Quarta Internacional, organização marxista sediada na França, a Libelu seguia diretrizes vindas da Europa. “Para os ativistas daqui, nos restava ser tarefeiros. Executar ordens”, diz Regina. “Pensei: opa, se eu não posso contribuir com o que eu penso, então aqui não é o meu lugar”.
Dali, seguiu. Regina foi uma das primeiras filiadas ao Partido dos Trabalhadores (PT), participou do movimento sindical e de movimentos feministas. “Ainda um feminismo branco”, explica. “Mas aí eu conheci o Milton”, conta, se referindo ao marido, Milton Barbosa — um dos fundadores do MNU. Os dois se aproximaram por acaso, e depois de alguns desencontros. “Havia um bar, na rua da Consolação, chamado Butecão, que a negrada frequentava. Milton sempre estava lá, e eu também. Mas nunca nos encontrávamos”, conta. “Milton era fundador do PT, e eu uma das primeiras filiadas: mas ele militava no PT do centro, e eu no Butantã”. Os caminhos se cruzaram enquanto ambos trabalhavam na campanha de Luiza Erundina à prefeitura de São Paulo. Ainda enquanto amigos, ele a incentivou a ingressar no movimento negro. Foi uma época de aprendizados. “Apesar de ler muito, nunca tinha lido sobre a questão racial”, lembra. “Percebi que não tinha nenhum conhecimento sobre racismo no Brasil. Tinha a cabeça colonizada, cheia de estereótipos introjetados. Tive que me desconstruir e começar uma nova pessoa”.
Vem desses tempos seu desejo de passar o Brasil em revista. “Desde ali, queríamos que fossem adotadas medidas de reparação históricas ao povo negro em África e na diáspora”, afirma. "Propúnhamos que todos os governos beneficiários do racismo criassem programas sociais em benefício da população negra”. Na época, finais dos anos 1990, o MNU se posicionava contra as cotas para pessoas negras em universidades. “Porque elas eram tratadas como uma panaceia. Achávamos que só beneficiariam os negros mais elitizados”, explica. “Hoje, entendemos que as cotas foram importantes para romper com a hegemonia da branquitude nas universidades. Mesmo que indiretamente, trouxeram benefícios para toda a população negra”.
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Já perto dos 70 anos, Regina conta não ter intenção de reduzir o ritmo. Aquela sexta-feira agitada, quando concedeu essa entrevista, era só mais uma numa sequência de dias atribulados. Com a proximidade da campanha eleitoral, passou a ser convidada para anúncios de pré-candidatura e para um sem número de discussões políticas. Participa de tudo com prazer. Só se ressente de um detalhe: “Sempre me colocam para fazer a primeira fala”, diz, fingindo ar de enfado. “Acho que é por respeito ao MNU. E porque eu já sou uma ‘senhoura’”.
Regina conta que acompanha o cenário eleitoral com interesse, e com esperança. “Vivemos um momento crucial. Um momento que pode representar o arrebento dessa oligarquia que está no poder”, afirma. Nas últimas eleições municipais, em 2020, houve recorde de candidaturas de pessoas negras. O número de eleitos avançou pouco: nos 10 maiores colégios eleitorais do país, a quantidade de negros e negras nas câmaras de vereadores aumentou meros 2%. Na avaliação de Regina, é o início de um processo de mudança. “Que, na verdade, começou ali com a eleição de Marielle Franco — uma mulher negra e lésbica”, conta. “O assassinato dela acelerou esse movimento”.
Para superar o espectro da extrema direita, ela ensina, precisamos “eleger prefeitos, governadores, uma bancada de deputados federais negros e negras. E precisamos formar advogados, promotores com letramento racial”.
Os próximos projetos de Regina, no entanto, passam ao largo da política eleitoral. Ainda que não seja “famosinha”, ela quer ser youtuber. Já há algum tempo, ela burila a ideia de criar um canal para falar sobre combate ao racismo. “Existem dois tipos de racistas: aqueles que se beneficiam muito diretamente da exploração das populações negras e indígenas; e aqueles a quem falta informação”, afirma. “É com esse segundo grupo que eu quero falar”. O canal vai veicular conceitos básicos de letramento racial, sobre intelectuais negros, e deve incluir entrevistas com convidados. A escolha da plataforma é uma aposta nas novas gerações. “Na minha época, o conhecimento estava na palavra escrita. Hoje, as pessoas estão na internet”, explica. “Se eu quiser que a minha luta continue, preciso ir aonde as pessoas estão”. Não que ela pretenda, um dia, deixar essa luta de lado. “É a militância que me anima", diz, cerrando o punho. “Parafraseando Elza Soares: até o fim eu vou lutar, me deixem lutar até o fim”.