Nunca, desde as revoluções industriais, a exploração alcançou níveis tão torpes
Eugenio Bucci, A terra é redonda, 8 de outubro de 2021
Para Mark Zuckerberg, dono do Facebook, do Instagram e do WhatsApp, esta foi uma semana dos infernos. Na segunda-feira, uma pane tecnológica tirou do ar as três plataformas, no mundo inteiro, por um período de mais ou menos sete horas. No Brasil, a instabilidade começou no horário do almoço. Pequenas empresas, como restaurantes e oficinas de assistência técnica, que recebem pedidos pelo WhatsApp, tiveram de parar suas operações. Muita gente não tinha como trabalhar.
Assim foi para bilhões de pessoas. Isso mesmo: bilhões. Estima-se que 2 bilhões de seres humanos, diariamente, batem ponto – na verdade, batem o ponto centenas de vezes por dia – nos terminais do que os íntimos chamam de Face, Insta e Zap. Dois bilhões de almas. Muitas dessas almas não sabem ficar sem clicar nos ícones de Mark Zuckerberg. São viciadas. Algumas tiveram surtos de ansiedade. Foi uma segunda-feira nervosa. As ações do império despencaram algo como 5% na Nasdaq, em Nova York.
Para completar a semana infernal, outra hecatombe, essa mais persistente, sacudiu as bases da credibilidade do Facebook. Uma ex-funcionária graduada, Frances Haugen, que já vinha denunciando anonimamente os desmandos da companhia, mostrou a cara, deu entrevistas e, na terça-feira, depôs numa audiência no Senado dos Estados Unidos. Segundo as denúncias, a empresa teria ignorado alertas graves, como o de que os aplicativos eram usados para o tráfico de pessoas ou de órgãos humanos, ou de que a tirania de modelo de beleza no Instagram provocaria depressão e mesmo suicídio entre adolescentes. Há também a acusação de que Zuckerberg lucra com a polarização do debate público e, por isso, faz corpo mole quando se trata de moderar o fluxo de mensagens de ódio ou de desinformação deliberada nas redes.
O que fazer agora? Como conter o império? Para responder a essa pergunta Frances Haugen sustenta que o Facebook seja “regulado” por marcos legais.
É claro que as histórias apresentadas por ela precisam ainda ser apuradas. O Facebook, de sua parte, nega todas, de forma que, nesse quesito, ainda estamos longe de uma conclusão. Mas quando fala em regular o mercado, a ex-funcionária tem razão. Com ou sem práticas deletérias, abjetas ou condenáveis, o grau de monopólio alcançado por esse conglomerado vai se revelando incompatível com o regime de livre mercado. Onde existe tamanha concentração de capital, de tecnologia e de poder não pode haver livre concorrência, como é óbvio, e quando surge esse tipo de distorção, só dispositivos reguladores democráticos podem dar jeito.
Tanto isso é verdade que, desde a primeira metade do século 20, nos Estados Unidos, as leis antitruste vieram para quebrar monopólios e assegurar a competição entre empresas rivais, em diferentes setores da economia. Logo, não há nada de novo em pretender que marcos regulatórios imponham limites ao gigantismo monopolista.
E não estamos falando aqui de qualquer gigantismo. As cinco big techs dos Estados Unidos – Amazon, Facebook, Apple, Microsoft e Google – alcançaram, juntas, no final de julho, o preço de US$ 9,3 trilhões. O faturamento anual líquido das cinco ultrapassa os US$ 200 bilhões. São cifras assombrosas, inéditas na história do capitalismo, que não param de subir.
Para piorar o quadro, essa indústria trilionária tem um modo caprichosamente desleal de fabricar valor. Ela se abastece do trabalho gratuito dos tais “usuários”, que não ganham um tostão pelas horas seguidas (jornadas extenuantes) que passam nas telas, dentro das quais não se cansam de “postar” áudios, tabelas, imagens, textos e vídeos. Por meio das “postagens” e dos “cliques”, os voluntariosos e felizes “usuários” fornecem seus dados mais íntimos aos conglomerados – e estes, finalmente, transformam os dados pessoais em montanhas de dólares.
Nunca, desde as revoluções industriais do século 19, a exploração alcançou níveis tão requintados e torpes: o “usuário” é ao mesmo tempo a mão de obra, a matéria-prima e a mercadoria, e sai de graça. As big techs – com o Facebook na vanguarda – exploram sem hesitar a angústia das adolescentes suicidas e a fúria violenta das multidões que veneram líderes autocráticos. Erguem montanhas de dinheiro com isso. O improvável leitor que não se iluda: estamos diante de um desastre ético sem precedentes – mesmo que sejam parcialmente falsas as denúncias que explodiram agora. O desastre é da estrutura desse negócio, não é episódico.
A esta altura, ninguém de boa-fé nos Estados Unidos, seja do Partido Republicano, seja do Partido Democrata, tem dúvidas sobre a necessidade de alguma regulação. A dúvida é: qual regulação? Repartir cada uma das cinco grandes em duas ou três empresas? Obrigá-las a abrir seus algoritmos, de forma que eles sejam públicos? O debate transcorrerá por traumas e espinhos, mas não pode mais esperar. A pauta é urgente – não só em Washington. O futuro das democracias do mundo inteiro depende das respostas que os Estados Unidos darão a essas perguntas.
Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de A superindústria do imaginário (Autêntica). Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo, em 07 de outubro de 2021.