Avança, em todo mundo, a luta pela Renda Básica, paga a todos independentemente de trabalho. Mas a igualdade exige um complemento: limitar o acúmulo de riquezas, para impedir que 0,1% definam o futuro do planeta
María Julia Bertomeu e Daniel Raventós, Sin Permiso / OutrasPalavras, 12 de janeiro de 2021. A tradução é de Simone Paz Hernández.
Enquanto a produção de textos sobre Renda Básica (RB) aumenta dia após dia, o mesmo não acontece com a Renda Máxima (RM) – ou seja, o pagamento de um tributo de 100%, a partir de certa quantidade de riqueza e de renda. É verdade que são propostas tecnicamente diferentes e, também, que muitos dos entusiastas da Renda Básica não são tão a favor da Renda Máxima, e vice-versa. Nossa hipótese – sustentada desde um ponto de vista republicano e socialista – é de que ambas as propostas são capazes de produzir transformações muito potentes.
Em artigo assinado em conjunto, publicado pela Revista Daimon, recuperamos um texto de Antoni Domènech, escrito em 2005, que nos pareceu especialmente premonitório:
Acho que poucas coisas, se é que existe alguma, conseguiriam fazer tanto para enfraquecer a capacidade dos impérios privados de desafiar os poderes públicos democráticos, como faria uma renda básica cidadã, que oferecesse um mínimo para a existência social de todos, e ao mesmo limitasse, a um máximo compatível com a vida política republicano-democrática normal, o volume de renda que cada cidadão pode receber.
Em Sin Permiso já argumentamos diversas vezes sobre as razões técnicas [1] e normativas que apoiam nossa defesa da Renda Básica, mas falamos muito pouco sobre as razões para uma Renda Máxima. Como prossegue Domènech, no texto que acabamos de mencionar, ocorre o seguinte:
Uma sabedoria política mediterrânea milenar, atribuída a Sólon ou aos irmãos Graco, ensina aquilo que Maquiavel repetiu e tornou famoso muitos séculos depois: uma vida política livre, republicana, é incompatível com a existência de magnatas. O fato de, ao longo de vinte anos, os executivos-chefes de grandes corporações transnacionais terem passado de ganhar, em média, 40 vezes o salário de seus trabalhadores, para uma proporção de 400 vezes mais, não é apenas uma ofensa a qualquer noção decente de justiça distributiva, mas é um grande perigo para a sobrevivência de formas de vida política não diríamos democráticas, mas minimamente livres.
“Uma vida política republicana e livre é incompatível com a existência de magnatas”, algo muito semelhante ao que Louis Brandeis, ministro da Suprema Corte dos Estados Unidos entre 1916 e 1939, anunciou: “podemos ter democracia ou podemos ter riqueza concentrada em poucas mãos, mas não podemos ter as duas coisas”. De fato, essa velha ideia republicana não perdeu força: uma grande riqueza é uma ameaça à liberdade da grande maioria que não é rica. Daí, precisamente, que a neutralidade republicana — ao contrário da neutralidade liberal, complacente com um Estado que não se posicione a favor de uma concepção específica de “vida boa” em detrimento de todas outras que possam existir — exige o fim dos grandes poderes privados, que têm (e exercem) a capacidade de contestar e impor ao Estado sua concepção de “vida boa”. O mais usual não é que disputem com o Estado, mas que ditem a ele o que fazer.
Para explicar o que entendemos como uma potente associação normativa entre uma Renda Básica e uma Renda Máxima, pode servir como metáfora a linguagem arquitetônica de pisos e tetos. Se a Renda Básica fosse algo como um piso para todos os cidadãos, ou seja, um piso que garantisse a existência material de toda a população, a Renda Máxima seria um teto para impedir a existência de grandes magnatas que limitassem as liberdades republicanas da imensa maioria. As estatísticas são convincentes, até para aqueles propensos a tolerar as piores desigualdades, ou incapazes de admitir que a propriedade privada é um produto essencialmente político e social. [2]
Do século XIX até o presente, a concentração da propriedade só cresce — e muito especialmente dos anos 1980 e 90 até hoje. Em muitas partes do mundo, a propriedade está extremamente concentrada. São dados conhecidos inclusive por aqueles que se recusam a admitir que a grande concentração de riqueza em poucas mãos ameaça a liberdade da maioria não-rica, exposta à vontade dos poderes arbitrários, públicos e privados.
Em 1942, o presidente dos EUA, Franklin Roosevelt, defendeu uma alíquota de imposto marginal de 100% (um RM uniforme) para aqueles que obtivessem uma renda anual superior a U$ 25 mil (pouco menos de U$ 400 mil, ou R$ 2,15 milhões hoje). A proposta não pôde ser colocada em prática, mas chegou-se a um tributo de 94% para fortunas acima de U$ 200 mil. Não era uma Renda Máxima, mas chegou perto. A certa altura, o atual governo de coalizão espanhol fez um anúncio sobre taxação das grandes fortunas, da qual pouco se soube posteriormente, embora estivesse muito longe das proporções realmente corajosas que Roosevelt defendeu.
Vamos ilustrar nossa proposta com alguns dados numéricos relativos à Espanha: com um imposto de apenas 10% sobre o decil mais rico (em patrimônio) da população (sem considerar suas residências), poderiam ser obtidos mais de 96 bilhões de euros. Para ser mais preciso, esse imposto poderia ser aplicado ao cruzamento desse decil da população com a maior riqueza (patrimônio) e daquela com os maiores rendimentos — que, segundo o Censo Financeiro às Famílias de 2014, possui mais de 0,15 bilhões de euros de rendimento e 0,96 bilhões de euros em ativos (patrimônio) [3].
Esse valor é enorme, pois representa muito mais dinheiro do que todas as contribuições de previdência juntas. E seria apenas um imposto de 10% sobre essas fortunas. Uma alíquota de 20% para os 10% mais ricos em ativos arrecadaria o dobro, ou seja, 192 bilhões. Ainda assim, esses 10% da população continuariam ricos em patrimônio, sem dúvida alguma. Também poderia ser introduzido um imposto de acordo com o nível de riqueza, conforme proposto por Thomas Piketty, em seu livro Capital e Ideologia. A quem tem 100 vezes a riqueza média, seria aplicada uma alíquota de 10%; para quem tem mil vezes essa riqueza, 60%; para quem tem 10 mil vezes, 90%. Essas porcentagens propostas por Piketty são só uma sugestão: os valores poderiam ser outros. Nem é preciso dizer que essas tributações não configuram exatamente uma Renda Máxima, que definimos como uma alíquota marginal de imposto de 100% a partir de certa quantidade de riqueza. Mas uma alíquota de 90% já ficaria bem próxima.
A propriedade é muito mais concentrada que a renda. Tanto na Europa como nos Estados Unidos, o decil superior acumula atualmente mais de 55% e 70%, respectivamente, dos ativos imobiliários e financeiros. E o 1% privilegiado, mais de 20% e 40%, respectivamente. Além disso, a opacidade das informações sobre a riqueza no mundo é muito grande, fato que afeta a democracia de uma forma que não é muito mencionada. Trata-se de uma desproporção e concentração apenas superada, desde que existem dados comparativos, nas primeiras décadas do século XX.
Longe de serem as únicas medidas para desenhar uma política econômica republicano-socialista, a Renda Básica e a Renda Máxima — somadas às conquistas inalienáveis e duradouras do Estados de Bem-estar Social — garantiriam a existência material de toda a população e impediriam o grande poder econômico de impor sua vontade aos cidadãos e aos Estados. Ao contrário do que muitas vezes se argumenta, essas medidas seriam possíveis até mesmo para os países pobres, cujos gastos para remediar as consequências irreparáveis da pobreza são iguais ou até superiores ao que implicaria o pagamento de uma Renda Básica universal via reforma fiscal progressiva. Em tempos de crise agonizante das democracias, estas medidas complementares seriam capazes de iniciar o processo de recuperação de “uma vida política republicano-democrática normal”.
Notas
1 - Ou seja, por que a Renda Básica é tecnicamente melhor do que subsídios para pobres, como a desastrosa “Renda Mínima Vital” (Ingreso Mínimo Vital, da Espanha), em termos de uma série de problemas que estes apresentam: armadilha da pobreza, custos administrativos, estigmatização, não-aceitação, taxa de cobertura, etc. Um exemplo, aqui.
2 - Como Elizabeth Anderson resume de maneira simples: “O capitalismo começou com grandes ataques a diversas formas de direitos de propriedade: primogenitura, direitos comuns, monopólios colegiados e assim por diante (…) Na constante redefinição da propriedade, o capitalismo sempre se envolveu com a redistribuição. Reconhecer essa realidade é um passo importante para superar os obstáculos ideológicos e permitir que os direitos de propriedade sejam redefinidos para os interesses de todos, e não apenas do 1%”.
3 - Dados facilitados por Jordi Arcarons.