Estimulados pelo alto lucro e desamparados de políticas que fortaleçam um modo de vida tradicional, ribeirinhos são empurrados para o garimpo; juntos, constroem pequenas balsas de até R$ 50 mil para extrair "fagulhas de ouro" do fundo do rio.
Fabio Pontes, ((o))eco, 08 de dezembro de 2021
Entre os garimpeiros que congestionavam o baixo rio Madeira até o fim de novembro, estavam centenas de homens e mulheres que nasceram e se criaram ao longo de suas margens. Os ribeirinhos são uma novidade no cenário do garimpo na Amazônia, antes dominado por forasteiros de todas as regiões do país. Tradicionalmente dedicados à pesca, à agricultura de subsistência e à produção de farinha de mandioca, as comunidades ribeirinhas começaram a voltar seus olhos para as fagulhas de ouro que as dragas sugam do fundo lamacento do Madeira.
“Pessoas que nunca se interessaram pelo garimpo, motivadas pela alta da cotação do ouro e pela crise econômica; sem incentivo à agricultura e com a pesca restrita a alguns meses do ano, viram no garimpo uma alternativa lucrativa e fácil, onde uma cozinheira pode ganhar R$ 1,5 mil por semana, ainda mais nesta época de pandemia e alta do custo de vida”, diz a geógrafa Lucileyde Feitosa, da Universidade Federal de Rondônia (Unir).
A professora – doutora em Geografia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) – é criadora e apresentadora de uma série em podcast intitulada “Amazônia Ribeirinha”, um programa que faz parte de seu projeto de doutoramento, onde ouve moradores e acompanha seu cotidiano na tradicional comunidade de Calama, nas margens do Madeira, em Porto Velho, capital de Rondônia.
Segundo Lucileyde, esta recente corrida ao ouro no rio Madeira não foi causada só por uma ‘fofoca’, como os garimpeiros costumam denominar a notícia da descoberta de uma grande jazida. Ela acredita que outra das razões pode ter sido a assinatura de um decreto pelo governador de Rondônia, coronel Marcos Rocha (PSL), regulamentando o garimpo nos rios do Estado – com impactos mais diretos no rio Madeira. O decreto foi assinado em 29 de janeiro de 2021 liberando a atividade, desde que autorizada pelos órgãos ambientais.
“Foi uma percepção coletiva de que ‘liberou geral’ em todo o rio Madeira”, comenta a pesquisadora. O decreto, que ainda é questionado na Justiça, teria validade nas águas dos rios amazônicos em seus trechos no território de Rondônia. Mas a região onde as balsas atracaram está no Amazonas, no município de Autazes, a 200 km de Manaus. A região está próxima do encontro do Madeira com o Amazonas.
Cerca de 300 balsas (aproximadamente duas mil pessoas) invadiram o rio, das quais 131 foram queimadas até 29 de novembro em operação da Polícia Federal com apoio da Força Nacional de Segurança, Marinha e do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
A pesquisadora lembra que as dragas, ao sugarem os fundos do rio, causam graves impactos além da contaminação das águas por mercúrio. “Afetam o leito do rio e as margens, causando desbarrancamento, engolindo peixes e triturando animais como botos e jacarés. As condições de trabalho são insalubres, é difícil o acesso à água potável e o custo de vida é ainda mais alto”, descreve Lucileyde.
Apesar do impacto ambiental e social do garimpo no rio Madeira, pesquisadores da temática ouvidos por ((o))eco avaliam que a simples repressão policial da atividade não vai solucionar o problema. Para eles, a questão é muito mais delicada e sensível, já que muitas comunidades carentes ao longo do rio Madeira encontram no garimpo a sua principal e, às vezes, única fonte de sobrevivência.
“De que adianta incendiar as balsas, destruir o patrimônio destas pessoas que apenas buscavam a sobrevivência, sem oferecer uma alternativa? Não recebem incentivos à agricultura e têm limitações para a pesca. É preciso discutir uma política pública que garanta renda para estas comunidades no ano inteiro”, avalia ela.
Mercúrio x Selênio
Mineral mais perseguido pelos garimpeiros, o grama de ouro está cotado a R$ 320 no início de dezembro, contra R$ 170 em 2019, antes do início da pandemia. Muitos fatores na economia brasileira e internacional ocasionados pelas incertezas dos impactos da pandemia da Covid-19 levaram investidores a buscar no metal uma de suas principais fontes de investimento, provocando a supervalorização.
“Além disso, teve o decreto do governo de Rondônia que gerou a expectativa de uma liberação em todo o Madeira. Meninos que conheci ainda crianças há 30 anos na comunidade do Puruzinho, no Baixo Madeira, hoje são garimpeiros”, conta o pesquisador e professor Wanderley Bastos, também da Universidade Federal de Rondônia.
Há mais de três décadas ele estuda os impactos diretos do mercúrio despejado pelo garimpo nas comunidades do rio Madeira. O Puruzinho, a escolhida por ele para avaliar com mais precisão os efeitos do mercúrio despejado no manancial, fica no município amazonense de Humaitá, divisa com Rondônia.
Bastos veio estudar o impacto do mercúrio no Madeira no início dos anos 1980, acompanhando um grupo de pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), por onde concluiu seu doutorado em Ciências Biológicas. Coordenador do Laboratório de Biogeoquímica Ambiental da Unir, Wanderley Bastos continua estudando a comunidade do Puruzinho, que ele abraçou desde que chegou a Porto Velho.
“A presença dos ribeirinhos entre garimpeiros forasteiros pode ser notada pela diferença da cobertura das balsas. Eles cobrem com folha de palmeiras, enquanto os forasteiros usam lonas pretas”, explica Brito. “É uma atividade muito atraente para o ribeirinho. Cinco ou seis deles juntam R$ 50 mil e montam uma balsinha, e conseguem faturar até R$ 20 mil mensais, uma renda bastante significativa.”
Seu trabalho de pesquisa foi executado em três viagens de barco descendo e subindo o rio Madeira entre Porto Velho, em Rondônia, até sua foz no rio Amazonas, no Amazonas. O objetivo era avaliar os impactos da contaminação por mercúrio entre garimpeiros e as populações das margens. Para isso, coletava amostras de cabelos dos ribeirinhos, de peixes, da água, de sedimentos do fundo do rio e dos barrancos.
“A Organização Mundial de Saúde preconiza que 6 ppm (partes por milhão) é o limiar da concentração de mercúrio no cabelo humano. Eu encontrei pessoas com 160 ppm em 2004 ou 2005 no Baixo Madeira. A média atual no Puruzinho é de 11 ppm. Mas já esteve em 15 ppm por volta de 2010. A gente percebeu que tem caído”, comenta o pesquisador.
Entretanto, mesmo diante do altíssimo nível de contaminação, nenhum morador apresenta sintomas das doenças causadas pela presença de mercúrio no organismo, que costuma atacar os rins e o sistema nervoso, causando até cegueira e demência. Uma provável causa para a mitigação dos efeitos danosos do mercúrio no corpo humano se daria pelo consumo de selênio, um mineral essencial, presente na água e nos sedimentos e, obviamente, nos mesmos peixes que levam o mercúrio à corrente sanguínea humana.
“É só uma hipótese, mas eu acredito nela, pois vi gente com níveis de mercúrio impressionantes. Um de nossos alunos está trabalhando com uma pesquisa para avaliar qual é a quantidade de selênio presente em cada um dos alimentos que eles consomem”, explica o professor. “Apesar da variação dos hábitos alimentares, o nível de contaminação por mercúrio ainda é alto e, se não adoecem, alguma coisa está favorecendo. Algo do ponto de vista bioquímico os protegem e estamos desvendando isso.”
A pesquisa envolve moradores das comunidades de Puruzinho e São Sebastião do Tapuru, ambas nas regiões do Médio e Baixo Madeira. “Apesar da proximidade entre as comunidades, a presença de mercúrio tem níveis diferentes, dependendo das espécies de peixe que consomem, da frequência e da proximidade de cidades onde possam comprar alimentos diferentes”, explica.
Bastos notou que, além do provável controle natural do mercúrio pelo selênio, a redução da contaminação também pode estar relacionada com o programa Bolsa Família, cuja renda permitiu uma mudança dos hábitos alimentares e de uma tecnologia bem prosaica que chegou à região na virada deste século: o motor de rabeta.
“Até os anos 1990 os moradores do Puruzinho iam à cidade de Humaitá para fazer compras uma vez a cada seis meses. A viagem demorava um dia remando canoas. Por isso, a dieta básica era de peixe com farinha. A partir dos anos 2000, com a instituição da Bolsa Família, eles começaram a comprar motor de rabeta, e hoje viajam quando querem. Agora consomem salsichas, ovos e até carne, além de verduras e legumes que começaram a cultivar incentivados pelo Município”, afirma.
O mercúrio nos garimpos
A redução e até a eliminação do uso do mercúrio passou a ser uma obrigação no Brasil desde que o país assinou, em 2013, a Convenção de Minamata sobre Mercúrio. O documento teve a adesão de 128 países.
O uso do mercúrio no garimpo no Brasil, de acordo com o professor da Universidade Federal de Rondônia, ainda é preocupante, mas não é tão grave como durante a corrida do ouro nos anos 1970/80. “Naquela época, os garimpeiros manipulavam o mercúrio ao ar livre, faziam a separação do ouro usando um maçarico e inalavam o vapor do mercúrio”, conta.
O excesso de mercúrio era descartado no rio. Atualmente, a separação do ouro por mercúrio é feita em um recipiente fechado chamado “cadinho”, que impede a inalação e drena o excesso para uma caneca, possibilitando sua reutilização. “Sendo um produto caro e de difícil aquisição, pois a venda é proibida, a adesão dos garimpeiros é maciça a este procedimento”, diz Bastos. Essa prática, completa ele, se dá muito mais pelo aspecto econômico do que por uma preocupação ambiental de quem garimpa.
O pesquisador explica que o mercúrio é fundamental para a exploração de ouro no rio Madeira por ser muito raro se achar as “pepitas”, as pedras de ouro, ao longo de seu curso. Nele é mais comum se encontrar o ouro em fagulhas – ou “farelos” – que precisam ser separadas de pedras e dos sedimentos sugados do fundo pelas dragas. E o mercúrio é o principal componente a fazer essa separação.
“Não tem como fazer este processo usando uma bateia, por exemplo, onde o metal mais pesado desce por gravidade até o fundo. São partículas de ouro muito pequenas, que vêm descendo o rio Madeira desde a Cordilheira dos Andes”, explica ele.
E por que o palco da última concentração de garimpeiros se deu exatamente em Autazes? É lá onde as minúsculas partículas de ouro tendem a se depositar nos fundos em maior quantidade pela grande presença de sedimentos arrastados desde as nascentes nas Cordilheiras. Essa concentração ocorre por o Madeira alcançar o seu “remanso”, quando o rio reduz a velocidade de seu trajeto por conta do encontro com o Amazonas.
São nestes encontros que os rios também tendem a alcançar uma menor profundidade, o que facilita a dragagem pelas balsinhas, cujos equipamentos são bem menos sofisticados do que as grandes balsas.
As balsas mais bem equipadas e com maior poder de operação (e lucratividade) chegam a custar até R$ 2 milhões. Apesar de muitas delas serem operadas por ribeirinhos, eles não são os verdadeiros donos. Essa propriedade é atribuída a políticos e grandes empresários de Rondônia e do Amazonas.
Desmatamento e mercúrio
A atividade garimpeira, porém, não é responsável sozinha pela presença de mercúrio no ambiente aquático do Brasil e do Mundo. A contaminação alcança os extremos da Terra contaminando até focas nos polos onde o mercúrio chega através das conexões entre rios e oceanos, mas também de forma natural, pelas emanações dos vulcões. “O mercúrio em sua fórmula natural viaja pela atmosfera e se espalha pelo mundo”, explica o professor Wanderley Bastos.
Sua ação danosa só vai ocorrer quando tomar contato com água e seus sedimentos e se transformar em metilmercúrio. “O solo da Amazônia tem um enriquecimento natural em função das emanações vulcânicas de todo o planeta que vão se depositando ao longo do tempo. Mantendo a vegetação intacta vamos reduzir de forma intensa a deposição deste mercúrio no ecossistema aquático”, afirma.
De acordo com ele, um estudo realizado no início dos anos 1990 constatou que o solo desmatado para atividades agropecuárias tem menos mercúrio do que o solo coberto por florestas. “Parece contraditório, mas isso é ruim. O solo da floresta tem até 40% mais mercúrio porque ele está contido pela vegetação ao passo que no solo descoberto o mercúrio foi levado para os rios pelas chuvas”, explica Bastos.
Assim sendo, a floresta tem um papel fundamental no controle do nível de contaminação dos rios por mercúrio. “Já foi comprovado cientificamente que as emissões de mercúrio de origem natural são infinitamente superiores às disseminadas pelo homem. A floresta tem atuado como um isolante, assim como a mata ciliar protege as margens contra as erosões”, compara ele.