A globalização da cultura do mercado, produtivista, tecnocrática e financeira da 'gestão' das águas do planeta se impôs em todo o mundo. O modelo dominante passou a ser o sistema de gestão de infraestrutura em larga escala para a extração, produção, distribuição, uso e reciclagem da água (todo o ciclo da água) por grandes redes de empresas privadas, baseadas nas Parcerias Público-Privadas (PPP), que representavam uma forma sutil de privatização do poder político no campo dos bens e serviços públicos comuns.
Riccardo Petrella, Pressenza / IHU-Unisinos, 19 de julho de 2022. A tradução é do Cepat.
Os dominantes agiram rápido e sem problemas
Em janeiro de 1992, na Conferência Internacional das Nações Unidas sobre a Água e o Meio Ambiente, realizada em Dublin, o Banco Mundial aprovou pela primeira vez na história o princípio de que a água não deveria mais ser considerada essencialmente um bem comum, social, público, mas um bem econômico, um bem privado, de acordo com as leis da economia dominante “ocidental” (Cf. Quarto Princípio de Dublin, em inglês). Este princípio foi confirmado na primeira Cúpula Mundial da Terra das Nações Unidas no Rio de Janeiro em junho de 1992.
Em 1993, o Banco Mundial publicou o documento Gestão Integrada dos Recursos Hídricos (GIRH), que rapidamente se tornou a “bíblia” da política hídrica para organismos internacionais mundiais como o Banco Mundial, o FMI, a ONU e suas 26 agências: OMC, OMPI (Organização Mundial da Propriedade Intelectual), OCDE… Este documento estabelece a mercantilização, desregulamentação, liberalização e privatização dos serviços da água a ponto de impô-los como “condicionalidade” aos países que solicitam empréstimos ao Banco Mundial. Este documento estabelece o princípio do preço da água com base no “princípio da recuperação total do custo” como ferramenta fundamental para uma gestão integrada e eficiente dos recursos hídricos, independentemente da natureza pública ou privada do capital da empresa gestora.
No dia 22 de março de 1993, as Nações Unidas celebraram o primeiro Dia Mundial da Água. O objetivo era promover e facilitar a disseminação e a aceitação por parte de todos os líderes mundiais e da sociedade civil dos novos princípios da política mundial da água, acima mencionados. “Cada dia internacional é uma oportunidade para informar os cidadãos sobre questões relacionadas com temas importantes como os direitos fundamentais, o desenvolvimento sustentável ou a saúde. Esses dias também são uma oportunidade para o sistema das Nações Unidas, os governos e a sociedade civil organizarem atividades de conscientização e de mobilização dos recursos.”
Em 1995-96, por iniciativa do Banco Mundial, em particular do seu vice-presidente para o Meio Ambiente, um grupo de multinacionais privadas ativas no setor da água (por exemplo, a Suez, a Vivendi…) com o apoio da parte “mainstream” do mundo “ocidentalizado” da ciência e da tecnologia (por exemplo, a Associação Internacional da Água...) criou o Conselho Mundial da Água (WWC). Em 1996, o conselho lançou o programa Global Water Partnership (GWP) e organizou pela primeira vez o Fórum Mundial da Água em 1997 em Marrakech, que desde então se tornou a maior e mais poderosa reunião trienal sobre a água do mundo. O Conselho Mundial da Água tornou-se assim, entre outras coisas importantes, o guarda-chuva e o suporte, direto ou indireto, logístico e financeiro (em colaboração com as agências das Nações Unidas e as autoridades nacionais), das centenas e centenas de eventos organizados pela sociedade civil e os poderes públicos locais durante e fora dos Dias Mundiais da Água.
Em 2000, a União Europeia aprovou uma importante diretriz-quadro sobre a água. O objetivo era promover a conservação e a qualidade dos recursos hídricos da Europa. Dessa forma, toda a política de gestão dos recursos hídricos e dos bens comuns relacionados é considerada e regulamentada de acordo com os princípios estabelecidos pelo Banco Mundial e aperfeiçoados durante a década de 1990.
Também em 2000, o segundo banco privado suíço mais antigo lançou os fundos azuis, ou seja, a captação de capital destinada exclusivamente a financiar as atividades das empresas cotizadas na bolsa ativas nos campos da água (especialmente no setor do tratamento de águas residuais). O sucesso foi imediato e significativo. A rentabilidade do capital da água do Pictet ainda está no topo dos índices do mercado de ações hoje. Em 2002, durante a segunda Cúpula da Terra das Nações Unidas em Johanesburgo, tudo isso foi reforçado e consolidado, principalmente os princípios da mercantilização e monetização da água e a financeirização dos serviços hídricos (uma das principais ferramentas continuou sendo “o acesso à água a preços acessíveis”).
Nesse sentido, em 2003, a Conferência Internacional das Nações Unidas sobre o Financiamento da Água, realizada em Montgomery, no México, aprovou o relatório “Como financiar a água no mundo” apresentado por uma comissão de especialistas da ONU presidida pelo ex-diretor geral do FMI, Michel Camdessus. O relatório propunha, sem ressalvas ou compromissos, que o financiamento adequado e eficaz para a água devia se basear na primazia do financiamento privado internacional (mercados financeiros globais) e na forma de funcionamento de suas instituições.
Em suma, em questão de poucos anos (entre 1992 e 2003) tudo foi ajustado. A globalização da cultura do mercado, produtivista, tecnocrática e financeira da “gestão” das águas do planeta se impôs em todo o mundo. O modelo dominante passou a ser o sistema de gestão de infraestrutura em larga escala para a extração, produção, distribuição, uso e reciclagem da água (todo o ciclo da água) por grandes redes de empresas privadas, baseadas nas Parcerias Público-Privadas (PPP), que representavam uma forma sutil de privatização do poder político no campo dos bens e serviços públicos comuns.
Partindo da ideia de que a água é acima de tudo um recurso natural de vital importância para a economia, finito e vulnerável, a verdadeira função dos Dias Mundiais da Água foi fazer acreditar que a melhor forma de salvaguardar e conservar a água era considerá-la uma mercadoria, um bem econômico, e que o problema da água era sobretudo um problema de gestão dos recursos do ponto de vista do seu valor econômico.
Nesse contexto, adeus à água como bem público global e, sobretudo, adeus ao direito universal: a própria ideia de gratuidade dos bens e serviços essenciais à vida (por gratuidade entendemos, no nosso caso, a partilha coletiva dos custos relativos) foi completamente abandonada. Não há direito universal à água nos mercados da água e para as companhias da água. Há a obrigação de pagar. Isso explica por que o que importa hoje não é o direito coletivo e individual à vida, mas o poder aquisitivo individual da água na quantidade e qualidade que atenda às suas necessidades.
O dia 28 de julho de 2010 foi amor à primeira vista
O reconhecimento formal do direito universal à água com a resolução da Assembleia Geral de 28 de julho de 2010 foi um terrível trovão em um céu claro. Foi uma decisão inesperada, uma grande surpresa e sobretudo inaceitável para os dominantes. A aprovação da resolução, concisa mas clara, foi um importante resultado político do governo de Evo Morales, na Bolívia.
Especialmente graças às ações do seu representante permanente na ONU, Pablo Solón, a Bolívia conseguiu em poucos dias reunir o apoio de 121 Estados, a grande maioria dos países do Sul global, pequenos Estados… A feroz oposição de 41 Estados, principalmente do Norte do mundo (os Estados Unidos à frente, seguidos por 11 dos 27 países da União Europeia), não conseguiu reverter o equilíbrio de poder.
Foi uma verdadeira alegria, um raro sucesso dos direitos e reivindicações dos povos do Sul, em particular dos povos indígenas do mundo, com respeito aos interesses econômicos dos grupos sociais dominantes do Norte (e não com respeito aos povos indígenas do Norte que, em geral, eram solidários com os do Sul).
Mas os grupos dominantes não desistiram. Adotaram a estratégia do silêncio e do esquecimento. Gradualmente, se opuseram sistematicamente à aceitação de qualquer referência à resolução da ONU nos documentos oficiais do sistema ONU e de outras organizações internacionais “ocidentalizadas”. Insistiram cada vez mais na substituição da referência ao “direito universal à água” (e à saúde, alimentação, habitação, educação, eletricidade…) por uma referência ao “acesso à água em condições de igualdade e a um preço acessível”. Assim, enquanto as referências ao “direito universal à água” ainda podem ser encontradas em documentos relacionados à Agenda 2000-2015 da ONU, “Objetivos do Desenvolvimento do Milênio”, qualquer menção desapareceu na Agenda 2015-2030 da ONU, “Objetivos do Desenvolvimento Sustentável”.
Além disso, em 2012, os governantes fizeram com que o documento final da Terceira Cúpula Mundial da Terra no Rio de Janeiro adotasse o princípio da monetização da natureza (não apenas da água).
Os “Dias Mundiais da Água”, embora dignos por si só, têm sido ocasiões importantes e sistemáticas para este trabalho de “regularização” e “atualização” em “conformidade” com os imperativos dos governantes.
Desde a nossa criação, em dezembro de 2018, a Ágora dos Habitantes da Terra nunca participou dos Dias Mundiais da Água como parte da ONU-Água. E desde 2019 lançamos a ideia de considerar o dia 28 de julho de cada ano como o Dia Universal do Direito à Água.
A pedido dos amigos da Ágora de Rosário (Argentina), no dia 23 de junho passado a Câmara Municipal de Rosário decidiu passar o comemorar o dia 28 de julho como o Dia Mundial pelo Direito Universal à Água. Encorajados por esta decisão histórica da segunda maior cidade da Argentina, os diferentes grupos territoriais da Ágora dos Habitantes da Terra organizarão eventos em apoio ao reconhecimento do dia 28 de julho como o Dia do Direito Universal à Água na Argentina, Itália (Verona, Nardo, Altamura, Matera, Sicília, Roma…), França (Clermont-Ferrand, Poitou Charente), Bélgica (Bruxelas, Liège…), Quebec, Chile, Líbano, África…
Propomos que no dia 28 de julho os movimentos e associações atuantes pelos direitos humanos e sociais proclamem o dia do direito universal à água. Convidamos você agora para se unir na preparação e na organização conjunta do primeiro evento mundial, que será no dia 28 de julho de 2023.
Ricardo Petrella é cientista político italiano com doutorado em ciências políticas e sociais pela Universidade de Florença (Itália) e autor, entre outros, do livro O Manifesto da Água (Editora Vozes, 2002).