Robert Brenner, Against the current / A terra é redonda, 3 de outubro de 2020
A declaração do Federal Reserve [Fed – Banco Central dos EUA] de 23 de março de 2020 que pretendia conceder empréstimos a grandes empresas não financeiras foi decisiva para sinalizar que ele assumira a liderança do resgate governamental das empresas. Ele mostrou o que se esperava do Congresso e do Tesouro e também especificou o nível pretendido de apoio durante a crise econômica do coronavírus.
No momento apropriado, o líder da maioria no Senado, Mitch McConnell, e o líder da minoria no Senado, Chuck Schumer, anunciaram que o elemento central de seu projeto de lei recém-aprovado – que logo seria chamado de Coronavirus Aid, Relief and Economic Security Act [Lei de Auxílio, Socorro e Segurança Econômica do Coronavírus] ou CARES Act – era um enorme resgate de grandes empresas não financeiras, no valor de meio trilhão de dólares.
Esses US$ 500 bilhões seriam reservados integralmente para empresas com pelo menos 10.000 funcionários e receita de pelo menos US$ 2,5 bilhões por ano. Ainda foram previstos US$ 46 bilhões a serem divididos entre companhias aéreas de transporte de passageiros (US$ 25 bilhões), companhias aéreas de carga (US$ 4 bilhões) e “empresas necessárias à segurança nacional”, um codinome para a Boeing (US$ 17 bilhões). Isso deixou US$ 454 bilhões a serem distribuídos aos felizes beneficiários empresariais a serem selecionados. No entanto, mesmo essa grande soma revelou-se apenas a ponta do iceberg. O verdadeiro “dia de pagamento” para as maiores empresas não financeiras do país seria de uma ordem de grandeza totalmente diferente.
Os US$ 454 bilhões restantes da dotação original do Congresso foram, assim, creditados na conta do Fed como um colchão para cobrir potenciais perdas. Isso abriu caminho para que o Fed assumisse a inteira responsabilidade de fazer adiantamentos às empresas e, em particular, de multiplicar por 10 a alocação original do Congresso – de US$ 454 bilhões para cerca de US$ 4,54 trilhões – “para empréstimos, garantias de empréstimos e outros investimentos”.
Cerca de US$ 4,586 trilhões, aproximadamente 75% do total de US$ 6,286 trilhões derivados direta e indiretamente do dinheiro da CARES Act, iriam para o “care” [cuidado] das maiores e mais ricas empresas do país. Para efeito de comparação, mesmo com o aumento do desemprego, apenas US$ 603 bilhões foram destinados para pagamentos diretos em dinheiro a indivíduos e famílias (US$ 300 bilhões), seguro-desemprego extra (US$ 260 bilhões) e empréstimos estudantis (US$ 43 bilhões).
A CARES Act definiu um elaborado conjunto de condições formais relativas a quem se qualificava para a generosidade do Fed-Treasury, e o que se podia ou não fazer com os adiantamentos recebidos. Porém, a lei também deixou a porta aberta para que o secretário do Tesouro, Steven Mnuchin, inicialmente responsável pela administração da lei, ignorasse essas condições, graças à ambiguidade desta na linguagem, inconsistências, lacunas e restrições.
De todo modo, o fato de o Fed assumir a responsabilidade sobre a operação de resgate teve como resultado limitar o debate no Congresso acerca da questão das regras a serem adotadas e de como elas seriam efetivamente aplicadas. O Banco Central deixou claro não possuir grande interesse em impor condições aos destinatários, e a liderança do Partido Democrata concordou.
Como na ocasião do resgate de 2008, a CARES Act criou cargos de fiscalização e vários conselhos de supervisão dos empréstimos. Porém, assim como antes, esses órgãos estavam autorizados apenas a denunciar abusos, não a evitá-los ou corrigi-los. Isso tornou qualquer escrutínio público ainda mais difícil ao conceder ao Fed o direito de realizar suas reuniões em segredo e não divulgar as atas.
O equivalente a 2,5 vezes os lucros empresariais anuais dos EUA, cerca de 20% do PIB anual do país, teve autorização para ser despendido sem a devida supervisão.
O auxílio às empresas é bipartidário
A operação de resgate não deve ser particularmente associada ao governo Trump, embora o presidente tenha pressionado muito por sua aprovação. Os principais líderes de ambos os partidos políticos se associaram fortemente a esse auxílio, e a esmagadora maioria de seus seguidores no Congresso concordou com mais ou menos entusiasmo.
De acordo com a Constituição, as decisões envolvendo o orçamento devem ter origem na Câmara, onde o Partido Democrata atualmente tem maioria. No entanto, os Democratas cuidaram para que a análise do projeto de lei que se tornou a CARES Act passasse primeiro pelo Senado, onde os Republicanos detêm a maioria. Neste, Schumer, em colaboração com o secretário do Tesouro de Trump, Mnuchin, assumiu a liderança na formulação da lei – nos termos dos Republicanos, como Schumer prontamente admitiu. O placar de aprovação do projeto de lei no Senado foide 96 x 0.
Tanto o chamado Democrats’ Progressive Caucus [Bancada Progressista dos Democratas] quanto o Congressional Black Caucus [Bancada dos Negros no Congresso] silenciaram sobre o assunto; e embora Bernie Sanders e, em particular, Elizabeth Warren apresentassem objeções, seus protestos foram silenciados, na melhor das hipóteses.
Quando o projeto saiu do Senado, os líderes Democratas no Congresso já o haviam aprovado de fato e a Câmara não poderia derrubá-lo facilmente – não que eles tivessem qualquer intenção de fazê-lo. A liderança do Partido Democrata forneceu cobertura política para os Democratas da Câmara em geral, e para a ala esquerda do partido em particular. Ela os poupou de ter que votar diretamente nele ao utilizar o procedimento de votação simbólica. Apenas uma Democrata, Alexandria Ocasio-Cortez – cujo distrito era o epicentro nacional da pandemia na época – se opôs publicamente ao projeto de lei, chamando-o de um dos “maiores resgates de empresas da história estadunidense”.
A estratégia dos principais líderes Democratas parece ter sido a de permitir que os Republicanos assumissem o crédito pelo resgate, ao mesmo tempo garantindo silenciosamente sua ratificação, já que se tratava também de uma das principais prioridades de seus apoiadores empresariais – além de ter o suporte da grande maioria dos membros eleitos do partido no Congresso.
Aparentemente, eles esperavam que, com os ganhos espetaculares das empresas estampados nas manchetes, fosse possível obter dos Republicanos compensações para seus outros eleitores: seguro-desemprego, equipamento médico e assistência médica; e salários suplementares ou de substitutos, bem como apoio para pequenas empresas. Contudo, a falha crucial dessa abordagem foi que, ao permitir que o Senado Republicano elaborasse a legislação, os Democratas abriram mão de sua principal fonte de influência política: sua maioria na Câmara. Uma vez aprovada a CARES Act, Schumer e Pelosi foram obrigados a admitir implicitamente o seu fracasso, ao anunciar, imediatamente após sua ratificação, que solicitariam uma nova versão ampliada.
Para tentar garantir o que não conseguiram obter por meio da CARES Act, os Democratas tinham um caminho óbvio a seguir: aprovar seu próprio projeto de lei na Câmara e deixar que os Republicanos tentassem alterá-lo no Senado. Teria sido bastante simples para os Democratas aprovarem uma legislação que atendesse às necessidades urgentes da população.
Surpreendentemente, porém, a liderança Democrata no Congresso mais uma vez permitiu que o Senado Republicano tomasse a iniciativa de redigir o projeto de lei original, e sofreu outra derrota vergonhosa com a chamada COVID-19 Interim Emergency Funding Act [Lei de Financiamento Provisório de Emergência da COVID-19], já que praticamente todo o seu financiamento foi, de um modo ou de outro, para empresas.
A nova lei deveria complementar a alocação inicial para pequenas empresas, e a maior parte dos seus recursos era oficialmente para esse fim. No entanto, a maioria dos destinatários era “pequena” apenas no sentido técnico: empresas com valor superior a um milhão de dólares, de médio porte e até grandes foram contempladas.
O único item importante que os Democratas conseguiram emplacar foi para os hospitais. Porém, não havia restrições à forma como esses fundos poderiam ser usados, o que significa que a maioria iria para administradores abastados que decidiriam como aqueles seriam gastos. Houve também uma pequena destinação de dinheiro para os testes de COVID-19. Por outro lado, Schumer e Pelosi não conseguiram nenhuma ajuda para os estados, que estavam em crise devido ao colapso de suas receitas fiscais e à impossibilidade de realizarem gastos que implicassem déficit.
Além disso, não houve acréscimos para o vale-refeição, apesar de uma crise de fome que gerou longas filas de doação de alimentos; nem para aluguel, apesar de uma onda gigantesca de despejos iminentes. Ainda assim, a votação final na Câmara foi de 388 a favor e cinco contra, com Ocasio-Cortez sendo novamente a única Democrata da Câmara que se atreveu a votar “não”, classificando o projeto de “ultrajante”.
Heróis e crise na saúde
Três semanas depois, Pelosi finalmente deu seu show ao tomar a iniciativa com o lançamento da Heroes Act [Lei dos Heróis], de US$ 3 bilhões, que ofereceu ao Partido Democrata a oportunidade de apresentar um programa completo com o qual eles poderiam seguir lutando. O projeto continha um conjunto robusto de demandas liberais, mas Pelosi minou profundamente sua força política ao usá-lo para sinalizar aos principais doadores do partido que este os colocava em primeiro plano.
Para reforçar o descrédito, Pelosi ainda procurou enfrentar a crise premente do sistema de saúde pedindo um novo financiamento para o seguro saúde por meio do COBRAplan, uma medida absurdamente cara que daria suporte às seguradoras, mas negligenciaria totalmente os milhões que perderam sua cobertura de saúde junto com seus empregos.
O projeto de lei de Pelosi tornou os grupos de lobby empresarial da K-Street elegíveis para o Paycheck Protection Program [Programa de Proteção ao Salário], oferecendo financiamento a organizações cujo real propósito político era apoiar grandes empresas e se opor a iniciativas políticas como a Heroes Act.
Enquanto essas escaramuças políticas se desenrolavam, o Federal Reserve prosseguia sem obstáculos com seu resgate histórico às grandes empresas. Como explicou o secretário do Tesouro Mnuchin, os negociadores “haviam discutido em termos bipartidários” a questão de saber se as empresas que recebiam o dinheiro do resgate poderiam usá-lo para pagar dividendos, recomprar suas ações e aumentar salários para os altos executivos, ou se deveriam manter os níveis de emprego e investimento. “Estávamos de acordo que os empréstimos diretos comportariam restrições”, mas “as transações do mercado de capitais não teriam restrições”.
Com relação aos US$ 46 bilhões da CARES Act para companhias aéreas, empresas de carga aérea e a Boeing, isso significou, trocando em miúdos, que o Departamento do Tesouro administraria o resgate. Este assumiria a forma de empréstimos diretos e, a fim de serem elegíveis, os beneficiários teriam de aceitar certas restrições bastante rigorosas e claramente definidas. Eles não poderiam pagar dividendos; teriam limitadas as quantias permitidas para recompra de ações; e seriam obrigados a conservar 90% dos trabalhadores.
Com relação ao resto do dinheiro do resgate empresarial, potencialmente no valor de dez vezes essa soma, os empréstimos se dariam através do Fed, por meio da compra de títulos emitidos pelas grandes empresas, e não estariam condicionados à forma como elas gastariam esse dinheiro ou a suas decisões econômicas em geral. Conforme Powell, o presidente do Fed, explicou dourando a pílula, “muitas empresas que teriam de recorrer ao Fed agora são capazes de se financiar de forma privada… e isso é algo positivo”. A iniciativa do Fed por si só galvanizou os mercados, já que as taxas de juros caíram com a simples notícia da intenção da intervenção.
Mais fundos para as finanças
Desde o início da crise, à medida que se registrava a evolução da pandemia de COVID-19, o Fed vinha intervindo em uma escala cada vez maior nos mercados de crédito, tentando obter mais dinheiro em condições mais favoráveis aos prestamistas do setor financeiro, com o objetivo de tornar lucrativa a concessão de empréstimos a empresas não financeiras. Ele reduziu para 0 a 0,25% o intervalo da meta dos fundos federais de referência, e, como “orientação”, comprometeu-se a mantê-lo nesse patamar no futuro previsível; afrouxou regulamentações sobre os bancos, reduzindo as exigências de capital e liquidez, a fim de facilitar a concessão de empréstimos; fez compras maciças de títulos do Tesouro para ajudar as reservas bancárias; e, finalmente, declarou Quantitative Easing [Flexibilização Quantitativa (monetária)] ilimitada.
No entanto, essas medidas tiveram pouco efeito em um momento no qual os bancos e os emprestadores não bancários, que poderiam se beneficiar da generosidade do Fed, não tinham interesse em fornecer crédito a tomadores não financeiros já endividados. Era evidente que isso seria muito arriscado. Se o Fed quisesse que os empréstimos a empresas não financeiras aumentassem, ele teria de desafiar os mercados e intervir.
Quando o Fed sinalizou sua intenção de apoiar o mercado de títulos de empresas [corporate-bond market], estabelecendo sua série de facilidades de empréstimo, ele repentinamente reduziu de modo qualitativo o risco de compra desses títulos por credores privados, dando-lhes confiança para retornar ao mercado. Foi isso que eles fizeram em massa, é claro, abrindo caminho para uma onda gigante de tomada de empréstimos por parte das grandes empresas não financeiras.
A nova onda de compra dos credores, na verdade, representou uma continuação da anterior, que gerou empréstimos recordes e uma bolha no mercado de títulos de empresas que as notícias da disseminação global do coronavírus em fevereiro de 2020 ameaçaram estourar.
Portanto, quando o Fed interveio para reavivar os empréstimos a grandes empresas não financeiras, declarando que compraria títulos em qualquer quantia necessária para sustentar seu valor, estava na verdade reiniciando e ampliando a bolha do mercado de títulos privados. Embora o que tenha chegado às manchetes tenha sido o sucesso de diversas famosas empresas não financeiras em garantir a obtenção de empréstimos a preços artificialmente reduzidos, na realidade são os credores, os financistas, que se beneficiaram de forma decisiva – de duas maneiras.
Primeiro, se os mercados de títulos tivessem permanecido congelados, muitas empresas não financeiras logo não teriam outra escolha a não ser declarar falência, pois estavam num beco sem saída entre a incapacidade de pagar suas dívidas correntes devido à perda de receita causada pela pandemia; e a incapacidade de refinanciar suas dívidas, exceto a taxas de juros demasiadamente altas. Os credores dessas empresas não financeiras, incluindo bancos comerciais, hedge funds, fundos de investimento, bancos de investimento, fundos de pensão e outras instituições de investimento que constituem o universo do shadow banking system [sistema bancário paralelo], teriam enfrentado perdas significativas no processo de falência. Em vez disso, ao evitar uma onda de falências, a reanimação do mercado de títulos pelo Fed salvou os credores e protegeu seus ativos.
Em segundo lugar, quando a economia começou a fechar, os investidores passaram a considerar os níveis recordes de dívida das empresas não financeiras, contraídas no período anterior à crise do coronavírus, como muito mais arriscados do que antes. Eles começaram a exigir taxas de juros mais altas para novas dívidas e a vender dívidas antigas. Com as grandes empresas não financeiras imobilizadas, pouca dívida nova poderia ser emitida e o valor da dívida antiga entrou em colapso, deixando os credores em uma situação adversa. Novamente, quando o Fed deu o estímulo inicial ao mercado de títulos, prometendo proteger o valor da dívida das empresas não financeiras, o valor dos títulos se recuperou e os investidores evitaram enormes perdas.
O Fed havia induzido com sucesso os credores privados a retornarem ao mercado de títulos, servindo como emprestador de última instância – ou melhor, como emprestador de primeira instância, socializando suas perdas potenciais e garantindo que eles poderiam privatizar seus ganhos potenciais. Ele permitia, assim, que as empresas não financeiras assumissem dívidas maiores do que seria possível de outra forma. Porém, o objetivo não era, de forma nenhuma, resolver as dificuldades iniciais que impeliram essas empresas a assumirem aquelas dívidas – mas empurrar seus problemas com a barriga, para onde eles poderiam se tornar ainda mais difíceis de serem solucionados.
O Fed evitou um colapso naquele momento, mas provavelmente enfrentará uma crise ainda maior no futuro.
Bonança bilionária do Coronavírus
A partir desse ponto crítico, os spreads de títulos se inverteram e começaram a diminuir. O spread para empresas com classificação de risco BBB, que havia atingido o pico de 4,88% em 23 de março de 2020, caiu para 2,83% em 1º de maio. No mesmo intervalo, o spread de alto retorno (junk bond [títulos tóxicos/de alto risco]) caiu de 10,87% para 7,7%.
O high-grade borrowing cost index da Bloomberg [índice de custo de empréstimo para grau alto], que havia disparado para 4,5%, caiu para 2,4% no início de junho de 2020, perto dos níveis mínimos do pré-pandemia, alcançados no início de março de 2020. As emissões de títulos com o grau de investimento dispararam, quebrando duas vezes o recorde mensal anterior. O volume de março de 2020, de US$ 262 bilhões, quebrou o recorde anterior de US$ 168 bilhões (maio de 2016) e, em seguida, o volume de abril de 2020, de US$ 285 bilhões, quebrou o recorde de março.
O impacto da declaração do Fed foi poderoso, conforme ficou evidente em um estudo realizado logo em seguida pela American Prospect em parceria com The Intercept. Eles localizaram relatórios de vendas de títulos publicados por 49 grandes empresas com valor de pelo menos US$ 190 bilhões.
Muitos dos que aproveitaram a redução no custo dos empréstimos oferecida pelo Fed faziam parte da nata da “América industrial” – Oracle, Disney, Exxon, Apple, Coca-Cola, McDonald’s e assim por diante. Eles podiam não estar desesperados por esse auxílio, mas não resistiram em lucrar com ele. Muito ilustrativo desse cenário, a Amazon conseguiu alguns dos custos de empréstimos mais baixos já garantidos no mercado de títulos de empresas dos EUA: levantou US$ 10 bilhões em títulos de três anos à taxa de 0,4%. Isso foi menos de 0,2 ponto percentual acima da taxa que os investidores cobraram do governo dos EUA quando este recentemente emitiu dívida com vencimento semelhante. Também se estabeleceram novos mínimos para os títulos de dívida da Amazon já existentes com vencimento em sete, dez e quarenta anos.
Antes da declaração do Fed de 23 de março, não estava claro se algumas das maiores empresas com balanços fracos e/ou perspectivas nebulosas – entre elas Boeing, Southwest, Hyatt Hotels – seriam capazes de obter empréstimos no mercado de títulos. Porém, assim que o Fed anunciou suas intenções, muitas delas imediatamente ganharam acesso a financiamento. Recentes “anjos caídos” como Ford e Kraft Heinz, ambos com títulos negociados em níveis depreciados apenas algumas semanas antes, rapidamente concluíram ofertas bem-sucedidas.
A oferta da Boeing em 30 de abril arrecadou US$ 25 bilhões e ficou bem abaixo da demanda. Seu sucesso permitiu que a empresa não fosse obrigada a aceitar o empréstimo oferecido pelo resgate de empresas, que, como mencionado, seria acompanhado de condições bastante rigorosas para a manutenção de funcionários, bem como de limitações na recompra de ações e pagamento de dividendos. A Boeing não deixou de explorar sua nova vantagem, anunciando imediatamente que cortaria 16.000 postos de trabalho. A GE Aviation, outra empresa qualificada para empréstimo sob a CARES Act, seguiu pelo mesmo caminho, lançando um empréstimo de US$ 6 bilhões no open market [mercado aberto] e demitindo 13.000 funcionários logo em seguida.
Por fim, o mercado de ações seguiu o mesmo caminho do mercado de títulos de empresas, tranquilizado pelo sucesso instantâneo do refinanciamento de grande parte do setor não financeiro e pela promessa implícita do Fed de manter as taxas de juros baixas – sem se preocupar, como é há muito tempo, com os lucros baixos, sem falar na produtividade. O S&P 500 (um dos principais indicadores da bolsa de Nova York e da NASDAQ) atingiu o fundo do poço em 23 de março, com 2.237 pontos, depois do seu pico de 3.386 em 19 de fevereiro de 2020. Contudo, disparou depois para 3.139 em 4 de junho – um aumento de 40%, enquanto a economia real despencava, e representando o maior ganho do índice para um período de 50 dias desde o início dos registros comparáveis, em 1952.
A capitalização de mercado atingiu seu mínimo, US$ 21,8 trilhões, ou 103% do PIB, em 23 de março. Contudo, em 30 de abril, ele estava de volta a US$ 28,9 trilhões, ou 136,3% do PIB. Não houve nenhuma outra boa notícia claramente relevante nesse ínterim, mas a relação preço/retorno do S&P 500, que havia caído enquanto a economia desabava, mais uma vez subiu quando os preços das ações decolaram, apesar da queda nos lucros.
Em virtude apenas de suas promessas, o Fed foi capaz por colocar US$ 7,1 trilhões nas mãos de investidores em ações, em um momento em que a economia real teria gerado o resultado oposto. Quase no mesmo período, entre 18 de março e 4 de junho, a riqueza dos bilionários estadunidenses aumentou em US$ 565 bilhões, atingindo o patamar de US$ 3,5 trilhões, alta de 19%. Não é de surpreender que Jeff Bezos tenha liderado o caminho, aumentando em US$ 34,6 bilhões sua riqueza (impressionantes 31%), enquanto Mark Zuckerberg ganhou US$ 25 bilhões.
Lucros por Predação
O resultado dos esforços do Fed alterou o jogo. O mercado de títulos de empresas foi reconfigurado e a posição econômica das principais empresas não financeiras se transformou, pelo menos por enquanto.
O que o establishment bipartidário estava fazendo era fornecer as condições, tanto quanto possível, para permitir que os executivos das empresas e acionistas buscassem seus próprios interesses da maneira que julgassem melhor, sem fazer perguntas.
No primeiro plano de suas reflexões a esse respeito estava que promover o egoísmo econômico não mais significava necessariamente reforçar a capacidade dos comandantes das empresas de elevar o investimento ou o emprego com lucro, ou de maximizar os lucros com o mínimo de acumulação de capital por meio da pressão sobre os trabalhadores – ou mesmo simplesmente reproduzir e sustentar suas próprias empresas.
Eles compreenderam o quanto a obtenção de dinheiro desvinculara-se da produção de lucro, especialmente em uma economia fraca. Foi por esse motivo que eles foram tão explícitos e insistentes em proteger a capacidade de proprietários e administradores de grandes empresas não financeiras de perseguir seus próprios interesses – comprando de volta suas ações, pagando dividendos, aumentando a remuneração dos executivos ou mesmo liquidando parte ou a totalidade da participação.
Eles aceitaram, em particular, a disseminação de proprietários de grandes empresasse beneficiando às expensas de suas próprias empresas com um mínimo de risco, como é dramaticamente exemplificado pelo patrimônio privado; e a necessidade de garantir os meios de se fazer dinheiro desse modo, tornando os empréstimos mais baratos e seguros, às vezes como um meio indireto incontornável de estimular o investimento e o emprego reais.
Com a economia dos EUA apresentando um desempenho tão ruim há tanto tempo, o establishment político bipartidário e seus principais formuladores de políticas chegaram à conclusão, consciente ou inconscientemente, de que o único modo de se garantir a reprodução das grandes empresas financeiras e não financeiras, seus principais dirigentes e acionistas – e, na verdade, os principais líderes dos maiores partidos, a eles ligados intimamente – é intervir politicamente nos mercados financeiros e em toda a economia, de modo a promover a redistribuição de riqueza para eles (portanto de baixo para cima) por meios diretamente políticos.
Em suma, isso significa a predação como pré-condição para a produção. É o que o Congresso e o Fed realizaram de fato com seu resgate às empresas em grande escala em face da queda da produção, do emprego e dos lucros.
*Robert Brenner é diretor do Centro de Teoria Social e História Comparada da University of California, Los Angeles (UCLA). Autor, entre outros livros, de O boom e a bolha (Record).
Tradução: Ilan Lapyda
Publicado originalmente na revista .