Marcos Rolim, Sul21, 1 de março de 2022
Václav Havel, ex-presidente da República Checa, foi um revolucionário improvável. Não possuía qualquer carisma, não era um bom orador, costumava ser irônico e empregava conceitos filosóficos quando, aparentemente, não era o caso. Preso várias vezes por conta de suas posições políticas, ele costumava dizer que a única forma de resistir a uma tirania é viver na verdade. Essa expressão, “viver na verdade”, que deu origem a um livro com uma coletânea de ensaios dele (Living in Truth), não significa, é claro, “estar de posse da verdade”. O sentido da máxima é bem diverso. Trata-se de um compromisso de natureza ética que corresponde a chamar as coisas pelo seu nome, permitir, portanto, às palavras a densidade que elas possuem, o peso que elas carregam como tradução do mundo. E fazê-lo radicalmente, mesmo quando se erra, de forma que seja possível corrigir os rumos assim que o erro for detectado.
Por conta de um artigo escrito em 1978, Havel cumpriu 5 anos de prisão, o que abalou sua saúde. Foi monitorado constantemente pelos agentes da polícia política, perseguido, ridicularizado e, mesmo aos olhos do ocidente, tido como um “sonhador”. Em 1989, ele foi um dos líderes da chamada “Revolução de Veludo” que colocou abaixo o governo comunista e o regime de partido único. Havel esteve até o final de sua vida comprometido com a luta contra as ditaduras e apoiava a oposição russa a Putin no seu direito de dizer a verdade a um regime fundado na mentira.
Lembrei de Havel quando comecei a ler posts de ativistas da esquerda de apoio à invasão da Ucrânia e à “guerra de escolha” decidida por Putin. O primeiro grande movimento para dobrar a realidade é inserir um fato incontestável, claro e brutal como a guerra, dentro de uma moldura capaz de dissolvê-lo. Assim, por exemplo, Putin proibiu que a imprensa de seu país use a expressão “guerra” para se referir aos acontecimentos da Ucrânia. O que está ocorrendo, segundo o cleptocrata russo, são “manobras militares”.
Na esquerda brasileira e na socioconfusão que a circunda, o que se diz é que “a culpa pela guerra é da Otan e dos Estados Unidos”. Essa foi, aliás, a síntese oferecida por um dos ideólogos petistas, Breno Altman, em artigo na Folha de São Paulo nesta terça-feira (01). Altman, para quem não sabe, é o estrategista que, em 2018, às vésperas da votação no primeiro turno, sustentou, em uma live, que “Bolsonaro será o adversário ideal no segundo turno”. Um homem de visão, como se percebe. Pois bem, o texto de Altman é estruturado em inverdades, do começo ao fim. Ele começa afirmando que, em 2014, houve “um golpe” que depôs o presidente da Ucrânia, com o apoio dos EUA. Na verdade, o Euromaiden, movimento de protesto que reuniu milhares de pessoas na praça central de Kiev, foi uma revolução democrática que depôs um presidente depois de três meses de ocupação pacífica das ruas e de bárbara repressão da Berkut, a polícia assassina à serviço do governo e que foi dissolvida após a queda de Víktor Fédorovytch Ianukóvytch, aliado de Putin. Quem tiver dúvida sobre essa caracterização pode assistir ao documentário Winter on Fire (Netflix), todo ele gravado durante os protestos, e tirar suas próprias conclusões. Depois, Altman afirma que Putin optou por “ataques que destruíssem o aparato armado do vizinho”, o que é uma forma de defender a guerra como “defensiva” quando nunca houve, de parte da Ucrânia, qualquer ameaça à Rússia (aliás, qual país fronteiriço à Rússia cogitaria semelhante estultícia?) e quando até as pedras sabem que a ofensiva russa tem também alvos civis. Putin, no mais, afirmou que a Ucrânia sequer é um país verdadeiro, ou seja, para ele, a Ucrânia é parte da Rússia. Ao final de seu texto, o articulista sentenciou: “a crise ucraniana conclui um período histórico no qual a hegemonia norte-americana era tida como incontestável. Depois de 30 anos, a ordem bipolar agoniza sob os pés de uma Rússia reerguida”. Ou seja, Altman saúda a guerra e vê com otimismo o possível fortalecimento de uma ditadura que coloca o mundo a beira de uma guerra mundial brandindo suas ogivas atômicas.
Ainda que o argumento do “expansionismo da OTAN” fosse aceito, ele não justificaria a guerra. O que ocorre, entretanto, é que os países do leste da Europa, que foram dominados por 70 anos por governos títeres de Moscou e que sentiram na pele os efeitos de regimes liberticidas, corruptos e sanguinários, têm sobradas razões para temer o expansionismo russo. Vários deles sofreram intervenções militares quando produziram revoluções democráticas. Foi assim na revolta da Hungria em 1956, onde se lutava por “um socialismo verdadeiro” e as tropas soviéticas produziram um massacre matando 20 mil pessoas; foi assim na Primavera de Praga, em 1968, soterrada com a invasão de 500 mil soldados russos e mil tanques. Por todos os lugares onde se conheceu o que bandidos como Nicolae Ceausescu, da Romênia; Todor Zhivkov, da Bulgária e Erich Honecker da Alemanha Oriental, para citar apenas três deles, foram capazes de fazer, há um legítimo e compreensível temor do “grande irmão” do leste e uma demanda por segurança que encontrou seu leito natural na União Europeia. Esses sentimentos em todo o leste europeu remontam à luta contra o ideal da “Grande Rússia” dos czares, se prolongou em todo o período soviético e se atualiza com o expancionismo russo da era Putin, materializado no conflito com a Chechênia, na guerra contra a Geórgia e na anexação da Crimeia.
A política imperialista dos EUA, que alimenta várias guerras no mundo e que sustenta ditaduras como a Arábia Saudita, não constitui argumento a favor de Putin. Lembrar o histórico de descumprimento das leis internacionais pelos EUA no momento em que seu governo se opõe à guerra na Ucrânia seria o mesmo que, diante da anexação da Áustria em 1938, por Hitler, denunciar os EUA pela tomada do Texas e da Califórnia do México. Da mesma forma, o fato de que há grupos neonazistas na Ucrânia nada tem a ver com a guerra – aliás, esses grupamentos que alcançaram 2% de votos nas últimas eleições ucranianas e não garantiram uma só vaga no Parlamento, são anti-Rússia e também anti-União Europeia e anti-EUA. A guerra poderá, entretanto, empoderar esses grupos, o que já vimos ocorrer com as milícias no Afeganistão armadas pelo ocidente.
Nesse momento, o povo Ucraniano resiste bravamente e dá extraordinária demonstração ao mundo – como já o havia feito em 2014 – de dignidade e compromisso com seu País. Se há uma esquerda que é incapaz de ver isso e que, mais grave, se lança nos braços de um ditador que deveria ser levado à corte de Haia, então convém sinalizar outra posição – e rápido – antes que a opinião pública, mais uma vez, seja informada que a esquerda brasileira não só carrega alegremente ditaduras em sua mochila, mas também saúda a guerra.
Uma última palavra sobre o ditador Vladimir Putin que governa a Federação Russa desde 1989 ao lado de bilionários e da máfia: ex-agente da KGB, ele é, já há muitos anos, a principal referência política de quase todas as lideranças de extrema-direita no mundo, desde Marine Le Pen, da Frente Nacional (FR), Nigel Farage do Partido da Independência do Reino Unido (UK) e Heinz-Christian Strache do Partido da Liberdade (Aus), até Donald Trump (US). (confira aqui, aqui e aqui). Sua aproximação com Bolsonaro, aliás, não se deu por acaso. Graças ao seu combate ao liberalismo e aos Direitos Humanos, a sua postura homofóbica e à defesa dos “valores morais da família”, travestidos de cristianismo, Putin é o contraponto de tudo aquilo que o mundo construiu como promessa emancipatória e tradição democrática.
Por tudo isso, pelos horrores de uma guerra desprovida de qualquer legitimidade; pelo dever moral de emprestar solidariedade ao povo ucraniano e a todos os refugiados, entre eles africanos e indianos que tentam sair da Ucrânia e que têm sido alvo de racismo na fronteira da Polônia e outras nações europeias; pelos riscos de uma escalada que amplie o conflito ao ponto de mundializá-lo, cabe à esquerda comprometida com a democracia se somar a todos os esforços pela paz, denunciando a posição pró Putin de Bolsonaro e das lideranças políticas que apoiam a agressão russa.
Marcos Rolim é Doutor e mestre em Sociologia e jornalista. Autor, entre outros, de “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema” (Appris, 2016).