Rudá Ricci, A terra é redonda, 24 de agosto de 2020
Quero iniciar sugerindo que tenhamos serenidade quando analisamos ou participamos do jogo político. Como qualquer jogo, há momentos de avanço e há momentos de recuo, mas, o que conta é a estratégia. Faço esta sugestão porque o campo progressista continua histérico. Já socializei aqui minha tese: os lulistas, em especial, sofrem de estresse pós-traumático. Depois do impeachment de Dilma Rousseff, da prisão do Lula e eleição de Bolsonaro, perderam a noção de perspectiva e qualquer solavanco interpretam como sendo uma avalanche.
Mas, vamos à análise. Temos um conjunto de pesquisas que indicam uma melhora na avaliação do governo Bolsonaro. Mais: ele se tornou o principal cabo eleitoral das eleições em várias capitais do país. Lula continua em destaque, mas, agora, como segundo influenciador. As pesquisas indicam que o principal fator de melhoria da avaliação são os 600 reais emergenciais. Vale a pena comparar como esta ajuda emergencial assume um perfil de abrangência muito similar ao peso do Bolsa Família. Vamos aos dados.
O Programa Bolsa Família (somado ao fomento promovido pelo BNDES) teve o condão de alterar a lógica social do Nordeste durante os governos Lula. Ainda hoje, 50% dos maranhenses recebem este recurso; 48% no Piauí e 47% em Alagoas. Já a ajuda emergencial de 600 reais envolve 39% da população da Bahia. Estudo feito pelos economistas Écio Costa (UFPE) e Marcelo Freire (Secretaria de Desenvolvimento de Pernambuco) as cinco parcelas do programa de renda básica equivalem a 6,3% do PIB do Nordeste. O estudo indica que no Brasil o recurso emergencial equivale a 2,5% do PIB nacional (sendo 6,3% do PIB nordestino).
Para onde está indo este recurso? Para a construção civil. Se vai para a construção civil, significa que está aquecendo o mercado local. Além de material de construção, compras de celulares em segunda mão também estão registrando alta nas localidades com maior número de beneficiários. O caminho do Bolsa Família se repete. Ora, não há como ser diferente no país que é a oitava economia mundial e o sétimo em desigualdade social do Planeta. Temos, aqui, que destacar o papel pedagógico da democracia. Bolsonaro teve que se curvar à realidade. Se antes, o mote de Jair era o ataque virulento e extremado ao Estado e à agenda de Bem-Estar Social, agora, cede porque percebeu que sem a agenda social estava afundando.
Contudo, Patrícia Valim (UFBA) sugere outro dado: os Estados nordestinos que menos enfrentam o bolsonarismo teriam registrado uma melhoria na avaliação de Bolsonaro muito superior à média nacional. No caso, Valim está citando Bahia e Ceará. A tese é boa. Precisaremos de mais pesquisas para confirmar a tese de Valim, mas, de fato, os dois governos estão implantando a militarização da educação. Bahia enfrentou recentemente uma greve de professores universitários estaduais muito desgastante.
O governo do Ceará enviou proposta à sua Assembleia Legislativa congelando os gastos primários à luz da Emenda 95, amplamente rejeitada pela esquerda brasileira. Outros governos nordestinos adotaram, aqui ou ali, políticas liberais ou conservadoras, mas foram nos Estados onde a ausência de enfrentamento do bolsonarismo gerou uma avenida para a extrema-direita se firmar. É por aí que candidatos militares são lançados nas capitais.
Há, ainda, rondando na esquerda tupiniquim outra leitura: estaria ocorrendo uma troca de pele do PT. Primeiro: estaria deslocando seu poder de fogo do centro-sul do país para o nordeste. Segundo: seus governos estariam adotando uma agenda mais conservadora. Lentamente, o PT vai cedendo espaço – por força de seu pragmatismo eleitoral – à esquerda. Esta hipótese explicaria o crescimento significativo do PSOL em hostes até então petistas. Nas capitais do sudeste, os candidatos petistas amargam a lanterna em intenção de voto.
A desorientação petista não se deve ao estresse pós-traumático. Vem de antes. Vem do pragmatismo e foco eleitoreiro que emergiu na metade dos anos 1990. A partir daí, ganhar a qualquer custo virou máxima na direção partidária. Chegou um momento, que passou a se conformar. Passou a se conformar ao ideário popular. Ocorre que há estudos que indicam que num país com elite hiperconservadora e meios de comunicação embebidos no mesmo caldo ideológico, se os progressistas não disputam valores, acabam perdendo espaço político.
Em Minas Gerais, ocorreu exatamente isto com o governo Fernando Pimentel. Primeiro, atacou as bases do “modo petista de governar” adotado por Patrus Ananias. Depois, no governo estadual, não adotou uma agenda que se diferenciasse dos governos anteriores. Pimentel cometeu um erro mais grosseiro: apostou que a gestão Dilma Rousseff aportaria recursos para seu governo decolar. Com o impeachment, comprovou que não tinha Plano B. Em meio ao ano da sua reeleição, passou a atrasar repasses às prefeituras e pagamento do funcionalismo.
Temos, então, um partido que foi desaprendendo a ser oposição de esquerda. Passou a ser pragmático e ceder ao que a maioria pensa, sem enfrentamentos. E pensar que os petistas citavam Gramsci que sugeria que era possível ser poder sem ser governo. Acabaram invertendo.
*Rudá Ricci é diretor geral do Instituto Cultiva, professor do curso de mestrado em Direito e Desenvolvimento Sustentável da Escola Superior Dom Helder Câmara. Autor, entre outros livros, de Lulismo (Contraponto).