Ao questionar limites da democracia russa, opositor liberal ocupa espaço. Mas país aprendeu a temer cantos de sereia do Ocidente e preza reconstrução nacional em curso. Pergunta-chave: até quando ela poderá conviver com vasta desigualdade?
David Mandel, Outras palavras, 1 de fevereiro de 2021. Tradução de Antonio Martins
Para compreender o significado de Aleksei Navalny para a Rússia, é preciso ter alguma ideia sobre o regime político do país. É um regime de tipo bonapartista, em que a administração do Estado, e a proximidade dela, são as fontes principais de acumulação. Em consequência, a perenidade no poder é o principal objetivo político e a corrupção está em seu núcleo. (A Constituição foi recentemente emendada, para permitir a permanência de Putin na presidência até 2035). Este regime foi estabelecido inicialmente com o apoio entusiástico dos grandes Estados capitalistas, que ao final se desiludiram quando sua criatura rebelou-se contra o status semi-colonial em que queriam encerrá-la.
Em termos de liberdades políticas, o regime pode ser chamado de “ditadura leve”: ele tolera estas liberdades (muito mais que o antigo regime soviético fazia, exceto em seus primeiros e últimos anos), mas apenas até que elas não representam o que pode ser considerado uma ameaça séria. E a margem de tolerância tem se estreitado progressivamente na última década, de modo que mesmo os protestos públicos unipessoais foram submetidos há pouco a restrições. Greves legais há muito tornaram-se impossíveis na prática. Do ponto de vista social, o regime pratica um neoliberalismo extremo.
Como a principal atividade de Navalny foi expor a corrupção oficial, econômica e política (eleições distorcidas), e como seus apelos a protestar – estes protestos são ilegais – mobilizaram dezenas de milhares, o regime o vê, naturalmente, como uma ameaça séria. Ele foi submetido a vários processos criminais (que o impediram, entre outras coisas, de disputar eleições à Presidência) e à tentativa de assassinato de agosto último, que falhou por pouco, e sobre a qual o regime ainda não abriu sequer um inquérito criminal.
Embora a mensagem principal de Navalny ao público russo tenha sido sobre a corrupção no regime de Putin, ele faz alguns esforços, nos últimos anos, para difundir também reivindicações socioeconômicas. Entre elas, estão melhores salários e aposentadorias e tributação progressiva. Ele criou ainda um tipo de movimento sindical virtual dos trabalhadores do setor público, em resposta às promessas não cumpridas do governo de elevar os salários. Alguns membros da frágil esquerda socialista russa consideram este discurso social encorajante. Mas a principal mensagem das atividades públicas de Navalny continua a ser a corrupção do Estado. É uma narrativa que encontra clara ressonância numa sociedade muito desigual e pobre, em sua média.
O foco na corrupção, mais que em exigências socieconômicas, é facilmente explicado pelo fato de que o próprio Navalny é um liberal, ainda que com inclinações nacionalistas russas (ou seja, racistas), que foram suprimidas e em certa medida disfarçadas na última década. Formado em Direito e Finanças durante os selvagens anos 1990 em seu país – o período da “terapia de choque” –, ao mesmo tempo em que trabalhava em diversas empresas privadas, Navalny aderiu ao partido liberal Yabloko em 2000. Atingiu uma alta posição na seção de Moscou. Mas foi expulso em 2007, devido a suas atividades racistas, em especial seu papel na fundação, naquele ano, do movimento de curta duração “Narod” (“povo”). Dedicado à defesa do “nacionalismo democrático”, afirmava entre seus principais objetivos programáticos a democracia e os direitos dos russos éticos.
Em 2010, ele abriu uma site anticorrupção muito celebrado, o “Ros-Pil”, dedicado a expor a corrupção do governo. Foi em 2011 que Navalny chamou, numa entrevista, o partido governante de Putin na Duma (Parlamento) de “um partido de golpistas e ladrões”, um rótulo que ganhou repercussão na Rússia. Sua proeminência pública cresceu ainda mais por seu papel no movimento de protesto de 2011-12 contra eleições parlamentares supostamente fraudadas e a volta de Putin à presidência (depois de um hiato de quatro anos como primeiro ministro). Em 2011, Navalny criou a Fundação para Luta contra a Corrupção, dedicada a expor práticas corruptas nos mais altos círculos governamentais. Em 2019, nas eleições regionais, ele promoveu, com algum sucesso, a tática do “voto inteligente”, por meio da qual eleitores anti-governamentais foram convidados a concentrar seus votos no candidato opositor com maiores chances de vencer.
Navalny e seu movimento são ainda uma variante do fenômeno populista que se espalhou pelo mundo nos últimos anos. Seus apoiadores são, em grande medida, uma massa atomizada. Seu movimento apoia-se pesadamente nas mídias sociais (mais de 6 milhões de aderentes no YouTube). A este movimento de protesto faltam um programa coerente – em particular, capaz de falar aos trabalhadores – e uma estratégia com sentido. A mais recente aparição em vídeo de Navalny, lançada para coincidir com sua prisão ao retornar da Alemanha (onde foi tratado de envenenamento) foi assistida por milhões. Mas não oferece uma análise voltada a desencadear um movimento de cidadãos politicamente conscientes. O tema é um complexo palaciano na costa do Mar Negro, que teria custado 1 bilhão de dólares e, segundo diz o vídeo, pertence a Putin – apresentado de modo simplista como um homem movido por sede incontrolável de riqueza pessoal e luxo.
A coragem e a tenacidade pessoais de Navalny, assim como sua habilidade tática, não devem ser desprezadas. Mas uma grande maioria de russos não o vê como uma alternativa confiável. Embora os russos estejam longe de amar o regime atual, sua atitude tradicional, baseada na memória histórica, leva-os a temer o que pode vir no lugar. E eles não têm de olhar muito longe – na verdade, basta espiar a vizinha Ucrânia – para enxergar os mais que duvidosos resultados das “Revoluções Coloridas” que derrubaram governos no poder.
A participação de membros da geração mais jovem foi notável, em manifestações recentes convocadas por Navalny. (Estudantes secundários e universitários foram advertidos de que sua eventual participação nos atos seria relatada a suas respectivas instituições. Mas os demais russo podem lembrar os “1990s selvagens” que se seguiram ao fim da União Soviética (também numa espécie de “Revolução Colorida”). O advento de Putin ao poder coincidiu com a recuperação econômica, após uma depressão muito profunda e prolongada; com a reafirmação da independência de Rússia no cenário internacional e com o fim da deriva do Estado rumo à balcanização. Estes fatores ainda pesam em favor do presidente, enquanto seu regime faz todo o possível para garantir que nenhuma alternativa confiável a a Putin possa emergir.