No momento em que o Brasil termina agora um ciclo de desenvolvimento que teria durado uma década e recebeu o nome de “lulismo”, parece-me salutar voltar os olhos à teoria de Celso Furtado.
Vladimir Safatle, A terra é redonda, 26 de julho de 2020
Em 1974, Celso Furtado escreveu um pequeno livro que ainda hoje impressiona pela sua capacidade crítica em relação a um dos fundamentos da noção econômica de progresso. Nele, a própria noção de desenvolvimento econômica era descrita como um “mito”, não no sentido estruturalista do mito como matriz de inteligibilidade de conflitos sociais, mas no sentido iluminista do mito como ilusão capaz de bloquear aquilo que é decisivo no interior da vida social. Este mito do desenvolvimento econômico, como dizia Furtado, era responsável pela paralisia da criatividade social. Criatividade que se expressa necessariamente através de um processo global de “transformação da sociedade no nível dos meios e também dos fins”[i].
Furtado se bateu constantemente contra a maneira com que a visão do desenvolvimento se circunscrevia à lógica dos meios, o que só pode significar, como tal lógica dos meios fazia do crescimento econômico a simples expressão de ampliação quantitativa de variáveis que, por si mesmas, nunca nos levariam a uma real transformação. Neste contexto, “criatividade” significava a capacidade de transformar globalmente o horizonte do progresso da vida social, abrindo o espaço à constituição de novas formas de vida. Para alguém como Celso Furtado, que nunca negligenciou as relações profundas entre crítica da economia política e crítica da cultura, este conceito de criatividade teria necessariamente de ser elevado a eixo central de análise social.
No momento em que o Brasil termina agora um ciclo de desenvolvimento que teria durado uma década e recebeu o nome de “lulismo”, parece-me salutar voltar os olhos à teoria de Celso Furtado a fim de se perguntar se, afinal de contas, tal desenvolvimento não foi a mais bem acabada expressão de um “mito”. Não se trata aqui de negar como, no final de 2010, assistimos a fenômenos como a ascensão social de 42.000.000 pessoas com sua ampliação da capacidade de consumo, a elevação do salário mínimo a 50% acima da inflação, a abertura de quatorze universidades federais e a consolidação do crédito, de 25% para 45% do PIB. Mas se trata de perguntar se a circunscrição do pretenso sucesso do modelo econômico lulista a tal “lógica dos meios” não expressa claramente a incapacidade de setores hegemônicos da esquerda brasileira assumirem como tarefa maior a crítica do mito de desenvolvimento econômico e a absorção da “criatividade social” como conceito fundamental para a definição do que pode ser entendido como “progresso”.
O tripé do lulismo e seu fim
Se nos perguntarmos sobre a política econômica do lulismo veremos que ele seu através de um tripé composto pela transformação do Estado em indutor de processos de ascensão através da consolidação de sistemas de proteção social, pelo aumento real do salário mínimo e pelo incentivo ao consumo. Tais ações demonstraram-se fundamentais para o aquecimento do mercado interno com a consequente consolidação de um nível de quase-pleno emprego. Na outra ponta do processo, o governo Lula se auto-compreendeu como estimulador da reconstrução do empresariado nacional em seus desejos de globalização. Para tanto, a função de bancos públicos de investimentos, como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), como grande financiador do capitalismo nacional consolidou-se de vez.
Neste sentido, o lulismo representou o projeto de uma verdadeiro capitalismo de estado brasileiro, retomando um modelo proto-keynesiano existente no Brasil dos anos cinquenta e sessenta sob o nome de “nacional-desenvolvimentismo”. Neste modelo, o Estado aparece como principal investidor da economia, transformando-se em parceiro de grupos privados e orientando o desenvolvimento econômico através de grandes projetos de infra-estrutura. O Brasil é um país onde, por exemplo, dois dos principais bancos de varejo são públicos, onde as duas maiores empresas são estatais (Petrobrás, BR distribuidora), enquanto sua terceira maior empresa é um companhia de mineração (Vale) privatizada, mas com grande participação estatal via fundos públicos de pensão.
Sendo assim, podemos dizer que o sistema de expectativas produzida por esta nova versão do capitalismo brasileiro de estado baseava-se, por um lado, no fortalecimento do mercado interno através da introdução de massas de cidadão pobres no universo de consumo. Ou seja, uma integração da população através da ampliação da capacidade de consumo. Por outro, através de uma associação entre Estado e burguesia nacional, o governo esperava consolidar uma geração de empresas capazes de se transformar em multinacionais brasileiras com forte competitividade no mercado internacional.
É difícil não ver, agora, este processo em retrospectiva sem lembrar-se do diagnóstico de Furtado a respeito do mito do desenvolvimento econômico. Como ele dirá: “a hipótese de generalização ao conjunto do sistema capitalista das formas de consumo que prevalecem atualmente nos países ricos não tem cabimento dentro das possibilidades evolutivas aparentes desse sistema”. Pois: “o custo, em termos de depredação do mundo físico, desse estilo de vida é de tal forma elevado que toda tentativa de generalizá-lo levaria inexoravelmente ao colapso de toda uma civilização”. Daí a necessidade de afirmar que o desenvolvimento econômico, ou seja, “a ideia de que os povos pobres poderão algum dia desfrutar das formas de vida dos atuais povos ricos”[ii] é simplesmente irrealizável.
Mas tal desenvolvimento é irrealizável não apenas devido à destruição do mundo físico e das formas de vida anteriores. Ele é um mito por perpetuar um processo de acumulação que tende a eliminar, em um rápido espaço de tempo, as conquistas no combate à desigualdade. Pois não podemos dizer que o Brasil conheceu políticas de combate à desigualdade. Ele conheceu políticas de capitalização da classe mais pobre, o que é algo diferente. Os rendimentos das classes mais altas continuaram intocados e em crescimento. Assim, a despeito dos avanços ligados à ascensão social de uma nova classe média, o Brasil continuava um país de níveis brutais de desigualdade.
Por isto, seu crescimento só poderia trazer problemas como os que vemos em outros países emergentes de rápido crescimento (como Russia, Angola etc.). Como uma larga parcela da nova riqueza circula pelas mãos de um grupo bastante restrito com demandas de consumo cada vez mais ostentatórias, como o governo foi incapaz de modificar tal situação através de uma rigorosa política de impostos sobre a renda (como impostos sobre grandes fortunas, sobre consumo conspícuo, sobre herança etc.), criou-se uma situação na qual a parcela mais rica da população pressiona o custo de vida para cima, deteriorando rapidamente os ganhos das classes mais baixas. Não por acaso, entre as cidades mais caras do mundo encontramos atualmente: Luanda, Moscou e São Paulo.
Acrescenta-se a isto o fato dos salários brasileiros continuarem baixos e sem previsão de grandes modificações. 93% dos novos empregos criados nos últimos dez anos são empregos que pagam até um e meio salário mínimo. Ou seja, o fato de que os membros da “nova classe média” tenham iniciado seu acesso ao consumo não deve nos enganar. Eles ainda são trabalhadores pobres.
Uma alternativa para a melhoria dos salários seria a diminuição dos itens que devem ser pagos pelas famílias graças à criação de serviços sociais públicos e gratuitos. No entanto, uma família da nova classe brasileira deve gastar quase metade de seus rendimentos com educação e saúde privada, além de transporte público de péssima qualidade. As famílias que entraram para a nova classe média foram obrigadas a começar a pagar por educação e saúde, já que querem escapar dos péssimos serviços do estado e garantir a continuidade da ascensão social para seus filhos. Não por outra razão, uma das bandeiras fundamentais das manifestações de junho foi exatamente a inexistência de bons serviços públicos de educação, saúde e transporte.
No entanto, este é um ponto privilegiado no qual o desenvolvimento brasileiro demonstra sua característica de mito. Por ter praticamente metade de seu salário corroído por gastos em educação, saúde e transporte, a nova classe média precisa limitar seu consumo, recorrendo muitas vezes ao endividamento. O endividamento atual das famílias brasileiras é de 45%. Em 2005, ele era de 18%. Por outro lado, o dinheiro gasto em educação e saúde não volta para a economia, mas apenas alimenta a concentração de renda na mão de empresários de um setor que paga mal seus funcionários, tem baixo índice de investimento. Empresários que preferem aplicar no mercado financeiro, com suas taxas de juros entre as maiores do mundo.
Mas podemos dizer que a constituição de um núcleo de serviços públicos é o limite do modelo brasileiro porque ele só poderia ser feito através de um revolução tributária capaz de capitalizar o Estado. Lembremos como o Brasil é um país onde a maior alíquota de imposto de renda é de 27,5%, número menor do que países de economia liberal como os EUA e a Inglaterra. Mas para realizar uma reforma fiscal desta natureza, o governo precisaria acirrar conflitos de classe, o que implicaria quebrar a aliança política que o sustenta. Ou seja, o avanço em políticas de combate à desigualdade inviabilizaria a governabilidade.
Como se não bastasse, a política lulista de financiamento estatal do capitalismo nacional levou ao extremo as tendências monopolistas da economia brasileira. O capitalismo brasileiro é hoje um capitalismo monopolista de estado, onde o estado é o financiador dos processos de oligopolização e cartelização da economia. Exemplo pedagógico neste sentido foi a incrível história da recente do setor de frigoríficos. O Brasil é atualmente o maior exportador mundial de carne, graças a constituição recente do conglomerado JBS/Friboi com dinheiro do BNDES. No entanto, o mercado de frigoríficos era, até pouco tempo, altamente concorrencial com vários players. Hoje, ele é monopolizado pois uma empresa comprou todos as demais utilizando-se de dinheiro do BNDES. Ao invés de impedir o processo de concentração, ampliando o número de agentes econômicos, o estado o estimulou. Como resultado, atualmente não há setor da economia (telefonia, aviação, produção de etanol etc.) que não seja controlado por cartéis. Isto significa serviços de péssima qualidade, pois sem concorrência e baixos índices de inovação.
Dos meios aos fins
Por fim, lembremos de como tal mito do desenvolvimento tem uma função clara: “Graças a ele, tem sido possível desviar as atenções da tarefa básica de identificação das necessidades fundamentais da coletividade e das possibilidades que abre ao homem o avanço da ciência e da técnica, para concentrá-las em objetivos abstratos como são os investimentos, as exportações e o crescimento”. Ou seja, trata-se de impedir toda tentativa de sair de uma fetichização da racionalidade econômica vinculada à maximização de investimentos e crescimento. Assim, as sociedades não conseguem desenvolver a experiência de rever o que se coloca como “necessidade” no interior de formas de vida determinadas. A criatividade na constituição de novas prioridades é colocada indefinidamente em suspenso.
Talvez não seja por outra razão que, pela primeira vez na história brasileira, um ciclo de crescimento econômico não foi acompanhado de explosão criativa cultural. Contrariamente ao que ocorreu nos anos 30, 50 e mesmo nos anos 70, o Brasil não conheceu na última década uma fase de explosão criativa na qual sua sociedade usa as artes e a cultura para experimentar novas formas. Talvez porque ele não foi capaz de escapar de seu mito do desenvolvimento econômico.
Vladimir Safatle é professor do Departamento de filosofia da Universidade de São Paulo
Notas
[i] FURTADO, Celso; Pequena introdução ao desenvolvimento, São Paulo: Paz e Terra, 1980, p. 11
[ii] FURTADO, Celso; O mito do desenvolvimento econômico, São Paulo: Paz e Terra, 1974