Compreender as origens deste ataque implica acompanhar as relações internacionais, a política externa dos países, os movimentos geopolíticos, geoeconómicos e geoestratégicos.
Sandra Monteiro, Le Monde Diplomatique Portugal, 5 de março de 2022
O ataque do exército russo contra a Ucrânia, a 24 de Fevereiro, representa uma clara violação do direito internacional e da Carta das Nações Unidas pela Rússia. A invasão em múltiplas frentes, numa escalada militar que não se sabe ainda até onde irá, é já responsável por perdas civis e por um drama humanitário de larga escala que afecta a população em fuga e a que ficou. Nisto nenhuma guerra inova: atrás de si fica um cortejo de mortos, feridos, refugiados, traumatizados para a vida. O seu legado é a dor, a insegurança e o medo; a escassez de alimentos e a fome; as rupturas de medicamentos e cuidados médicos; as destruições de habitações e demais infra-estruturas; as feridas perenes dos afrontamentos entre populações. A guerra é o lugar absoluto da perda, mesmo quando a perda não é absoluta.
Quem compreende isto tem duas funções essenciais quando deflagra um conflito armado. Uma consiste em prestar todo o auxílio humanitário às populações vitimadas, fazendo-lhes chegar os bens materiais de que necessitam para sobreviver e accionando os mecanismos de acolhimento digno dos refugiados. A outra função, indissociável da primeira, consiste em condenar a força ocupante que viola o direito internacional e, ao mesmo tempo, procurar compreender o que permitiu chegar aqui. Isso exige informação plural sobre as perspectivas e interesses dos vários actores envolvidos, desescalada do conflito e negociações — talvez mediadas por entidades neutrais — para parar agressões e alcançar a paz.
Compreender as origens deste ataque implica acompanhar as relações internacionais, a política externa dos países, os movimentos geopolíticos, geoeconómicos e geoestratégicos. Exige acesso a fontes plurais e o seu confronto, e é incompatível com visões do mundo a preto e branco, povoadas por agentes do bem e agentes do mal. Sem esse esforço não se esclarecem nem os mecanismos dos poderes, dos interesses, das relações de forças e das alianças, nem as suas hesitações e disputas internas. Mas o jornalismo internacional, considerado caro e que «não vende», é há muito desvalorizado pela generalidade dos media em Portugal, tendo perdido qualidade, profundidade e pluralidade. E a actualidade política nacional quase não trata, nem questiona, governos e partidos sobre política externa e relações internacionais.
Estamos perante um acontecimento que pode marcar uma nova ordem mundial. Mesmo ignorada, e também porque ignorada, esta nova ordem mundial está há vários anos em formação, perante a paralisia da Organização das Nações Unidas (ONU), o crescente belicismo da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e o crescente expansionismo do regime de Vladimir Putin. Na ausência de uma instância internacional capaz de resolver os conflitos, anuncia-se uma ordem mundial caracterizada por ameaças, factos consumados e agressões armadas.
É por isso que as relações internacionais não são algo que «acontece lá longe». A generalidade dos media portugueses, apanhados de surpresa, passaram do silêncio habitual sobre estes temas para o metralhar de certezas absolutas, intolerantes à divergência. Tão superficiais quanto unilaterais, trocaram a crítica pela manipulação emocional e esconderam ignorância com arrogância. Pode ser cómodo para os poderes, que não se vêem questionados, mas cria comunidades sem memória e sem informação, manipuláveis por qualquer poder.
Os mais recentes tabus nos media não aceitam críticas à OTAN, à União Europeia ou ao governo ucraniano (não confundir com os ucranianos). A adesão à narrativa tem de ser total. Mas a realidade é mais complexa. Sim, Vladimir Putin invocou para o inaceitável ataque à Ucrânia pretextos falaciosos (afirmou que estaria a antecipar-se a um genocídio) e deliberadamente exagerados — ainda que a presença de neonazis na Ucrânia seja real. E, sim, há vários anos que a Rússia salienta o medo de ver a OTAN instalada nas suas fronteiras, em contradição com os compromissos assumidos pelos Estados Unidos aquando do desmantelamento da União Soviéticai. Sim, os Acordos de Minsk de Setembro de 2014, em que as partes regularam a autonomia da região do Donbass, e das comunidades russófonas de Donetsk e Lugansk, tem sido incumprido pela Ucrânia (agora pela Rússia) sem que isso tenha suscitado reacção da OTAN ou da União Europeia. E sim, antes mesmo da escalada mais recente de Moscovo intensificou-se a cooperação militar e técnica entre a OTAN e a Ucrânia, com a Turquia, membro da Aliança Atlântica, a entregar a Kiev material de combate, o que levou o lado russo a dizer temer uma reconquista militar do Donbass. Será sensato ignorar as questões que potências altamente militarizadas, com armas nucleares, consideram decisivas para si?
Não há aqui desresponsabilização da Rússia: basta ler os artigos sobre o regime de Putin publicados neste jornal ao longo dos anos: políticas anti-sociais e repressivas, natureza oligárquica do regime…ii. Há constatação de que a solução institucional construída no Donbass foi desprezada, banalizando-se o incumprimento do direito internacional e facilitando-se, até para efeitos domésticos, a decisão de Putin de o violar também. Alguém pensa que a desvalorização mediática, em países como Portugal, da «promoção por Kiev de políticas memoriais revisionistas e a indulgência das autoridades em relação aos neonazis que se exibem no espaço público» (ler o texto de Pierre Rimbert) existe nos media russos? O problema não se resolve encerrando meios de comunicação. Não se deixava era escalar a situação quando se sabia que nenhuma potência tencionava defender no palco da guerra o povo ucraniano.
Também não se pode permitir que, por falta de memória e informação, os poderes, que são parte interessada, deixem de ser questionados. Numa entrevista horas antes da invasão russa, o ministro Augusto Santos Silva defendeu, sem contraditório, uma visão truncada da história da OTAN, apresentada como organização defensiva responsável pela paz, desde logo na Europa, uma paz que agora se via ameaçada pela Rússia («Grande entrevista», RTP3, 23 de Fevereiro). Esta visão é compreensível no ministro dos Negócios Estrangeiros de um país membro da OTAN: a narrativa isentava a Aliança Atlântica e a União Europeia, e concentrava as responsabilidades apenas no invasor, para justificar sanções e envios de tropas e material militar para a região. Mas o papel do jornalismo seria questionar a narrativa, perguntando pelos momentos em que a OTAN e os Estados Unidos também protagonizaram na Europa guerras ilegais e baseadas em argumentos falsos. Esquece-se que em 1999 a OTAN, além do alargamento a Leste, deixou de ser um bloco defensivo e transformou-se numa aliança ofensiva, com a guerra contra a Jugoslávia a violar o direito internacional e uma guerra contra Belgrado sem aval da ONU? O precedente do Kosovo, que tanta instabilidade trouxe aos Balcãs, não tem paralelismos com a situação no Donbass que merecessem ser questionados? A invasão americana do Iraque, em 2003, sem aval da ONU e com o apoio do governo português de então, não contraria a narrativa transmitida na entrevista?…
O que vem a seguir, já se imagina: uma escalada bélica que serve todos os interesses mas não os da população ucraniana e que alimentará fluxos de refugiados vítimas de exploração laboral; novas sanções que dificilmente intimidarão Moscovo; militarização crescente dos países da OTAN e da União Europeia, aumentando os orçamentos da «mão direita do Estado» e reduzindo os da «mão esquerda» (prestações sociais, saúde, transição ecológica, etc.). O ministro da Defesa, João Gomes Cravinho, já alertou: «a Europa tem de repensar o investimento militar» (não despesa…), podendo até subir o intervalo superior do montante com que o país se comprometeu com a OTAN («Telejornal, RTP1, 27 de Fevereiro)». As emergências sociais, sanitárias, ecológicas e energéticas vão passar para segundo plano. Nada que pareça preocupar o regime de Putin, nem a OTAN, nem a União Europeia. Mas tudo isto poderia ter sido evitado. E se não o compreendermos, resta-nos esperar pela próxima guerra.
Artigo publicado no Le Monde Diplomatique – Edição Portuguesa(link is external).
i Ler David Teurtrie, «Ucrânia: porquê a crise?», Hélène Richard, «Quando a Rússia sonhava com a Europa», e Philippe Descamps, «“A OTAN não irá estender-se nem um centímetro para Leste”», Le Monde diplomatique — edição portuguesa, respectivamente, Fevereiro de 2022 e Setembro de 2018.
ii Ler, por exemplo, Karine Clément, «A face anti-social de Vladimir Putin», e Tony Wood, «Os opositores russos continuam a ser corruptos…», Le Monde diplomatique — edição portuguesa, respectivamente, Novembro de 2018 e Setembro de 2019.