Não há declaração de derrota maior do que renunciar ao pensamento e ao afeto. Desistir de entender e sentir o mundo significa aderir o cinismo dos poderosos e aceitar a banalidade do mal e sua contabilidade mortal extremamente eficaz.
Santiago Alba Rico, Outras Palavras, 8 de junho de 2021. Tradução de Antonio Martins
Existem três maneiras de entender a inocência. A primeira diz respeito à prática do sacrifício tal como era concebida pelos povos antigos. Tanto na tradição grega quanto na judaica, a vítima sacrificial, humana ou animal, deveria ser escolhida por sua pureza especial. Não se poderia oferecer aos deuses uma criatura com defeito, imperfeita ou incompleta. O Levítico, por exemplo, dá toda uma série de instruções sobre as condições que devem ser atendidas pelo animal destinado ao altar sacrificial: peso, beleza, integridade anatômica. Ou considere o mito grego de Ifigênia, a filha do rei Agamenon, a quem ele deve sacrificar, de volta de Tróia, para evitar o castigo dos deuses. Ifigênia é escolhida porque a classificação social e emocional máxima une a inocência máxima, associada à sua idade e condição. O mesmo acontece com Isaac (Ismail para os muçulmanos), a quem seu pai Abraão, a pedido de Deus, está prestes a sacrificar: é o mais amado e, ao mesmo tempo, a coisa mais pura que possui. Essa identidade primitiva entre o sacrifício e a pureza sobreviveu na persistente ilusão dos perdedores e humilhados, que deduzem sua superioridade moral — sua condição de povos ou indivíduos “escolhidos” — do sofrimento injusto que lhes foi infligido. Se eles me perseguem e me matam, eu sou bom. Esse sentimento, de origem sacrificial, funcionou como mecanismo de defesa coletiva no caso de algumas minorias perseguidas: foi o caso do xiismo até a revolução de Khomeini ou dos judeus europeus até a criação de Israel; e ainda está muito vivo nas tradições revolucionárias, que buscaram consolo para suas sucessivas derrotas na própria ideia da derrota como prova irrefutável da verdade superior abrigada em suas reivindicações.
Um resíduo desse atavismo sacrificial sobrevive na famosa frase de Sócrates, o filósofo grego executado em Atenas em 399 antes de Cristo: “É melhor sofrer uma injustiça do que cometê-la”. Mas, para além da valorização da dor e da derrota, ou do imperativo da moralidade absoluta, o que Sócrates está propondo é o fim da “lei da selva”. No diálogo platônico Górgias, dois oligarcas de seu tempo, Polo e Cálicles, zombavam dele em nome da natureza, que distingue – diziam – entre leões e gazelas e sempre dá aos mais fortes uma vantagem legítima. Sócrates não está exatamente defendendo os mais fracos; defende um Direito que não responde à pergunta “o que é mais conveniente para mim ou para minha tribo ou para minha classe”, mas para esta outra questão muito mais decisiva porque nela, com todas as suas ambiguidades, vai se fundar o Direito moderno: “O que é mais justo para todos”. Em termos jurídicos, “inocente” não é o melhor, o mais puro, o mais bonito, nem o mais grego ou o mais rico; Inocente é aquele que, independentemente de como se comportar com os amigos ou com o cônjuge, não é culpado no caso particular que é julgado. Não sou cortês nem generoso, é verdade, mas não roubei Salah nem matei Sofia.
Mas também se diz inocente – mesmo etimologicamente no caso do latim – de quem não faz mal. Em um mundo tão complexo como o nosso, é muito difícil ter certeza de que passamos a vida sem causar nenhum dano. Se amarmos sinceramente, provavelmente infligiremos e receberemos dor também; Se normalmente vivemos em uma sociedade capitalista, e nos vestimos, falamos ao telefone e comemos em uma sociedade capitalista, nossos gestos mais simples, inscritos em uma rede de trocas e consumo global, têm efeitos incomensuráveis em toda a vida. Agora, a coisa mais terrível que pode ser dita sobre este mundo é que às vezes, a partir da aceitação cínica de seu próprio poder ou de sua própria impotência, os humanos chegam a um ponto em que desprezam a inocência e chamam de “ingênuos” àqueles que tentam fazer o o menor dano possível e até mesmo àqueles que pretendem introduzir algum bem menor em seu ambiente mais próximo.
Duas palavras devem ser ditas, então, sobre a ingenuidade. Uma história de que sempre gostei muito é aquela que a tradição cristã medieval atribui a Santo Agostinho, o santo nascido em 359 na atual cidade argelina de Souk Ahras. Segundo essa lenda, um dia o teólogo passeava na praia, absorto ao problema insolúvel da Trindade, quando viu uma criança que coletava água do mar com uma concha para depois depositá-la em um buraco cavado na areia. Repetidamente ia da orla à praia, com infatigável determinação, até que Agostinho, intrigado, perguntou-lhe sobre a finalidade de sua faina vã. “Quero esvaziar o mar”, respondeu o menino. Nós sabemos o resto. O santo disse à criança que isso era impossível e a criança, que na verdade era um anjo, respondeu por sua vez: “Tão impossível quanto resolver o enigma em que você está pensando.”
Vamos esquecer que foi um anjo. É plausível imaginar uma criança normal empreendendo e retomando sem cansaço, com obstinação imperturbável, essa tarefa infinita. A ingenuidade de uma criança não consiste em acreditar que poderá esvaziar o mar com um balde ou uma concha; consiste em levar a sério uma tarefa que sabe impossível. O termo “ingênuo” tem uma etimologia muito bonita em latim. Refere-se, em oposição ao escravo, ao humano livre desde o nascimento; e, portanto, evoca a ideia de “origem” e “começo” e, se preferir, a noção um tanto paradoxal de um “recomeço” ou “recomeço”. Ou seja, a ingenuidade tem a ver com a repetição de um gesto que, cada vez que é feito, é feito desde o início, como se nunca tivesse sido feito antes: um gesto, se quiserem, “livre” da memória da humanidade. que chamamos de História. O sol, que nasce todas as manhãs, é ingênuo. A criança que pega um balde de água do mar repetidamente é ingênua. A mulher que lava e pendura roupas em meio às ruínas de uma guerra é ingênua. A ingenuidade não consiste em acreditar que é possível resolver os problemas do mundo; consiste simplesmente em acreditar que o mundo é possível. A ingenuidade, por assim dizer, cria o mundo todas as manhãs: no meio da mais inextricável complexidade, aprisionada em uma selva hostil cujo mal radical não podemos mudar, a ingenuidade ainda acredita que é possível encher um jarro de água, costurar um botão, acender fogo de novo, ensinar matemática a uma criança, curar uma ferida. Por isso é possível ser pessimista e ingênuo. O otimista – quase sempre um homem – pode felizmente destruir o mundo; o ingênuo – quase sempre uma mulher – continua segurando-o nas mãos, às vezes cansada e mal-humorada, sem ter muitas ilusões sobre os homens que o estão destruindo.
É o que eu chamaria de “banalidade do bem”. Da do mal, lembremos, tratou a filósofa alemã Hannah Arendt em relação com Adolf Eichmann, o oficial nazista encarregado de transportar os judeus para os campos de concentração: um homem leal, competente, honesto, obediente, que se tornou cúmplice de um extermínio no exercício de essas virtudes burocráticas triviais. A banalidade do bem, muito mais frequente, é, no entanto, muito menos visível e recebe muito menos louros. O paleontólogo darwiniano americano Stephen Jay Gould, falecido em 2002, afirmou que as espécies se definem em momentos de estabilidade, não de mudança e mutação, e que, para que a humanidade continue a ser considerada uma espécie, é preciso lembrar que, na longa duração, não se define pela violência, crueldade ou egoísmo, como as grandes conquistas e os grandes massacres nos fazem acreditar, mas por aquela rede estreita de pequenos gestos cotidianos – da troca desinteressada de serviços entre vizinhos ao cuidado recíproco dentro de uma comunidade – que garante a consistência e a sobrevivência do mundo comum em meio às maiores calamidades.
O problema é que, se podemos contar os mortos de um bombardeio e os ferimentos de uma faca, não podemos medir os benefícios da “banalidade do bem”. As carícias, já disse muitas vezes, não deixam rastros, para que possamos deixar de acariciar sem sentir dor imediata. Por isso, num mundo em que desaparecesse a imensurável banalidade do bem – quero dizer – seríamos muito infelizes, sim, mas sem descobrir o que nos faltava. Ou dito de outra forma: se a beleza, a solidariedade, o cuidado, a cortesia fossem retirados de nossas vidas, nos tornaríamos maus sem sentir nada, aceitando o mal como um instrumento normalizado de sobrevivência.
A banalidade do bem, a que chamei de ingenuidade, como variante da inocência, está hoje muito ameaçada. Não é apenas nos teatros de guerra e ditadura, como é o caso da Síria, mas um pouco em toda parte, como resultado da erosão capitalista dos laços antropológicos, substituídos pelo egocentrismo digital, e da aceitação subjetiva de um futuro sem horizonte. É possível que estejamos vivendo um retorno hipertecnológico àquela sociedade primitiva, pré-socrática, na qual os sacrifícios humanos e a lei da selva dominavam a justiça e a lei. Nesse contexto civilizacional, os dois inimigos da inocência e da ingenuidade são, como nas crises anteriores, a hipocrisia e o cinismo. A hipocrisia é o primeiro sintoma de um colapso, mas não implica inevitavelmente a passagem ao cinismo e, mais ainda, às vezes pode servir de muro de contenção. O hipócrita fala uma “linguagem dupla”, de modo que – diz o ditado clássico – honra publicamente a virtude enquanto pratica obscuramente o vício. Agora, enquanto a hipocrisia não renunciar à sua duplicidade, a esfera pública continua a ser regida pela “virtude”, e isso inclui também as leis, os meios de comunicação e os partidos políticos. É verdade: quando alguém corrompe instituições em nome da democracia, ocupa países em nome da paz ou do humanitarismo e bombardeia cidades invocando os Direitos Humanos, duas ações sérias estão sendo cometidas. Muito sério: matar seres humanos. Outro muito sério: matar palavras, princípios e valores.
Podemos dizer, em todo caso, que a hipocrisia é a característica das sociedades estáveis e que só se torna potencialmente perigosa nos desvãos das grandes crises civilizatórias, onde, de repente, tanto os poderosos como os fracos assumem que nada pode ser mudado: quando ambos aceitam como naturais, respectivamente, seu poder e sua impotência. Há poucos dias, em um seminário sobre a Palestina, comentei esse deslizamento perturbador. Até há pouco tempo, podíamos ficar indignados com a hipocrisia dos EUA ou da União Europeia, que faziam belos discursos e financiando pequenos projetos, ao mesmo tempo que apoiavam, ativa ou passivamente, Israel em Gaza e Bashar al-Assad na Síria. A hipocrisia tinha a ver, em todo caso, com a hegemonia formal do discurso dos direitos humanos, a que nem mesmo os mais sinistros assassinos ousaram renunciar. Hoje isso acabou. Passamos da hipocrisia ao cinismo; terminamos, se quiserem, com a “dupla linguagem” e não para ajustar nossas práticas aos nossos valores, mas, ao contrário, para acomodar nossos valores às nossas práticas. O cinismo, como o Marquês de Sade já demonstrou em suas obras libertinas do século XVIII, é a característica das classes altas, liberadas de qualquer contenção democrática, que defendem seu poder, violência e impunidade como “naturais”. Ou seja, elas o defendem como fatal e inevitável. O ruim é quando o cinismo se espalha das classes altas para as classes média e popular. É o que estamos vendo na Europa com o crescimento da extrema direita, cuja hegemonia discursiva se impõe em alguns casos também à esquerda: em relação aos imigrantes, refugiados, muçulmanos, “não nos podemos permitir” Direitos Humanos. Não sejamos hipócritas, eles nos dizem: para defender nossos lares, nossas famílias, nosso modo de vida, não podemos mais nos dar ao luxo de ser “bons”.
Não nos podemos permitir sequer a amabilidade. Em 1956, pouco antes de sua morte, Bertolt Brecht escreveu um belo poema intitulado Vergnügungen, que alguns traduzem como “prazeres” e outros como “satisfações”, um título que pessoalmente prefiro. Nele, o poeta alemão oferece uma lista quase oriental de pequenos prazeres vinculantes (olhar pela janela, nadar, rostos excitados, o velho livro reencontrado, neve, sapatos confortáveis, dialética) completamente incompreensíveis para um ocidental líquido dissolvido na velocidade da internet. De todas essas “satisfações” minúsculas e concretas, há duas quase extintas – como os dinossauros e os rinocerontes brancos –, incompatíveis com a ordem do mercado capitalista e que soam um tanto extravagantes no Twitter: “compreender” (begreifen) e “ser amável” (Freundlich sein).
“Compreender” é cada vez mais difícil porque objetivamente o mundo é cada vez mais complexo. Mas esquecemos que, se pensar dá tanta preguiça quanto pular no verão na piscina de água gelada que – sabemos – vai aliviar nossa asfixia, o prazer de iluminar as sombras não pode ser comparado a nenhum outro, nem físico, nem tecnológico. Resolver um problema matemático, apropriando-se do pensamento de um filósofo após horas ou dias de leitura, ou desvendar o núcleo político que nos inquietava, gera uma alegria tão pura e profunda como o amor e muito mais intensa do que sexo, comida ou jogo. Quanto a “ser amável”, também é cada vez mais difícil em um planeta onde o próprio cinismo desacredita a gentileza como um sinal de irrealismo ou fraqueza. Em todo caso, o que esses “prazeres” têm em comum? É que compreender e ser amável são práticas que requerem atenção; e a atenção é a primeira coisa que se perde em situações de guerra, mas também no quadro de uma sociedade global que, nem no terreno do trabalho, nem no informativo, nem no recreativo, nos permite parar e olhar. Acredito que não somos capazes de medir as consequências civilizacionais desta catástrofe. Esses prazeres da atenção – um por meio do pensamento, outro por meio do afeto – são inseparáveis do reconhecimento da existência do mundo. Ou, o que é o mesmo, de sua fragilidade radical. O que compreendo cada vez que compreendo algo é que o mundo, a ponto de desvanecer, precisa ser sustentado com o pensamento e com as mãos. O mesmo acontece com a gentileza: toda vez que digo “obrigado”, que dou lugar, que me mostro afetuoso ou complacente, que me detenho e dedico um minuto, arrancado do tempo velocíssimo da digestão, para me interessar pelo próximo, estou conhecendo a fragilidade dos outros e declarando a minha em voz alta. No turbilhão tanto faz se em Madrid ou em Sydney, em Damasco ou Nova York, nos meios empresariais ou nos militantes, uma declaração de fragilidade já é um convite ao desprezo e à agressão. Nas grandes cidades europeias, já o disse outras vezes, agora só são “amáveis” os que têm algo a esconder ou a temer: os imigrantes e os refugiados, cuja própria cortesia os põe à mercê de todos os golpes e todos os abusos.
“Compreender” e “ser amável”, práticas gêmeas e até siamesas, são verbos hoje dotados de um valor quase “revolucionário”. Nada se parece mais com uma declaração de derrota do que a renúncia ao pensamento e à amabilidade. Desistir de entender o mundo, desistir de ser amável com o outro, significa substituir a banalidade do bem e seus efeitos incomensuráveis de cura, pela banalidade do mal e sua contabilidade mortal extremamente eficaz. Nesse ponto, quando descartamos ou rejeitamos a terceira forma de inocência (aquela que implica o compromisso de “não causar dano”), a salvação fica nas mãos destes poucos ingênuos heróicos que, como o menino-anjo de Santo Agostinho, continuam a repetir, em meio às ruínas, o mesmo gesto reparador.