Richard Sennett, A terra é redonda, 6 de novembro de 2020
Mesmo que Donald Trump perca a eleição, sua base não irá abandoná-lo. Todos aqueles bonés Maga (Make America Great Again), as jaquetas com a marca Trump e os adesivos de armas de fogo são símbolos preciosos para cerca de 30% dos americanos. A “verdadeira” América a eles pertence; se a eleição der errado, essa base irá ao extremo para recuperá-la. E, em um país com mais de 300 milhões de pessoas, 30% delas corresponde a muitos extremistas.
Em parte, a base de Trump está tentando descobrir como usar sua branquitude como ferramenta política, mobilizando uma noção de pureza e integridade nostálgicas, vinculada à cor da pele. A exclusão de estrangeiros – como quando Trump chamou os migrantes mexicanos de “estupradores” e “criminosos” – e a segregação de negros dentro do país são justificadas pela mesma razão: ambos os grupos são tratados como “corpos impuros”. Mas somente o racismo não explica a agressividade escarnecedora, a crueldade da base em relação a outros americanos.
A base é animada por uma espécie de jogo perverso de soma zero, que permite que as pessoas se sintam melhor consigo mesmas colocando os outros para baixo. Inversamente, o reconhecimento de que os outros têm necessidades e direitos próprios parece-lhes ameaçar suas necessidades e direitos. Eu acho que é esse jogo de soma zero que alimenta a hostilidade da base em relação aos outros. Em última instância, é um jogo em que o jogador não pode ganhar – colocar outros para baixo não pode no final torná-lo uma pessoa mais forte – mas a base tem uma espécie de vício com jogo. Ela tenta se sentir melhor consigo mesma, não consegue, então continua jogando, tentando converter sua raiva e seu desprezo em autoestima. A consequente frustração empurra cada vez mais ao extremo.
Há 50 anos, enquanto trabalhávamos em nosso estudo The Hidden Injuries of Class, Jonathan Cobb e eu vislumbramos as origens do jogo de soma zero em um reduto branco, da classe trabalhadora, democrata, em Boston. Por necessidade, muitas dessas famílias entraram em contato com pessoas muito diferentes durante a Segunda Guerra Mundial, em casa e no exterior, que haviam compartilhado um sentimento comum de insegurança durante a Grande Depressão.
Mas essas memórias compartilhadas se enfraqueceram por volta dos anos 1970. Algo então lhes parecia faltar, tanto em suas comunidades locais como em seus propósitos de vida. Essa ausência lhes deixou irritados – irritados com os outros; o que foi expresso na convicção de que as elites e as classes inferiores, tanto os programas socialmente conscientes da Fundação Ford como também o gueto, estavam em conluio contra americanos decentes e trabalhadores como eles mesmos. Essa imagem não permitiu que se sentissem melhor.
O que antes poderia ser enquadrado como uma questão de classe – vinculada às pessoas que foram deixadas para trás durante o boom do pós-guerra – agora torna-se uma questão de massas, uma sensação de que algo errado singra os EUA de cima a baixo. Expresso politicamente, esse sentimento inchou a base na última eleição; os eleitores de Trump eram uma mistura de aposentados, trabalhadores industriais, proprietários de pequenas empresas e prósperos moradores dos subúrbios, incluindo uma fatia surpreendentemente grande de negros de classe média. Esses eleitores agora estão abandonando-o; até mesmo um grande número de evangélicos parece ter se cansado.
Mas essa deserção retroalimenta a coisa mais assustadora sobre a base. Traição é como seus membros explicam por que eles estão perdendo o jogo: eles nunca contaram com Harvard, mas eles contaram com os militares, o ícone da força americana. Mas então houve John McCain, e depois dele o desfile de ex-generais que tentaram trazer ordem para a casa de Trump. Assim como McCain foi taxado de “perdedor”, a visão da Casa Branca sobre esses soldados era de que eles não estavam à altura da tarefa.
Da mesma forma, médicos como Anthony Fauci rebaixam pessoas que consideram usar uma máscara um sinal de fraqueza, ou liberalismo, ou ambos. Os generais e os médicos são motivados pelo serviço – e o serviço é um conceito que está fora da órbita do jogo de soma zero, porque você dá aos outros em vez de tirar deles. No idioma de Trump, o serviço é para “otários”.
Em outros países e em outras ocasiões, a traição alimentou o fogo da violência extremista. Após a Primeira Guerra Mundial, a crença dentre muitos alemães de que eles tinham sido traídos por dentro legitimou represálias nazistas contra judeus e outros supostos inimigos internos. Mas nos EUA de hoje, o tamanho da América “real” está encolhendo à medida que cresce a lista de traidores.
Depois de uma eleição em que Trump provavelmente sairá perdedor, o que me preocupa sobre a base é sua mudança de direção rumo aos teóricos da conspiração, milicianos armados, uma Ku Klux Klan renascida. A agressividade desses grupos pode ser tomada como certa. A América majoritária terá se voltado contra a verdadeira América. E se essa lhe parece uma perspectiva exagerada, você só precisa recordar-se de que, em 2016,o bom senso dizia que alguém como Trump não tinha possibilidade de se eleger.
Na década de 1970, eu pensava que as lesões de classe que estavam ocultas poderiam ser curadas, ao menos em parte, através da interação local, cara a cara, com pessoas que são diferentes. Essa esperança não faz sentido hoje. Perdi minha empatia pelas complexas motivações que animam o medo e a reação. Assim, o mantra de “unificar o país” perde qualquer significado à medida que a base endurece e caminha para a extrema direita; em vez disso, é necessário que haja responsabilização pelas tendências criminosas incentivadas por seu líder. Os EUA não vão se curar tão cedo.
Richard Sennett é professor de sociologia na London School of Economics e professor visitante de arquitetura na Universidade de Cambridge. Autor, entre outros livros de A corrosão do caráter (Record). Tradução: Fernando Marineli. Publicado originalmente no jornal The Guardian.