O fim da pandemia de coronavírus nem aparece ainda no horizonte, mas já está claro para muita gente que os impactos serão sentidos por muitos anos mesmo quando a circulação do vírus estiver controlada no mundo.
Matheus Magenta, BBC News Brasil, 23 de abril de 2021
Na área da saúde pública, esse cenário crítico deve durar pelo menos uma década, estima Suzana Lobo, diretora-presidente da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib), em entrevista à BBC News Brasil. O problema, segundo ela, se agrava ainda mais por causa das desigualdades de acesso a saúde no Brasil, tanto regionais quanto socioeconômicas.
"O serviço de urgência e emergência vai sofrer muita pressão tanto pelos problemas prévios dessa desigualdade de distribuição de leitos como o que a gente vê pela frente, que vai ter outras ondas, vai ter agravamento de comorbidades dos sobreviventes da covid, a desassistência provocada pela restrição de acesso a pacientes que não foram ao hospital porque tinham medo, doenças psicossomáticas, condições crônicas agudizadas... Os desafios do Brasil para a próxima década são enormes", enumera Lobo.
Em sua avaliação, muitos países ricos também não estavam preparados para enfrentar a pandemia, mas "o que faz a diferença é depois você virar a chave e começar fazer as coisas certas". No curto prazo, Lobo defende o controle do espalhamento da doença na população, com medidas como restrições à circulação de pessoas "na hora certa e no local certo, onde os leitos estão saturados" e uso obrigatório de máscara.
No médio e no longo prazo, as saídas passam por pontos como redução de desigualdades e a ampliação do número de profissionais capacitados para atender às novas demandas da pandemia, conforme diagnóstico apresentado por ela e outros colegas ao ministro da Saúde, Marcelo Queiroga.
O principal obstáculo é obviamente financeiro. A falta de recursos para a saúde ante uma demanda crescente será potencializada pelo aumento do rombo nas contas públicas e pela emenda constitucional do teto de gastos, que limitou o aumento de despesas públicas até 2030.
Um ano antes da pandemia, um estudo publicado no periódico BMC Medicine já apontava que a restrição financeira em programas de atenção primária poderia levar a quase 30 mil mortes evitáveis no país.
A BBC News Brasil lista abaixo quatro desafios importantes de saúde pública para o país nos próximos meses e anos, além da falta de verbas.
- Milhares de pacientes com sequelas da covid-19;
- Demanda reprimida de cirurgias eletivas que foram canceladas na pandemia;
- Impacto negativo no tratamento de doenças como câncer;
- Vacinação lenta e novas ondas de infecção.
1. Sequelas da covid e o mito dos 'recuperados'
Em um dado momento da pandemia, quando o número de mortes por covid no país já passava de 100 mil (hoje são 365 mil), o governo de Jair Bolsonaro decidiu a exaltar diariamente o número de "recuperados" da doença.
O objetivo da estratégia, considerada negacionista por especialistas, era fazer frente a uma "cobertura maciça de fatos negativos", como chegou a dizer o ministro da Secretaria de Governo, o general da reserva Luiz Eduardo Ramos.
O conceito de recuperado inclui pessoas que foram diagnosticadas pela doença, mas não morreram. Só que muitas delas nem poderiam ser consideradas recuperadas, muito menos curadas, por causa da chamada covid longa.
Essa condição de saúde persistente tem atingido centenas de milhares de pessoas ao redor com mundo com sintomas que duram semanas ou meses, e alguns deles podem ser inclusive permanentes.
Ao longo de um ano de pandemia, cientistas e profissionais de saúde ao redor do mundo descobriram que a covid estava associada a mais de 50 manifestações de saúde relacionadas a diversas partes do corpo. Foram identificados danos neurológicos, psicológicos, pulmonares, imunológicos, renais, cardíacos, motores, entre muitos outros.
Há dezenas deles, como cansaço extremo, falta de ar, perda de olfato, dores nas articulações, problemas de memória, depressão, dores nas articulações e erupções na pele.
Segundo pesquisadores de universidades dos Estados Unidos, do México e da Suécia, que analisaram dezenas de estudos sobre o tema com 48 mil pacientes ao todo, os cinco sintomas mais comuns da covid prolongada são fadiga (58%), dor de cabeça (44%), dificuldade de atenção (27%), perda de cabelo (25%) e falta de ar (24%).
Não há dados disponíveis sobre o número de pessoas atingidas por essa condição no Brasil, mas é possível ter a dimensão a partir de outros países. No Reino Unido, por exemplo, país com um terço da população brasileira, estima-se que 300 mil pessoas enfrentem a chamada covid longa.
Segundo a Organização Mundial da Saúde, 1 em cada 10 pessoas que contraíram o vírus continua doente três meses depois dos primeiros sintomas.
O impacto dessa condição prolongada, ainda cercada de dúvidas e incompreensão, deve ser sentido por anos na vida desses pacientes e no sistema de saúde, em razão do aumento da demanda por tratamentos, profissionais, medicamentos e reabilitação, por exemplo.
"O fardo é real e significativo", afirmou Hans Kluge, diretor da Organização Mundial da Saúde (OMS) na Europa.
2. Explosão da fila de cirurgias eletivas
"O incentivo (de R$ 250 milhões) aos municípios é para zerar a fila de espera de cirurgias eletivas de média complexidade e diminuir o tempo de espera daqueles que aguardam por procedimentos agendados." Esse anúncio de verba extra do Ministério da Saúde brasileiro, de janeiro de 2020, mal poderia esperar que a fila fosse começar a explodir poucos meses depois, com a pandemia de covid-19.
As cirurgias eletivas são consideradas necessárias, mas não urgentes e podem ser agendadas. Entre as mais demandadas estão as oftalmológicas (tratamento de catarata, por exemplo), a correção de hérnias e a retirada da vesícula biliar.
Desde o início de 2020, países, Estados e municípios têm suspendido muitos procedimentos do tipo por causa da sobrecarga do sistema de saúde (leitos, profissionais e insumos) e dos riscos de contágio por covid-19. Na Inglaterra, por exemplo, a fila desses pacientes passou de 1.600 pessoas para quase 388 mil em um ano de pandemia, é a pior marca desde 2008.
Não há dados atualizados sobre o tamanho da fila brasileira. Em 2018, o Conselho Federal de Medicina falava em 900 mil pessoas na fila da rede pública. Segundo dados atuais do Sistema Único de Saúde (SUS), em 2020 houve uma queda de 1 milhão de cirurgias eletivas em relação ao ano anterior, montante que se soma à fila histórica.
De 2018 para 2019, o Brasil havia conseguido ampliar em quase 10% a realização desses procedimentos. Se o país atingisse o mesmo patamar a partir de 2021, levaria quase cinco anos apenas para zerar essa demanda represada pela pandemia.
Isso sem considerar outros fatores que possam levar ao aumento da demanda, como as sequelas deixadas pela própria covid.
Estados como o Mato Grosso do Sul já têm anunciado medidas para tentar desafogar a fila, como recursos extras e mutirões. Mas se espera uma explosão ainda maior da demanda quando a pandemia perder força de vez.
No setor privado, houve ainda um impacto financeiro significativo. A queda de procedimentos eletivos levou diversos hospitais a ficarem no vermelho, porque a receita caiu, mas os custos se mantiveram fixos, aponta levantamento da Associação Nacional de Hospitais Privados.
3. Mais de 50% dos pacientes com câncer atrasaram tratamento
Os efeitos da pandemia foram sentidos no Brasil e outros países também no tratamento e no diagnósticos de outras doenças, como câncer.
Kluge, diretor da OMS na Europa, Hans Kluge, afirmou que o impacto da pandemia no tratamento do câncer foi "catastrófico". Na região, a área oncológica sofreu interrupções parciais ou totais em um terço dos países europeus.
Para Sara Bainbridge, da instituição filantrópica britânica Macmillan Cancer Support, o ano de 2020 foi devastador para muitas pessoas que vivem com câncer e enfrentaram "atrasos angustiantes ou interrupções no tratamento ou no diagnóstico". Estimativas apontam dezenas de milhares de pessoas no país deixaram de receber o primeiro diagnóstico da doença e assim iniciar o tratamento.
Cerca de metade dos pacientes com câncer no mundo sofreram atrasos no tratamento, entre eles adiamentos na radioterapia ou quimioterapia e cancelamentos de consultas e biópsias, apontou um levantamento liderado por Rachel Riera, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e coordenadora no hospital Sírio Libanês, em parceria com a OMS a partir da revisão de dezenas de estudos sobre o tema.
O impacto da covid no tratamento, no diagnóstico e na própria saúde dos pacientes oncológicos pode levar a um aumento do número de mortes por câncer. Um estudo liderado por pesquisadores da University College London, do Reino Unido, estimou que pode haver quase 18 mil mortes a mais associadas ao câncer ao longo de 12 meses.
4. Novas ondas de covid e vacinação
Como se não bastassem os problemas citados acima, a pandemia ainda não acabou. Isso significa que o sistema de saúde brasileiro continuará pressionado por meses (ou anos) com os infectados pela covid em si.
Dados compilados pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) apontam que 1,8 milhão de pessoas no Brasil foram internadas em 2020 e 2021 por casos suspeitos ou confirmados de covid grave. O sistema de saúde colapsou ou esteve à beira do colapso em praticamente todos os Estados do país.
Apesar de alguns sinais positivos de uma melhora da situação caótica e trágica, o vírus continua circulando com força no país e a vacinação caminha a passos lentos. Ou seja, enquanto a grande maioria da população não estiver imunizada, o Brasil continuará a enfrentar ondas da doença que lotam hospitais, matam cada vez mais jovens e agravam a situação econômica do país.
Em março de 2020, o ministro da Economia, Paulo Guedes, falou que com "R$ 5 bilhões a gente aniquila o coronavírus". Só o auxílio emergencial custou quase R$ 300 bilhões.
Na área da saúde, um levantamento do Senado Federal aponta que o enfrentamento brasileiro à pandemia demandou dos cofres da União mais R$ 63 bilhões em ações diretas, como compra de equipamentos, testes e medicamentos.
Enquanto a doença não for controlada, milhares de pessoas continuarão a ficar doentes e os gastos gigantescos dominarão o orçamento nacional para saúde, que já enfrentava restrições antes da pandemia.
Cada leito de UTI custa de R$ 2.500 a R$ 3.000 por dia, segundo dados da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Ou seja, uma unidade com 30 leitos de UTI custa pelo menos R$ 2,3 milhões por mês. O país aumentou a oferta de UTIs em um terço na pandemia, e a implantação de cada um dos leitos, seguindo os critérios básicos, é estimada em R$ 180 mil.
Além da saturação dos hospitais, o outro grande desafio atual é o programa de vacinação, considerado a principal porta de saída da pandemia.
No papel, o cronograma atual do Ministério da Saúde prevê 563 milhões de doses, e a entrega de 154 milhões delas no primeiro semestre de 2021, considerando apenas vacinas aprovadas pela Anvisa: Coronavac, AstraZeneca-Oxford e Pfizer.
Isso seria suficiente para imunizar o grupo prioritário inteiro, mas não significa que todas essas 78 milhões de pessoas estariam vacinadas antes de julho — o Brasil tem conseguido aplicar cerca de metade das doses disponíveis e há um intervalo de semanas entre a primeira e a segunda dose.
Mas os constantes atrasos em importações de insumos e vacinas, além de problemas na produção em território nacional e a não aprovação de outros imunizantes por parte da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) fazem com que esse cronograma seja cada vez mais difícil de ser atingido.
A tendência, até o momento, é que o início da vacinação dos adultos não prioritários deva acontecer pelo menos em meados do segundo semestre de 2021, enquanto a de jovens com menos de 25 anos deve acontecer só em 2022. A situação dos menores de idade é ainda mais incerta.
Um estudo recente da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora) apontou que que Brasil precisa vacinar 2 milhões por dia para controlar pandemia em até um ano. Mas desde o início da vacinação, só ultrapassou três vezes a marca de 1 milhão de vacinados.